quarta-feira, 14 de junho de 2023

O IMPARÁVEL MOVIMENTO CONTRA A ESCOLA PÚBLICA DENTRO DE ESCOLAS PÚBLICAS


Imagem recolhida aqui
Vemos, com regularidade, em Portugal e em muitos outros países, professores afectos à escola pública em manifestações de rua, gritando slogans em defesa dessa escola. De modo mais concreto, em defesa da sua qualidade, do ensino e do direito à educação. São slogans que parecem unir não só os professores mas também as populações. Na verdade, quem, de boa fé, é contra a qualidade da escola para todos, do ensino, e do direito à educação? Ninguém!

Este texto poderia terminar aqui e, por certo, os leitores, dar-me-iam razão. A realidade tende, porém, a ser mais tortuosa do que dá a entender. É o caso.

Basta perguntarmos: o que significarão, efectivamente, para os professores tais slogans? Cada um deles e o conjunto? E para as populações? Para cada sector e para o seu conjunto?

Temo que as respostas a que chegássemos revelassem uma enorme diversidade, podendo muitas delas ser colocadas em pólos opostos. É que as expressões "qualidade da escola", "ensino" e "direito à educação" perderam o sentido que lhes era próprio e admitem todo e qualquer sentido que se lhes queira dar.

Acontece que isto não é um problema menor. As expressões traduzem ideias e são as ideias, mais ou menos consciencializadas, que delineiam e conduzem a acção.

Fixo-me na ideia de escola pública, como instituição educativa formal destinada a todos, onde todos (independentemente da sua origem social, económica e cultural, culto ou outras especificidades) possam aprender o que eleva a pessoa como ser individual e como cidadão, e que, relembro e sublinho, só num passado muito recente conseguimos tornar universal na Europa.

Ora, essa ideia de escola pública é menosprezada, negada, aniquilada precisamente no contexto em que se materializa: a escola pública!

Alegando-se que a escola pública é tradicional (palavra maldita que condensa todos os males que se imputam à educação), que não serve os interesses e as necessidades muito particulares deste e daquele grupo e também do outro (grupos sempre especiais e únicos, evidentemente), há que arrasá-la para, a partir dos seus escombros, se criarem "experiências diferentes" susceptíveis de proporcionarem nada menos do que o "bem-estar" e, mesmo, a "felicidade". 

Nesta categoria cabe tudo o que a imaginação permitir: as "comunidades de aprendizagem", que funcionam na base do ensino doméstico (perdão, homeschooling), é uma dessa experiências (ver por exemplo, aqui).

São as crianças e os jovens, em conjunto com as suas famílias (ou o contrário) que decidem e implementam o que antes cabia ao Estado; agregam-se os indispensáveis parceiros (perdão, stakeholders), como sejam organizações e fundações, juntas de freguesia e câmaras; formam-se "academias" internacionais (empresas que ampliam o "negócio global da educação") e/ou "contextos" nacionais; nomeiam-se mentores, tutores, treinadores (perdão, coachs), líderes para acompanhar, motivar, incentivar os verdadeiros actores da aprendizagem. Tudo isto muito orquestrados pelos designados "gurus" da educação. As novas tecnologias da "ubiquidade" sustentam o edifício, ao disponibilizarem toda a informação em qualquer lugar e momento, e permitirem a comunicação a distância, ampliando-a e facultando a "partilha"...

Desaparecem os professores, como profissionais de pleno direito, já que o "ensino" é, como tem alertado Gert Biesta, substituído pela "aprendizagem". É muito óbvio que aqueles que se integram nas comunidades são parceiros, não profissionais.

Portugal tem acordado para este mar de possibilidades, que prometem às novas gerações a libertação do jugo da tal escola tradicional. Por estes dias voltou a falar-se no assunto:

Desta notícia, muito completa ainda que nada questionadora, publicada aqui, extraio breves passagens que ilustram o que acima disse:

Foram os filhos que, sem saber, juntaram um grupo de mães e pais que cresce todos os dias, com o objetivo de criar uma Comunidade de Aprendizagem (...), no seio da Escola Pública. Por esta altura aproximam-se de 700 os membros de um grupo no Facebook, parte de um movimento que nasceu há alguns meses, de olhos postos no exemplo do Agrupamento... (...) 
A mudança aconteceu no início deste ano letivo, liderada pela diretora... que decidiu implementar um projeto-piloto em três escolas básicas, nas aldeias de ... [A directora] encontrou no grupo de professores do [seu] agrupamento a recetividade e entusiasmo necessários (...) o envolvimento com a comunidade ganhou espaço (...). 
[Uma mãe] percorre mais de meia centena de quilómetros para que a filha possa frequentar a Escola Básica (...) mas dispõe-se a fazer o caminho sabendo que, naquela aldeia, há uma escola onde as crianças têm "a oportunidade de aprender e crescer de outra forma" (...) ]Um pai diz que] a escola "tradicional" não lhe fazia sentido. Nem a ele nem a centenas - ou milhares - de pais. Foi essa certeza, de resto, e uma busca constante por alternativas que fizeram [uma mãe ter] mobilizado outros pais para esta mudança, que espera ver ocorrer no âmbito da Escola Pública. 
O grupo está empenhado em começar essa mudança já no próximo ano letivo. É esse sentido de inclusão que a maioria destes ativistas da educação - e sobretudo da aprendizagem - no contexto da Escola Pública quer ver nascer na comunidade (...).
Foi assim que se cruzou com a... Academy, que funcionava como Centro de Explicações, apoio ao estudo e tempos livres, tornando-se co-proprietária do espaço (...). Desde fevereiro que a filha era acompanhada, à distância, pelos professores da americana ..., uma "comunidade global de estudantes, famílias, educadores, mentores e parceiros", estrutura criada há 50 anos, nos Estados Unidos da América, e que atua também em Portugal (...). Os alunos não têm que estar matriculados na escola americana. Podem estar na escola pública, ou noutra qualquer, e na altura da matrícula optar por ensino doméstico" (...)
A terminar uma nota de esperança: quero pensar que 
1) os professores do sistema público, que se vêem como tal, como profissionais de ensino, mais cedo ou mais tarde, passem a defender, com palavras e acção, a escola que é de todos e para todos. E que procurem, com todos os meios que estão ao seu alcance melhorá-la;
2) os directores escolares façam o mesmo;
3) os responsáveis políticos, a começar pelos ministros da educação, não permitam que a preciosa herança que é a escola pública seja dissolvida;
4) os académicos, não percam de vista a finalidade última da educação escolar, conduzindo o seu trabalho por ela, declinando interesses que a negam.

2 comentários:

Anónimo disse...

É contraditório que uma escola pública de qualidade, aberta à participação de todos, desde encarregados de educação, pais e mães, lavradores, comerciantes e industriais, seja, em Portugal, obrigatória até aos dezoito anos de idade!
Quem ainda se lembra da inefável Área de Projeto, uma área não disciplinar, mas obrigatória, que dava horas de trabalho a todos os professores que delas necessitassem e tempo de ócio e felicidade aos alunos que a frequentavam? Eu lecionei esta área, filha dileta das novas pedagogias da escola feliz para todos, pelo que, em conformidade, avaliei com vinte valores todos os alunos da turma! Note-se que a disciplina da minha área de formação científica é opcional, mas a área de projeto era obrigatória. Presentemente, os currículos estão cheios de áreas do tipo "encher chouriços", como era a área de projeto. Infelizmente, no dia-a-dia das escolas, a corrente maioritária, entre os professores, é a que defende a aprendizagem por preenchimento de grelhas do tamanho de lençóis, em detrimento do ensino e aprendizagem dos conhecimentos que elevam as pessoas.
É evidente, para quem está no terreno pantanoso das nossas escolas, que as ideias que desencadeiam as ações do ministro da educação, no âmbito das políticas de ensino/ aprendizagem, estão erradas.

José Carlos Menezes disse...

Isto de "Escola Pública" tem uma conotaçãozinha ideológica. Os espaços públicos são apenas os estatais? Onde é proibido fumar, por exemplo.
Vamos sabendo das corrupções que existem dentro dos ministérios, das burocracias para fazer qualquer coisa. E de outra forma não poderia ser.
Os Colégios privados são espaços públicos a quem o estado faz concorrência desleal. Em geral, as propinas são mais baratas que o custo por aluno numa escola estatal.
Então porque não o Estado largar as suas escolas e pagar aos colégios?
A Holanda (Países Baixos) tem este esquema: não tem escolas, não contrata professores e o ensino é SCUT. Cá também o é (dizem gratuito mas é mentira, obviamente).
Claro que caía o Carmo e a Trindade: isso não é a santa esquerda (valor mais alto que tudo o resto) e também se acabavam negócios que provavelmente também envolvem sindicatos. E baixava a contribuição social para o ensino (que vai no meio dos impostos).