segunda-feira, 26 de junho de 2023

"DESESPERO E DESÂNIMO", PALAVRAS PERFEITAMENTE COMPREENSÍVEIS

"Lancei esta petição num momento de desespero e de desânimo", disse Dália Aparício, professora de Matemática e de Cidadania, autora da petição "Pela Cessação do Projeto Maia", cuja audição na Comissão Parlamentar de Educação e Ciência teve lugar no passado dia 22 de Junho. Vale a pena ler esse documento, que conseguiu em poucos dias uma quantidade pouco comum de assinaturas.

O registo discursivo de Dália Aparício é sereno, objectivo e honesto, é o registo de alguém que procurou entender e cumprir o que a tutela "oferece", tendo, no entanto, constatado que o que está em causa, mais do que não ser praticável, prejudica os alunos. E, com um louvável sentido ético, decidiu dizer isso mesmo, usando os canais e instrumentos que a democracia oferece. Mas presumo que só o fez quando chegou a um estado de desespero, que compreendo, e de desânimo, que também compreendo.

Tendo analisado os comentários deixados por colegas, diz sobressair a referência ao aumento da burocracia e ao facilitismo no ensino, a par da evidência de que a aprendizagem não está a melhorar, ainda que os resultados melhorem. Tal significa um mascarar do insucesso.

Recomendo especial atenção ao discurso dos outros quatro professores. Bem documentados, explicaram com clareza os dados que recolheram em documentos e na realidade. Infelizmente, não posso dizer o mesmo dos políticos, que além de cometerem erros (deveriam preparar-se melhor), recorreram à negação e à distorção, de resto, muitíssimo desajeitadas.

Notei nesta audição (e nas muitíssimas apresentações, contestações e discussões que o projecto em causa tem desencadeado) a ausência de um duplo argumento que deveria prevalecer: as finalidades que, em nome do beneficio dos alunos, é legítimo imputar à educação; e o conhecimento pedagógico sério que permite (tentar) concretizá-las.

Políticos, académicos e professores, deveriam concentrar-se nisso. É que em nenhuma circunstância (como é bem claro na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo) a educação dever ser orientada por ideologias partidárias, pedagógicas ou outras. O projecto em causa é um exemplo acabado de determinação em impor uma ideia que não pode ser ancorada em qualquer finalidade educativa digna desse nome, nem consegue suporte pedagógico decorrente de escrutínio científico.

O apoio que recebe de quem, por diversos modos, está comprometido com ele, redunda na repetição dos seus incompreensíveis princípios e ainda mais incompreensíveis métodos. É o caso do Conselho Nacional de Educação, cujo actual Presidente, sendo o próprio mentor do projecto, há pouco assinou (como Presidente desse órgão que, por estatuto, é independente) a resposta a um pedido de informação sobre a dita petição por parte do Presidente da Comissão Parlamentar de Educação e Ciência. Não é, portanto, de estranhar que o final da resposta seja o que se segue (ver aqui):

"Deste modo, conclui-se que o Projeto MAIA é um projeto de formação que parece estar a contribuir para que a inovação, a flexibilidade curricular, as práticas pedagógicas dos docentes e as aprendizagens dos alunos sejam mais consistentes com o que é preconizado nos atuais diplomas legais, acima referidos, nomeadamente os que se referem ao currículo e ao seu desenvolvimento."

4 comentários:

Miguel disse...

Isto é uma espécie de pescadinha de rabo na boca, mas há solução! Quem gosta de avaliações com muitas quantificações e parâmetros programáveis e muito precisas, então também necessita que sejam máquinas ou AI para as implementar, não queira que sejam humanos, e sobretudo humanos mal pagos e já muito sobrecarregados a fazê-lo! Se quisermos ser optimista podemos ter o melhor de dois mundos se soubermos conjugar tudo isto: professores que são humanos e avaliam empiricamente e humanamente como sempre fizeram, auxiliados por instrumentos de diagnóstico automatizados. Da mesma forma como os médicos hoje em dia usam máquinas complexas para fazer exames, e já há AI para ajudar a detectar coisas não visíveis ou detectáveis por humanos, é perfeitamente viável ter testes personalizados e gamificados que os alunos possam ir fazendo e que são automaticamente classificados pelas máquinas conforme os strokes, os tempos, os impulsos, etc, etc... já passei por coisas dessas em instituições estrangeiras e funcionavam. As coisas não têm de ser preto e branco, podem ser conjugadas, e deixar a cada um o que é o seu domínio: ao humano o que é do humano, à máquina o que é da máquina.

Anónimo disse...

O senhor Presidente do Conselho Nacional de Educação, assumidamente um dos principais mentores do Projeto Maia, trata os educadores de infância e os professores dos ensinos básico e secundário com uma sobranceria própria de quem não se digna experimentar como funciona, na terra dos jardins de infância e escolas EB 1,2,3 + S, o seu projeto cheio de ideal.
Muitos educadores de infância e professores, por deficiências de formação profissional, ou outras, ainda não se "apropriaram" da intenção simples que fez nascer o projeto Maia:
Promover, com perversidade, o sucesso escolar de todos os alunos, através de uma parafernália de grelhas e outros instrumentos de avaliação, que o educador de infância, ou o professor, deve preencher, por escrito e extenso, com todas as táticas e estratégias de ensino e aprendizagem que usou com cada um dos seus mais de, eventualmente, trezentos alunos , ao longo de todos os dias do ano letivo, para que houvesse melhorias nas aprendizagens. Se o educador de infância, ou o professor, no dia da reunião das avaliações não tem mais de meia dúzia de "evidências" escritas, por maior que seja o número das "evidências" orais, para apresentar ao conselho de turma como justificação da atribuição de uma classificação negativa, então vai ver-se em maus lençóis. O melhor é, antes da reunião, avaliar e classificar toda a gente muito positivamente, o que prova, só por si, que deu nas aulas "feedback de qualidade" a torto e a direito.
O projeto Maia não é obrigatório, mas, só pelo que atrás fica exposto, devia ser proibido.

Signatário da petição " Pela Cessação do Projeto Maia"

Helena Damião disse...

Caro Leitor Miguel, há no seu comentário diversos aspectos de grande interesse. Assinalo os seguintes:
1) A avaliação pedagógica não pode depender do "gosto" de cada um ou de outros factores aleatórios, como a disponibilidade de tecnologias (que, "já agora" aproveitam-se para...). O que está em causa na avaliação pedagógica é verificar, com intenções diagnósticas, formativas ou sumativas, e com conhecimento, rigor e razoabilidade, o estado de aprendizagem de cada aluno ou de grupos de alunos;
2) A avaliação pedagógica é um acto humano, inscrito nas funções educativas da escola, que nenhuma máquina deve substituir. Uso a palavra "deve" porque, na verdade, a máquina "pode" registar e tratar dados, que devolve ao professor e/ou a quem quer que seja, mas tenho dúvidas que isso, por muita sofisticação que envolva, seja avaliação pedagógica;
3) "Testes personalizados e gamificados... sendo os desempenhos dos alunos automaticamente classificados...." etc. são coisas, como diz, que existem e que funcionam... mas para quê?! Que ideia de educação lhes está subjacente? Lamentavelmente, a "indústria" da avaliação pedagógica apropriou-se da avaliação pedagógica. Nem impressionantes palavras, como "rubricas" (além de critérios e parâmetros e outras de que, por certo, me esqueço) nem impressionantes tabelas a transbordar de números permitem uma resposta consonante com os fins educativos que são os da escola.
Cumprimentos, MHDamião

Carlos Ricardo Soares disse...

Ao professor, mais do que à maioria dos profissionais com níveis semelhantes de formação académica e de habilitações, são contratualizadas (não são negociadas com o professor) funções, competências, tarefas, objectivos, resultados e, principalmente, monitorização, avaliação, classificação, disso tudo. Como se não bastasse, e o professor nunca dará conta do recado, e todos têm consciência disso à partida, ainda tem de estar disponível para prestar contas, o que, invariavelmente, lhe será exigido. Esta é a fase do arbítrio, bem pior do que a angústia do guarda-redes antes do penalti.
Se o professor, por índole, natureza, astúcia, habilidade, ou inconsciência, por exemplo, por romantismo profissional, idealismo ingénuo, ignorar toda essa trapalhada e trabalhar a sua motivação com os alunos e as matérias, numa base pragmática do que acontece e não do que seria óptimo para o senhor “reitor”, ou outra estrutura de poder exigente, talvez consiga bons níveis de satisfação pessoal e bons níveis de realização daquilo que é desejável profissionalmente. Mas esta “alienação” acabará no dia em que o confrontarem com as burocracias referidas acima. Nesse dia, fá-lo-ão sentir que não fez nada, que não consegue provar que fez alguma coisa daquilo que acredita, que não tem o sentido das responsabilidades, enfim, que a prova de que nasceu não pode ser feita pelo próprio, que é preciso uma certidão e que esta, sim, deve ser bem tratada e bem conservada, que é o que interessa.
Ao professor, que os empresários do ensino e da educação tentarão tranformar definitivamente num empreiteiro, ou num tarefeiro, restarão poucos poderes de negociação e a cadeia partirá pelo elo mais fraco. Sobretudo para directores e supervisores a quem escasseia formação jurídica e consistente cultura geral, por mais intensiva que tenha sido a sua formação em gestão escolar, a tentação de reduzir o estatuto profissional do professor à figura jurídica do tarefeiro, ou do empreiteiro, é tanto maior quanto mais predispostos estiverem a ignorar e a desprezar a dignidade, a função e os direitos dos professores.
Não é menos difícil ensinar do que avaliar aquilo que se ensina e efetivamente ensinou. Mas mais difícil é avaliar o que o aluno aprendeu. E mais difícil ainda é saber o que o aluno devia ter aprendido, embora, neste ponto, também não faltem especialistas que, geralmente, não são professores.
O professor é quem tem a obrigação de saber resolver/responder muito bem a essas dificuldades. E quem decide o que é uma resposta (boa ou má) a essas dificuldades, não é o professor.