domingo, 18 de junho de 2023

UM TRIBUTO ATRASADO: A UMA OBRA-PRIMA DO CONTO UNIVERSAL

Por Eugénio Lisboa

Já me tenho encontrado em situações, na vida, causadoras de irreparável remorso: dívidas que só pagarei, quando o credor já disso não puder tomar conhecimento. Vou dar um exemplo e poderia dar outros.

Imagem recolhida aqui.
Em 2011, o meu amigo brasileiro, Lêdo Ivo, um notável escritor da geração de 45 (ficcionista, ensaísta, poeta, cronista, memorialista, antologista, tradutor, invulgar em todos os géneros), enviou-me, como era seu hábito, o livro que acabava de publicar: uma selecção de contos seus, da responsabilidade de Afrânio Coutinho, editada numa série de “melhores contos”. Não sei se lho agradeci (espero que sim), mas sei que o não li, nessa altura.

Os livros que recebemos, de amigos, simples conhecidos ou desconhecidos, chegam muitas vezes em momentos de muito trabalho e não pouca confusão. Alguns “escondem-se”, sem nós darmos por isso, em recantos mais ou menos inacessíveis. Foi, num desses recantos malignos que, agora, procurando uma coisa muito diferente, deparei com este livrinho magro e de capa apetecível…

Lêdo Ivo morreria no ano seguinte (2012), em Sevilha, ido de Portugal, onde eu apresentara um seu livro de poesia: foi a última vez que estivemos juntos. Os brasileiros têm notáveis contistas, de que o mais notável é talvez Machado de Assis. O seu conto “A Missa do Galo” foi dos encontros mais emotivos e profundos que até hoje tive com a ficção universal. Outro conto, que também profundamente me marcou foi também brasileiro e também de Machado de Assis: “Uns braços”.

Pois bem, ouso dizer que um dos contos desta bela selecção de ficção curta de Lêdo Ivo, congeminada por Afrânio Coutinho, “Quando a Fruta Está Madura”, é um dos mais belos contos da literatura universal e que não temo coloca-lo a par de “A Missa do Galo”, de Mestre Machado.

Todos os contos de Lêdo Ivo são de uma qualidade singular, mas “Quando a Fruta Está Madura”, leva-nos ao fundo das coisas, às emoções do Génesis, à descoberta inesperada de um mundo nascente, de um gozo agónico e delirante, onde o carnal e o vegetal se confundem e onde a confusão é um prazer inefável.

Neste conto, como no de Machado, o que se não diz e ocupa, não escrito, as entrelinhas, é tão decisivo, que temos a impressão de havermos chegado, por fim, muito perto de decifrar mistérios, até aí fechados em cofres inviolados. O meu encontro tardio com este tesouro do conto brasileiro acende em mim o remorso permanente de não ter podido dizê-lo ao autor, em tempo útil e de legítimo festejo.

A história literária é também feita destes desencontros. Edgar Poe morreu convencido de que a sua obra era um fracasso total, ignorada por todo o mundo. Para cúmulo, seria a França e não o seu próprio país a reconhecê-lo por fim.

Não foi, felizmente, o caso de Lêdo Ivo, que morreu coberto de glória. O desencontro de que falo tem dimensão modesta e é só a mim morde, mas sem reparação possível. 

Eugénio Lisboa

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