quarta-feira, 7 de junho de 2023

"AS FITAS DA EDUCAÇÃO “ COMO METÁFORA

Issac Asimov, o cientista que foi um mestre-escritor de ficção científica, tem, na sua imensa obra, vários textos que tocam a educação. O mais interessante, pelo menos no meu entender, é aquele em que explica um método inovador de aprendizagem para o comum dos jovens: as fitas de educação. 

Nada de esforço nem de tempo perdido a ler, a pensar: posta a fita na cabeça do sujeito, ele fica, num instante, com todo o conhecimento de que precisa para usar.
Mas há os que insistem em ler, à primeira vista apenas para saberem o que não está inscrito nas fitas! Uma inutilidade! E há os que fazem as fitas... que não "aprenderam" com a passagem das fitas pela suas cabeças, mas porque leram e isso tornou-os curiosos e críticos...

Tendo a classificar esta cenário como uma excelente metáfora, não como ficção. Asimov olhou e viu o mesmo que vemos: a educação para uma imensa maioria "vendida" como soft, indolor, reconfortante no imediato; e a educação para uma selecta minoria, tal como ela tem de ser para poder formar.
És capaz de parar de ler esse livro idiota? Omani virou a página e leu ainda algumas palavras, depois levantou a cabeça (...). O que é que tu ganhas em ler esse livro? – Avançou e bufou (…). E arrancou-o das mãos de Omani. Omani levantou-se devagar e apanhou o livro. Endireitou uma página amarrotada sem visível rancor.
– Chama-lhe satisfação da curiosidade – disse – aprendo alguma coisa hoje, talvez um pouco mais amanhã. De certa forma é uma vitória.
– Uma vitória. Que espécie de vitória? É isso que te satisfaz na vida? Chegares a saber o suficiente para seres um quarto de engenheiro electrónico registado quando já tiveres 65 anos?
– Talvez quando tiver 35.
– E nessa altura quem é que te quererá? Quem é que te vai usar? Para onde é que vais?
– Ninguém. Ninguém. Para lado nenhum. Ficarei aqui a ler outros livros.
– E isso satisfaz-te? Diz-me!” (…)

“O primeiro classificado era de São Francisco. E três dos quatro seguintes também. E o quinto era de Los Angeles. Eles apanham as fitas de educação das grandes cidades. As melhores que há (…). Como é que eu posso competir com eles? Vim todo este caminho até aqui só para tentar a minha sorte numas Olimpíadas da minha classe patrocinadas por Novia, e bem podia ter ficado em casa.” (…)
 
“O ponto de viragem deu-se quando se conseguiu perceber o mecanismo de armazenamento do conhecimento no nosso cérebro. Depois disso ter sido feito, tornou-se possível criar fitas de educação que alterassem esses mecanismos de forma a colocar no nosso cérebro um conjunto de conhecimentos prontos-a-usar, por assim dizer.” (…) 
“[A] Terra exporta fitas educacionais de profissões pouco especializadas e isso mantém a unidade da cultura Galáctica. Por exemplo, as fitas de Leitura garantem uma única língua para todos nós.” (…) 
“– Não pense que isto é uma brincadeira – disse George tensamente. – As fitas são, de fato, prejudiciais. Ensinam demais; são demasiado indolores. Um homem que aprenda dessa forma não sabe aprender de nenhuma outra (…). Agora se não dessem fitas a uma pessoa e a forçassem a aprender manualmente, por assim dizer, desde o início; então essa pessoa ganharia o hábito de aprender, e de continuar sempre a fazê-lo.” (…) 
“– E aonde é que vamos buscar o conhecimento, sem fitas? No vácuo interestelar?
– Nos livros. Estudando os próprios instrumentos. Pensando.
– Livros? Como é que é possível compreender os livros sem educação?
– Os livros são feitos de palavras. As palavras podem, na sua maior parte, ser entendidas. As palavras especializadas podem ser explicadas pelos técnicos que vocês já têm. – E a leitura? Autoriza as fitas de leitura?
– As fitas de leitura estão bem, acho eu, mas também não há qualquer razão para que não se aprenda a ler à maneira antiga. Pelo menos em parte.” (…) 
“– E quem é que faz as fitas educacionais? Técnicos especiais de fabricação de fitas? Então quem é que faz as fitas para formá-los? Técnicos mais avançados? Então quem é que faz as fitas… Percebes o que quero dizer. Tem de haver um fim em algum ponto. Tem de existir em algum lugar homens e mulheres com capacidade para pensamento criativo.”

 Asimov, I. (sd). Nove amanhãs: contos do futuro. Europa-América.

4 comentários:

Anónimo disse...

Na escola pública, pelo menos em Portugal, assiste-se ao fim da divisão entre conhecimentos para pessoas muito inteligentes e conhecimentos para pessoas medianamente inteligentes, ou pouco inteligentes. Os conhecimentos, agora chamados "aprendizagens" são muito poucos, mas iguais para todos. Usando a metáfora do teatrinho dos bonifrates, o ministério da educação vê as crianças e adolescentes do ensino obrigatório, até aos dezoito anos de idade, como bonecos facilmente manipuláveis, e que, no fim da longa função, mostram uma felicidade esfuziante, que vem do sucesso inclusivo das aprendizagens essenciais, batendo, com os diplomas dobrados em canudo, nas cabeças de uns e outros:
-Ora toma, ora toma, toma lá que é para aprenderes!
Face a este cenário de decadência vertiginosa do ensino e das aprendizagens nas escolas EB 1,2,3 + JI + S, que faz o ministério:
Vincula mais de 8500 professores, que assim deixarão de andar com a casa às costas e traz para a mesa das negociações a reparação das injustiças cometidas contra a monodocência. Os monodocentes (antigos professores primários e educadores de infância) não são mais nem menos do que os professores do ensino secundário. Se estes últimos têm direito a reduções da componente letiva, porque lecionam os níveis que lecionam, por que carga de água os monodocentes não têm também direito a requerer, a partir dos 60 anos de idade, horários de trabalho sem componente letiva?!

Carlos Ricardo Soares disse...

O que acontece entre ensinar e aprender é um problema de todo o tamanho. Mas ainda bem que acontece. Não creio que esse problema possa ocorrer, por exemplo, na IA.
Esse é um problema que se vai resolvendo, mas nem o conhecemos bem, nem temos à mão a solução. O que sabemos fazer é baseado na experiência, na observação e na tradição.
O facto de querermos colocar o foco todo num problema que, paradoxal e ironicamente, estamos longe de conhecer, é uma excelente desculpa para não pensarmos que eficiência pela eficiência não faz sentido. A eficiência, pelo menos na educação, só faz o sentido que cada um lhe quiser encontrar. É quando começamos a falar de educação a todo o custo, de disciplina e adestramento humano em função de valores mais altos, que começamos a esvaziar de sentido a educação e os valores.
O enigma do que devemos fazer não se resolve com uma resposta sobre aquilo que podemos fazer. Em tempos recuados, a humanidade logrou resolver esse enigma de um modo incrivelmente sofisticado, que foi o modo de acabar com as perguntas, dando uma resposta em vez de formular outra pergunta e proibindo o questionamento.
Se não questionássemos a realidade, e tantas vezes, de vários modos, e tanto tempo, o fazemos, a simplicidade das respostas e dos veredictos seria de tal modo confortante e divertida, que aceitaríamos como um dado, por exemplo, que há humanos estúpidos e humanos inteligentes, assim como damos quase como certo que somos mais inteligentes do que as outras espécies.
Se não questionássemos a realidade, seríamos estúpidos, sem sabermos que os humanos até podem ser inteligentes.
A inteligência só falta quando interrogamos, quando perguntamos, quando duvidamos. É pois natural que o não façamos, porque assim nos sentimos totalmente esclarecidos e satisfeitos. É talvez daquelas evidências de que os humanos estão mais desprovidos mas não menos convencidos, porque ela é como um foco e uma linguagem, na justa medida do que vê, do que diz e do que induz. Não chamemos a isso cegueira. De resto, dizer a um cego que é cego não o faz ver. É fundamental que aprendamos a respeitar o cego e o surdo e o mudo, porque ver não corresponde a ter visão.
É preciso e imprescindível fazer um percurso de aprendizagem daquilo que já se sabe há muito. Não basta, relativamente a um assunto, fornecer as conclusões, ou as sínteses, do mesmo modo que, para quem não sabe escrever, não basta mostrar as palavras escritas para ela ser capaz de escrever. No conhecimento, na aprendizagem, a apropriação das trivialidades é tão fundamental como se cada aprendizagem fosse uma invenção, de novo.
Vulgarmente, quando alguém se entusiasma, por exemplo, com ideias consabidas, como se as tivesse criado, ou porque as criou, embora elas já o tenham sido por outros, logo aparecem críticos enfastiados a desmerecer novos Sócrates e Platões, como se isso já não tivesse valor. Como se o facto de alguém pensar o que outros (até filósofos importantes) já pensaram, fosse menos importante por isso.
A educação como um produto que se pode comprar é algo que se integra na tendência actual dos poderes do dinheiro, à semelhança do que acontecia com certas bulas papais. A ideia e a percepção de que o dinheiro pode comprar a virtude (em sentido amplo) andam muito próximas da ilusão de que a droga transforma um farrapo num deus.
Há uma ilusão, talvez compreensível se considerarmos o processo de pensamento, de aspiração e de adaptação dos humanos, de que podemos saber sem aprender, valorizando até alguma espécie de saber, supostamente, inato, que anda próximo do conceito de talento natural. Se há algo com que os humanos sonham, e almejam alcançar sem esforço, é prodígios. São muito facilitadores e estão em linha com a lógica da eficiência económica. Até há quem acredite que a inteligência não sabe, e que ser inteligente é fazer sem saber.

Carlos Ricardo Soares disse...

O que poucos consideram interessante e prodigioso é aprender, observar, ler, mais do que ler um livro sobre “como observar pássaros”, observá-los, de preferência com aquele livro à mão.
Mais do que escrever sobre o “espaço interior”, no cárcere, sobre o cárcere, manipulando palavras, como uma IA, observar, e descrever, porque a realidade é algo que não se pode meramente deduzir, como acontece com as fantasias, ad infinitum.
É muito importante centrar a educação nas aprendizagens como processo de realização e de envolvimento pessoal nos prazeres e nos trabalhos da vida.
E isto não é utópico. Está mais próximo das necessidades naturais do que transformar a educação numa linha de formação de mecânicos, por mais necessários que estes sejam.
Utópico é considerar “2+2=4” como liberdade de ensinar.

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo, a situação que descreve no primeiro parágrafo não é apanágio só, nem principalmente, de Portugal. A questão não se coloca, de modo linear, ao nível da inteligência, mas, em primeira instância, ao nível dos recursos culturais e financeiros do contexto de pertença (que se pode traduzir em ganhos de inteligência). A escola pública, descuidando o conhecimento e a estimulação de capacidades intelectuais, prejudica, em primeiro lugar, os mais vulneráveis a este duplo nível. Cordialmente, MHDamião