terça-feira, 15 de setembro de 2020

EM CUMPRIMENTO DE UMA PROMESSA

“Um médico que só sabe de medicina nem isso sabe”
(Abel Salazar). 

Em resposta a um comentário, subscrito pelo professor Carlos Ricardo Soares, ao meu “post” publicado neste blogue, intitulado “A polémica e razões com razão e sem razão” (10/09/2020), prometi: 
“Possivelmente, em breve, publicarei um texto pedindo a sua benevolência para a sua leitura e apreciação”. 
Brevíssima nota: A título justificativo, seja tomada em atenção que este texto foi escrito por um amante (aquele que ama) devotado aos complexos caminhos da Filosofia, embora, apenas, habilitado com estudos académicos de manuais do antigo 7.º do antigo ensino liceal, correspondente ao actual 12.º ano do ensino secundário, para prosseguimento de estudos superiores de natureza científica com foi o meu caso.

Posto isto, segue-se o cumprimento da minha promessa com este texto: Abel Salazar foi professor universitário de Medicina, em inícios e meados do século passado, com um notável e ecléctico saber nos diversos domínios científicos e culturais: médico, escritor, pintor, escultor e filósofo, tendo-se doutorado, em 1915, com 20 valores com a tese Ensaio de Psicologia Filosófica.

Destarte, a questão que se põe reside na pergunta e respectiva resposta. Deverá a Filosofia ser sobrevalorizada no âmbito dos cursos de humanidades e descreditada no domínio das ciências naturais? Aliá, a questão nem sequer é nova! 

Segundo Georges Gusdorf, “na primavera de 1964, assistiu-se ao facto de “os decanos da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências da Universidade de Paris, proclamarem que a Medicina é doravante uma ciência; ninguém poderá pretender ser iniciado se não for geómetra, se não possuir noções de base como as de função, logaritmo, derivadas. A formação médica pressupõe uma escolaridade secundária que passa pelas classes terminais de ciências e de matemática dos liceus”. (“Da História das Ciências à História do Pensamento”).

Ainda segundo este autor, “os distintos decanos preveniam os interessados e as famílias contra a deplorável perda de tempo e de inteligência que representaria um estágio na classe de Filosofia. Um jornalista foi, então, perguntar a estudantes de Medicina, escolhidos ao acaso, o que pensavam desta declaração. Responderam-lhe que lhes parecia, pelo menos, impensada.

O conhecimento dos logaritmos é talvez útil ao médico, mas o conhecimento do homem e da condição humana é primordial; é deplorável que não entre em linha de conta na aprendizagem médica. Os estudantes tinham cem vezes razão em denunciar esta forma particularmente nociva de obscurantismo contemporâneo, que existe entre os potentados universitários como no homem da rua” (id., ibid.). Este descabido, ridículo e insolente ataque à matriz de todas as ciências é tanto mais insólito quando nomes grados da Ciência se distinguiram no frutuoso deambular pelos caminhos de um Conhecimento sem fronteiras. 

Três exemplos, de entre muitos: Max Planck, físico e Prémio Nobel da Física (1918), preocupado com a relação entre a ciência e religião ; Ernest Krestchemer, médico psiquiatra alemão, doutor “honoris causa” em Filosofia pelas Universidades de Wurzburgo e Católica do Chile; e Bertrand Russell, matemático e filósofo britânico, “Prémio Nobel da Literatura”, em 1950. E isto para não falar já em Albert Einstein, presença obrigatória em diversos manuais de Filosofia!

Na verdade, chegou-se a níveis de ignorância que campeiam entre os próprios diplomados do ensino superior e que não são escamoteáveis por mais tempo, pese embora, como escreve Mario Perniola, professor de Estética da Universidade Tor Vergata de Roma, “haver sempre uma caterva de ingénuos prontos a escrever a história da última idiotice, a solenizar as tolices, a encontrar significados recônditos nas nulidades, a conceder entrada às imbecilidades no ensino de todas as ordens e graus, pensando que fazem obra democrática e progressista, que vão ao encontro dos jovens e do povo, que realizam a reunião da escola com a vida”.

Num contexto de elevada qualidade e numa tradição multissecular na formação de elites porque, como sentenciou A.Tchekov,"a universidade revela todas as capacidades, até as incapacidades", numa altura em que novas e, ainda mais, facilitadoras formas de ensino são ministrados cursos técnicos superiores profissionais despojados de uma necessária formação cultural a que a leitura constante de textos literários e a reflexão filosófica conduzem.

Tempos houve de formação de uns tantos diplomados pelo ensino superior universitário privado, sem mencionar o estafado exemplo do ex-ministro Miguel Relvas, que sancionavam a ignorância. "Ipso facto", os claustros universitários do ensino oficial devem manter-se como guardiães esforçados da Cultura Humanística, do Conhecimento Científico e da Investigação Pura e Aplicada. 

O ensino não deve nem pode ser um prometedor de promessas não cumpridas.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Na parte que me toca, o amor da sabedoria foi sempre o grande amor. E esta paixão sempre se revelou, para mim, o melhor antídoto contra outras paixões. Tudo era, para mim, uma questão de senso, de nexo, de coerência, de sentido, de valor, de entendimento e de harmonia com quem me rodeava. A única forma de haver entendimento e harmonia com a catequista, o padre, as beatas e as professoras, era reproduzir de cor e salteado o que eles mandavam. Havia muitas outras pessoas, analfabetas (de escrever, ler e contar), que me transmitiam a noção empírica de que todo aquele teatro, à volta de uma escola e de uma igreja e, lá mais em cima, na sede do concelho, o tribunal, o quartel e a esquadra da GNR, era de tal modo simbólico e cifrado, para não dizer enigmático, que tinha mais pena deles, com as suas plumas e vestes ritualizadas, quando não cheios de jactância na hierarquia das procissões coroadas de interminável e poderoso foguetório, do que dos pedreiros cobertos de pó, a tossicar na taberna, vítimas da silicose e do cancro do pulmão pela sílica, enquanto os filhos deles, que eram meus colegas de catequese e de escola, passavam fome e aprendiam a agradecer a Deus a sorte que tinham. As minhas dores e as minhas raivas e as minhas frustrações, por mim e pelos outros (familiares, amigos…) encontravam eco no conforto religioso das pessoas ignorantes que me rodeavam, em casa, na aldeia, na catequese diária, fosse da escola fosse da catequista, ou no castigo de algumas dessas pessoas que exerciam a autoridade, com violência, sem necessidade de a justificarem, fazendo recair sobre mim, criança, jovem, adulto, o ónus de justificar a minha conduta.
Quando entrei na fase de saber que o mundo não tinha começado quando nasci e que não era apenas o meu quintal, a minha aldeia, paróquia, professora, e que havia uma cidade, e médicos e farmácias e hospitais e depois, outra e outra e oceanos e filmes, tudo era mais difícil de conciliar, mas o amor da sabedoria, impaciente, tantas vezes cruel e ingrato, foi-se mostrando vantajoso como uma arma de defesa pessoal, ou de defesa geral, numa guerra. A todas as tentativas, mais ou menos reais, mais ou menos disfarçadas de ordem, ou simplesmente perpetradas, de me conduzirem, ou subjugarem, ou ignorarem, ou desprezarem, eu aprendi a perceber que a razão é a arma dos fracos e que a sabedoria é como um grande exército de razões. Esta consciência, resultante de muito pensamento construído sobre o pensamento e as ideias de tantos filósofos e pensadores e escritores, permitia-me colocar um médico, ou um juiz, ou um engenheiro, no seu lugar profissional, do mesmo modo que a mineralogia, a zoologia, a botânica, a química, estavam nos compêndios respectivos. A minha passagem pelas ciências, numa altura em que o país fervilhava por todo o lado e todo o tempo era pouco para nós, jovens à procura de saber quem tem razão, mostrou-me que a vida, a acção, a dinâmica, os desafios, os combates, a adrenalina, não estavam numa bancada de minerais, ou num laboratório de química, ou na exploração e conhecimento da flora. O carácter de urgência de certas situações, altera as prioridades.
(Continua)

Carlos Ricardo Soares disse...

(Continuação)
Havendo prioridades a considerar na construção de um currículo académico, ou de um plano de formação profissional, estas têm mais a ver com questões de ordem técnica e prática, funcional, do que com razões de ordem teórica ou filosófica. Está fora de questão que um estudante, qualquer que seja a função ou a profissão que venha a desempenhar, só por ser estudante deva estudar tudo o que há para saber sobre todos os domínios.
Outra questão será: estará em melhores condições para abordar clinicamente um humano, do ponto de vista das medicinas, um médico robot, que só sabe de medicina (isto é possível?-esta era a provocação de Abel Salazar), ou um médico humano?
Para não me alongar, e deixando implícito muito do que poderia explicitar, não acredito que um robot possa filosofar. Que, tomando a realidade (que equivale ao que conhece) possa definir o ser tendo em consideração: o ser como um poder ser que foi /um dever ser (pelo menos quando falamos de ética) que é, e como ele, robot, quer ou deseja que seja…
Mas o médico, enquanto homem, é um filósofo que vive integrado num sistema de acção e de pensamento e de valores que, em grande parte, já assimilou o que os sistemas de cultura assimilaram ao longo da história. Este sistema de pensamento e de acção é um sistema de linguagens e de lógicas, nomeadamente matemática, cujo domínio varia muito de pessoa para pessoa e de robot para robot.
Não acredito que os robots decidam com base em valorações próprias, que não sejam programadas por humanos, mas os médicos fazem-no.
Neste capítulo, por ex., se é indiferente para o mundo que uma pessoa viva ou morra, já quanto à vantagem política e económica na sua sobrevivência, ainda que enfermo, ou na sua morte, os médicos e a indústria farmacológica e as tecnologias da saúde e todas as profissões que dependem do tratamento das pessoas, tanto ou mais do que os direitos fundamentais do homem e do cidadão, são um baluarte e uma fortaleza, cujos interesses, quando mais não sejam de facto, garantem o respeito pela saúde e pelas vidas, por mais inúteis ou absurdas que sejam do ponto de vista de qualquer filosofia, religião, ideologia ou sistema de valores.

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