sábado, 2 de maio de 2020

A CIÊNCIA E A CRISE DA COVID19


Minhas declarações à LUSA sobre a resposta da ciência à actual pandemia, que a agência já divulgou (ver https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/quem-chegar-primeiro-a-uma-vacina-segura-e-eficaz-vai-ficar-rico-num-mundo-em-suspenso-a-ciencia-esta-mais-ativa-do-que-nunca), juntamente com declarações do David Marçal:

Nesta crise pandémica que tem fechado muitas actividades a ciência está mais activa do que nunca. Apesar de haver alguns laboratórios e institutos fechados em muitas partes do mundo, o certo é que o cérebro não desliga. O confinamento e o desmarcar de compromissos proporcionam um ambiente

propício para o estudo e reflexão. E, estando as viagens muito limitadas, os encontros entre cientistas podem fazer-se através dos meios telemáticos que a própria ciência proporcionou (um cientista não pode fazer ciência sozinho, tem de comunicar).

Há aqueles cujo trabalho está, directamente ou indirectamente com vírus, doenças infecciosas e epidemiologia. É sobre esses que se exerce a pressão maior por parte da sociedade. A sociedade quer mais conhecimento  rapidamente assim, como também rapidamente: soluções: fármacos antivirais e o santo Graal que será uma ou mais vacinas. De facto uns e outras já existem, mas têm de ser testadas em grupos grandes de indivíduos para demonstrar a sua segurança, primeiro, e a sua eficácia, depois, o que demora tempo (meses ou anos), um tempo que neste caso será provavelmente encurtado. Há várias soluções a competir umas com as outras. O mais certo é não haver um remédio, mas vários, só se podendo ver depois qual é o melhor. Alguns anúncios que se estão a fazer são precipitados, não querendo mais do que ganhar a atenção mediática, que possa por exemplo garantir financiamento.

Em momentos de crise aguça-se o engenho humano: veja-se o caso da 2.ª Guerra Mundial, que nos deu o radar, o computador e a energia nuclear, que mudaram completamente o mundo. Talvez aí haja um paralelo: a utilização do radar foi inovadora e decisiva na Batalha de Inglaterra, os computadores de válvulas fizeram-se para melhorar a balística  e a bomba nuclear foi desenvolvida por algumas das melhores mentes do mundo nas instalações secretas de Los Alamos com o objectivo de pôr termo à guerra (haveria de dar a energia nuclear em tempos de paz). Mas ninguém consegue prever as soluções criativas precisamente porque são criativas.

Depois há muitos cientistas que não estando a fazer investigação em áreas relacionadas, mobilizando-se para a realização de tarefas práticas como testes ao novo coronavírus, ou a construção em impressoras 3D de equipamentos de protecção: há exemplos bons em Portugal.

Algo que tenho notado é que muitos cientistas, cuja área de trabalho tem pouco a ver com a doença como é o meu caso), estão a olhar para os dados, em Portugal como no mundo, para fazer modelos e descobrir tendências. A matemática sozinha é útil mas não muito, é preciso ter algumas noções de epidemiologia de modo a que os modelos tenham um olhar informado pela situação real. Neste bricolage com os números, que é relativamente fácil de fazer até com uma folha Excel, tenho visto alguns disparates e também algumas descrições argutas. Mas é difícil fazer previsões: o vírus é novo, tem um comportamento nalguns aspectos estranho e os resultados dependem criticamente quer de parâmetros que em parte são desconhecidos quer do comportamento das populações, que também não se pode adivinhar totalmente, apesar das imposições reinantes nalguns sítios.

Há grandes assimetrias nacionais e regionais e um trabalho interessante é a sua explicação. Tenho visto análises muito interessantes e é preciso tentar ver para além do nevoeiro mediático que resulta do manancial diário de dados (um dia não significa nada, pois há flutuações que não têm significado, e há números que não tem grande significado, apesar de serem amplificados pelas autoridades e/ou pelos media). Eu todos os dias de manhã olho para o Worldmeter e tento perceber para onde vão as coisas: embora lentamente, parece que na Europa o pior já foi. Mas convém ter muito cuidado pois o vírus pode a qualquer altura alastrar num sítio.

Uma mudança muito visível na ciência é a publicação rápida de resultados e análises. Neste momento qualquer trabalho em preprint relacionado com o vírus ou a doença é imediatamente colocado num servidor em acesso livre, mesmo antes de estar sujeito a apreciação por pares. Quer isto dizer que há muitos trabalhos que não estão certos. Pode não seu por fraude (que também as pode haver), mas por precipitação, por haver amostras limitadas ou por não ter havido suficiente cuidado na verificação.  Há conclusões contraditórias e serão precisas metanálises, pois é assim que a ciência funciona: com mais e melhores dados, as conclusões serão melhores. A ciência nunca é um artigo, mas assim o consenso que se gera a certa altura a partir da discussão de vários, muitos, artigos. A ciência não é o que um cientista diz, mas sim aquilo em que a comunidade, passado suficiente tempo, concorda. Isto pode parecer estranho a muita gente, mas a ciência não funciona por passes de mágica,  não tira coelhos da cartola.  Demora necessariamente o seu tempo, para se minimizarem os erros.

Certo é que há muitos meios à disposição quer no sector público, quer no sector privado. Quem chegar primeiro a uma vacina segura e eficaz vai ficar rico. Um processo moroso, logo que haja um protótipo funcional, será também o fabrico e a administração maciças. Será um grande desafio! Haverá sempre factores para lá da ciência: não conta só a ciência, mas também a ética, a economia, a política...

Estou em crer que haverá uma solução: ou haverá uma tecnologia farmacêutica, baseada na bioquímica, ou ganharemos imunidade (não sabemos por quanto tempo), perante exposição controlada ao vírus. Ou pode até ser que o vírus tenha mutações que lhe diminuam a letalidade, não sabemos.

Acima de tudo, a sociedade faz bem em confiar na ciência: o conhecimento é um bem inestimável, designadamente em alturas como esta. O conhecimento ganhará mesmo contra os seus inimigos, que os há sempre (por exemplo os que espalham notícias falsas e promovem a pseudociência). Mas a sociedade está também a aprender que a ciência não é uma fonte de certezas. Devemos confiar na ciência simplesmente porque, quando falamos do mundo natural (e nós e os vírus somos parte do mundo natural) o método científico é o meio mais fiável para fazer diminuir a incerteza. Como dizia no século XVI o médico português Garcia de Orta, que fez a primeira descrição europeia da cólera asiática:

- "O que não sabemos hoje amanhã saberemos."

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