A auto-estima de José Jesus não
académico do futebol chegou ao extremo de afirmar com a "imodéstia"
do outro que dizia ser muito inteligente e muito modesto : "O meu grande
objectivo é deixar marca portuguesa como o Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral
e por aí fora" (CM/TV, 17/07/2018). E julgava eu ingenuamente que tinha
sido pelo "cachet" que iria ganhar em Terras de Santa Cruz!
Em contraste, afirmou o académico José
Mourinho: “Seria sempre treinador de futebol, mas sem a faculdade seria
assim-assim e nunca muito bom” (“Record”, 24/03/09).
O doutoramento honoris causa, pela
Universidade Técnica de Lisboa do licenciado em Educação Física pelo
ISEF/Faculdade de Motricidade Humana José Mourinho (1984) fez-me folhear
páginas de recortes de artigos de jornais por mim escritos ao longo de várias
décadas para neles rebuscar um tema que tem sido motivo de discussão pública.
Nessas páginas, encontrei fundamento
para a evolução e teorização do actual futebol nacional que longe se afastou do
tempo das chamadas “balizas às costas” por ser o que é hoje: uma indústria que
faz correr rios de dinheiro e apaixona multidões de todo o mundo e o tornou
matéria de estudo académico, como demostra a cerimónia que serve de título a
este texto.
Décadas atrás, Carlos Miranda, ao tempo
director de A Bola, ao escrever que “Carlos Queirós é um caso de predestinação
comparável a Mozart” (que, como se sabe, aos quatro anos já tocava cravo e aos
cinco ensaiava os primeiros passos da composição) deu o mote a uma discussão
que corre o risco de se eternizar. A razão parece-me simples: nasce-se poeta e
escritor, por exemplo. Mas não se nasce médico ou professor de Educação Física.
Sustento esta opinião no facto de na
proliferação de licenciaturas por todos os escaninhos do país, numa girândola
de matérias impensáveis há poucos anos atrás, não haver cursos universitários
de Poesia e os melhores escritores portugueses não serem licenciados em Letras:
Ferreira de Castro tinha a 4.ª classe do ensino primário, José Saramago o
extinto curso industrial, António Lobo Antunes o curso de Medicina, etc., etc.
Assim, de igual forma, nasce-se predestinado para a prática do futebol de alta
competição (Carlos Queirós e José Mourinho foram-no só medianos), mas não se
nasce treinador de futebol. E é essa confusão que tem retardado o progresso do
futebol, uma arte e uma técnica hoje com foros de cidadania académica.
Mas esta discussão não é apenas dos dias
de hoje. Do mundo distante de milénios das actividades corporais da Antiga
Grécia chegou até nós a polémica entre práticos e teóricos. Segundo Galeno
(célebre médico grego da escola de gladiadores, tido como pai da actual
Medicina Desportiva), os treinadores troçavam das teorias dos professores de
ginástica (pedótribas) e dos médicos sob o pretexto de que quando se não tem a
prática do ofício não deve ser reconhecido o direito de discutir sobre coisas
desconhecidas!
Como escrevi na altura, Severiano
Correia, treinador e antigo jogador de futebol, já falecido, fez-se prosélito
desta teoria ao subscrever parte da entrevista de Balmanya, então treinador do
Bétis de Sevilha, em A Bola, e em que este “se mostrava muito surpreendido com
o facto de o Sporting, para além de um treinador de futebol, também ter um
preparador físico, situação que não compreendia, uma vez que o técnico deve ser
o único responsável por toda a orientação da equipa” (“Tribuna”, Lourenço
Marques, 05/03/64).
Por sempre ter defendido a necessidade
de ser um professor de Educação Física a ministrar a preparação física das
equipas de futebol (e das outras modalidades desportivas), da resposta que me
mereceu esta provocatória opinião, respigo: “Ainda recente, o caso até de um
treinador de futebol que, pela experiência de 30 anos, reduz à expressão mais
simples os conceitos laboratoriais da Medicina Desportiva e da Metodologia do
Treino” (“Notícias da Tarde”, Lourenço Marques, 06/03/64). Reacendia-se uma
polémica tendo como protagonistas professores de Educação Física, médicos de
Medicina Desportiva e treinadores de futebol!
Anos volvidos, ao ler na imprensa que,
numa reunião do Sindicato Nacional de Treinadores de Futebol, fora levantado o
problema dos técnicos de Educação Física orientarem a preparação
técnico-táctica das equipas profissionais de futebol (a preparação física
tornara-se já matéria de consenso), não pude deixar de intervir nesta matéria,
escrevendo: “Claro que quando um bacharel em Educação Física [de posse do então
curso médio de instrutores de Educação Física] nos dá conta de muito ter
aprendido, no aspecto da preparação física, com um treinador de futebol, ainda
que de gabarito, mas sem preparação académica escolar, todas as conclusões, a
partir daqui, são possíveis: até a de considerar exercício ilegal de profissão
o facto de um licenciado em Educação Física treinar uma equipa de futebol”
(“Jornal Novo”, 15/01/77).
Contrariando os que julgaram ver no
futebol uma actividade profissional em que os antigos jogadores de futebol,
agora treinadores de futebol, seriam os seus teorizadores, seguiu o
desporto-rei a evolução dos outros domínios do saber, reconhecendo a vantagem
de uma formação superior para os respectivos agentes.
Assim, numa primeira fase (ou fase
empírica) o futebol esteve entregue a práticos, antigos jogadores de nomeada
com cursos de treinadores de fim-de-semana (ou pouco mais), merecedores de
gratidão porque cabouqueiros do actual futebol português, de que é justo
realçar os nomes de Pedroto, Tony ou António Oliveira, por exemplo. Numa
segunda fase (ou fase pré-científica), surgiram os então instrutores de
Educação Física, Henrique Calisto e Hernâni Gonçalves. Na fase actual ou
terceira fase (fase científica), aparecem, entre outros, os teóricos de
formação superior em Educação Física (com ou sem a recente “Opção de Futebol”),
Carlos Queirós, Jesualdo Ferreira e Carlos Carvalhais.
Consequentemente, não posso deixar de subscrever a opinião categorizada de Joseph Blatter, então secretário-geral da FIFA, quando afirmou que “Carlos Queirós e os seus jogadores praticam o verdadeiro futebol do futuro” (“A Bola”, 23/06/91). Todavia, o messianismo de um super-treinador, capaz de tudo vencer, é carga demasiado pesada para os frágeis ombros humanos, ainda que musculados com os mais altos graus académicos ou títulos honoris causa universitários. Ora, como se leu, em letra de caixa alta, e em título de reportagem in’ “O Jogo” de 24/03/09, “o doutor Mourinho também é humano”. E, como tal, sujeito a errar, como ele próprio humildemente reconhece (ibid.): “Estou disposto a trabalhar o jogo até à exaustão, a perder horas e horas. A ideia é a de tentar reduzir a imprevisibilidade do jogo”, explicando que nunca o conseguirá fazer na totalidade uma vez que “há sempre uma bola que vai ao poste ou um jogador que comete um erro” (a que eu acrescento um imponderável não menor: o árbitro que desvirtua o resultado dos jogos deliberadamente ou não). Não é a bola redonda havendo árbitros que não descortinam um palmo à frente do nariz?
2 comentários:
Não tive tempo de vir comentar este post.Outro texto bem escrito e simples,cujos sintéticos parágrafos abordam muita coisa, a assinatura "Rui Baptista" sinónimo de comunicação neste blog. Creio que o aperfeiçoamento de qualquer estrutura necessita de boa comunicação, mas de comunicação no sentido de perceber que embora ela se exerça pode não estar de facto a acontecer. Quanto a graus académicos, lembro-me sempre do 1º ministro inglês John Major, sucessor de Thatcher, que não frequentou a universidade.
muito bom
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