quarta-feira, 21 de junho de 2023

O TAL PRAZER DA ESCRITA

Por Eugénio Lisboa

A escrita é muitas coisas mas é também uma forma de salvação: ela descobre, ela acicata a memória, fecha-nos às aflições do momento, mergulhando-nos num universo prodigioso, escudado e inacessível às turbulências exteriores.

E cura-nos, pela alegria que nos dá o encontrar as palavras certas para exprimir o inefável. 

A escrita é a melhor arma de defesa e de ataque de que dispomos. Nenhuma nos defende tão bem de uma ferida ou faz, nos outros, uma ferida tão perene. 

A escrita foi inventada por alguém que precisava muito dela, para registar informações. Assim, começou por ser útil e passou a ser agonicamente necessária. 

Escrevo, logo existo. 
Mas também: escrevo, logo não sofro. 

Quando escrevo, falo de um sofrimento que já foi, mas que deixa de o ser, no momento em que o escrevo. A funda alegria de o escrever mata o sofrimento que já se sentiu, mas se apaga ante o fulgor da escrita.

Como dizia Montherlant, o escritor é aquele ser peculiar, que sofre, não sofrendo.

O Camões que escreveu o “Alma minha” não sentia, no momento em que a invocava, saudades da morta, sua amada. O que ele sentia, no momento da escrita, era a alegria de escrever uma saudade, que sentira, antes de a escrever, mas que não podia sentir, no momento em que a escrevia. 

O escritor é um monstro que mata, sem escrúpulos, no momento de o celebrar, o mais profundo sentimento que antes o afligira, para melhor o poder glosar, com os utensílios da sua arte. 

A alegria de escrever, o tal prazer da escrita tem muito de inumano. 

O grande escritor é, na sociedade em que vive, um suspeito a vigiar, porque pode ser perigoso. Por isso, o escritor Tonio Kröger, da famosa novela de Thomas Mann, ao regressar um dia, no tarde da sua vida, coberto de glória, à sua terra natal, torna-se suspeito, aos olhos da polícia local, que o toma por um malfeitor… 

Não nos esqueçamos de que o grande William Faulkner declarou um dia que seria capaz de matar meia dúzia de velhinhas, se isso lhe permitisse escrever a belíssima ODE A UMA URNA GREGA, do poeta John Keats.

Um poeta é capaz de tudo, mesmo de vender a alma ao diabo, para acertar um verso ou colocar uma vírgula no lugar certo. 

Quem não compreende isto não compreende nada deste ofício nem dos seus oficiantes.

Eugénio Lisboa

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