sexta-feira, 29 de maio de 2020
Daisy Miller: o turismo popular e (sem nada que ver) as doenças ainda sem cura
“Daisy Miller” é a novela de Henry James (1943-1916) mais conhecida, a qual aponta para as diferenças entre americanos e europeus e para a igualdade das mulheres, numa altura em que esta quase não existia. Também pode ser vista assim, claro, mas não foi isso que mais me chamou a atenção. Foi, por um lado, a popularização do turismo e, por outro, as doenças que existiam e ainda não tinham cura.
Escrita em 1878, a novela refere como o narrador encontrou Daisy Miller, uma jovem americana normal e independente, de certa forma ingénua e sem malícia, com pais ausentes e um irmão mal-educado. Sem pensar nisso nem o desejar propriamente, Daisy causa escândalo. Alguns querem proteger a sua reputação enquanto outros evitam encontrá-la. Curiosamente, Henry James coloca-a como turista americana num hotel (Trois Couronnes) da mesma cidade de Julie ou a Nova Eloisa de Rousseau, Vevy, perto do lago Lemano, em Genebra, agora com muitos turistas americanos. Uns anos antes, Lord Byron alugou um casa, a Vila Diodati, a cerca de cem quilómetros, no mesmo lago. Nesta, esteve com Mary Shelly, Percy Shelley e John Polidori, sendo nesta escrito o “Franskestein” de Mary Shelly e o “Vampiro” de Jonh Polodori.
Havia turistas de todos os países, claro, mas não tantos como os americanos. Desde meados do século dezanove que o turismo americano era uma indústria em grande crescimento. Os nobres e intectuais ricos faziam o que ficou conhecido como o “grand tour,” como parte da sua formação, mas é com os americanos que a actividade de visitar se torna verdadeiramente popular. Por exemplo, Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), último presidente da primeira república, antes da ditadura de Oliveira Salazar, trabalhava alguns meses a gerir os negócios e depois viajava durante o resto do ano. Vamos encontrar reflexos dessas viagens nas pitorescas “Novelas Eróticas” onde conhece e foge na Holanda com uma jovem judia, encontra num barco uma jovem brasileira e, em Sevilha, onde encontra uma jovem cigana, entre outras. Sabemos que Teixeira Gomes viajava muito e que tinha até uma mala especial. Por outro lado, no “Moby Dick” vamos encontrar Ismael que nunca pagava para ver o mar e viajar. Vários autores vão escrever sobre as suas viagens. As viagens eram realizadas e comentadas, mas por um grupo restito. Vai ser com os americanos que a actividade de viajar se vai generalizar como indústria. Os mais cultos seguiam os percursos dos seus autores favoritos, enquanto os outros seguiam os primeiros ou compravam os programas das agências. Gerou-se assim um grande fluxo de turistas americanos conhecidos pelo menos até aos anos setenta como “camones”. É muito curioso tentar perceber esse fluxo popular do turismo que se vai estender a todos e agora com a covid-19 está algo parado. E vai haver uma reacção contra a massificação e popularidade desta actividade. Os intelectuais achavam que viajar por motivos “fúteis” era absurdo. Ralph Waldo Emerson (1803-1883), por exemplo, escreverá que "viajar é o paraíso dos tolos." Ele refere-se a encontrar a felicidade em locais longinquos mas a ideia é generalizávela outras actividades turisticas.
Na mesma altura passavam-se fomes periódicas na Europa. Ainda não tinham sido inventados os adubos sintéticos. Os alemães, suecos, irlandeses, italianos, judeus e polacos, entre outros, vendiam-se quase como escravos para viajarem até ao novo mundo. Os portugueses iam mais para o Brasil, mas alguns também foram para a América. Muitos não tiverem sucesso, quase todos mudaram de nome ou engrossaram os conhecidos bairros étnicos, alguns tiveram sucesso e muitos foram vítimas de xenofobia. É aliás curiosa a pergunta do irmão "se o narrador era mesmo americano." Mas não se julgue que na América tudo eram rosas. A alimentação era má e perigosa. Os medicamentos um risco sem controlo. Nos anos sessenta do século XX, as coisas já tinham melhorado muito para todos, com as férias pagas na Europa os turistas europeus poderão ultrapassar os americanos, Mesmo noutras coisas, como é sabido, a América ficou para trás.
A paisagem é bela. Temos o lago, as montanhas e a neve. Mas os mosquitos e as doenças espreitam. A tuberculose, a malária e outras infecções. Algumas pessoas procuram tratamentos, outras a beleza. O lago fica no sopé dos Alpes, onde se situa Davos, a cerca de 300 km, outro local mítico, onde uns anos mais tarde será escrita a “Montanha Mágica”. Chamonix fica a cerca de cem quilómetros. Tudo parece bem. Só que não.
Em Roma, Daisy Miller vai morrer rapidamente de malária (conhecida ali como febre italiana). Como referi, é triste, mas não era uma morte inesperada. As doenças eram muito comuns. O homem mais rico do mundo, um Rothschild, morreu nessa altura de uma infecção, por exemplo. Mais tarde vieram as guerras e a gripe pneumónica.
Na véspera da segunda guerra mundial ainda havia paludismo, ou, o que e sinónimo, malária, junto aos rios e lagos da Suíça, Itália, Espanha e Portugal. Eram as febres tercãs e as sezões. Foi o DDT que acabou em boa parte com o paludismo nestes paises. Podemos agora saber e dizer coisas que na altura não sabíamos, mas não deveremos esquecer as lições da história da ciência.
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