sábado, 16 de março de 2019

A propósito da redução do tempo lectivo da disciplina de História nas escolas portuguesas



Imagem recortada daqui.
Tanto o Grego como Latim, por esta ordem, praticamente desapareceram do sistema de ensino público português. Apenas a resistência e dedicação de um pequeno grupo de professores de Clássicas permite manter um número residual de turmas a funcionar com um pequeno número de alunos.

As Artes é o que se sabe, ainda que muito debatidas e elogiadas, a sua expressão efectiva no currículo não é mais do que exígua, sobretudo se perspectivadas na continuidade do primeiro ciclo ao secundário.

A História está, agora, em debate, porém, a situação da Geografia não augura nada de bom e a Filosofia, parecendo que não, está por um fio.

A vontade de retirar do currículo certas disciplinas é manifesta e teve iguais avanços noutros países ocidentais.

Esta é, no entanto, a face mais visível do problema. Há uma outra face que tende a passar despercebida: a redução acentuada dos conteúdos. E em todas as disciplinas, incluindo as de Ciências. Estas poderão manter-se, mas os conteúdos menos úteis, funcionais, práticos desaparecem.

Na sequência de texto anterior (aqui) e de outros que tenho publicado neste blogue, a questão não está num privilégio especial das Ciências em relação às Humanidades, em termos de presença no currículo escolar (na disputa que daí emerge as Artes nem sequer são lembradas), a questão está em expugnar desse currículo tudo aquilo que não cabe na estreita visão do core curriculum, estabelecido em finais do Século XX nos Estados Unidos da América e, depois, adoptado como referência internacional.

Tal core, traduz-se numa tríade de competências (da Língua materna, da Matemática e das Ciências), susceptíveis de permitirem resolver problemas do quotidiano. Esta é, como os leitores saberão, a essência do Programa Internacional da Avaliação dos Estudantes (PISA), que tem sido um instrumento decisivo para concretizar o "alinhamento curricular", a uma escala muito global.

Acontece que certas competências que gravitavam à volta do core, e que contribuiriam para o propósito acima mencionado, estão, rapidamente, a tornar-se o seu núcleo. São as ditas competências "afectivas e emocionais", que dão corpo à componente curricular de "educação para a cidadania", ingrediente principal da "receita" que permite preparar "capital humano" para o "mercado de trabalho", ou, numa versão mais empolgada, de preparação do "capital humano capaz de ter sucesso no mercado de trabalho".

Se nas nossas reformas de 2001 e de 2011/12 essa tendência, imposta a um nível supranacional, já era bem visível, nesta, de 2016/17, é perfeitamente clara: o Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular é a sua concretização. As roupagens "humanistas" que reivindica são, na verdade, uma mistificação (de resto, pouco conseguida, pois, ao primeiro olhar ela torna-se evidente).

Voltando à "educação para a cidadania", que, neste momento, integra pelos menos dezassete áreas: sendo obrigatória no ensino básico e secundário, tornou-se disciplina ("Cidadania e desenvolvimento") nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. Ora, não tendo (felizmente) sido aumentado o horário lectivo e podendo as escolas, por recomendação da OCDE, gerir 25% do currículo, a opção seguida foi de retirar tempo a disciplinas consagradas em favor da nova disciplina. Segundo dados recolhidos através de questionário pela Associação de Professores de História, a História tem sido uma das disciplina mais sacrificada, não sendo a única.

Estando em causa não só a formação dos alunos, mas também lugares de professores, a questão tornou-se notícia, em jornais de primeira linha, como o Expresso, que aqui citamos. Miguel Monteiro de Barros, presidente da dita Associação diz que a situação é desoladora:
“Na generalidade verifica-se uma redução de 45 ou de 50 minutos por semana em cada um dos ciclos de ensino, incluindo no secundário. Casos há em que a redução é ainda maior”.
Se nada se fiz de substancial, a História, a Geografia, a Filosofia, desaparecerão, a breve trecho, tal como tem acontecido com o Grego e o Latim. E as restantes continuarão a ter cortes.

Lamento muitíssimo dizer o que se segue, e espero estar completamente enganada, mas não acredito que, a breve trecho, se faça alguma coisa. Explico-me em três razões:
1) As "orientações" internacionais (que os países adoptam e tornam lei) valorizam, acima de tudo, as tais "competências de cidadania", que, repito, se estão a tornar o núcleo do currículo escolar. Apenas um exemplo: Andreas Schleicher, o mais alto representante da OCDE para a educação, reafirmou recentemente, em Portugal, que são as competências como a adaptabilidade, a autorregulação, a comunicação, o pensamento criativo, a resiliência e/ou a resolução de problemas que, no futuro, hão-de fazer a diferença no sucesso dos adultos do futuro” (aqui). 
2) A multiplicidade de agentes sociais que se tornaram parceiros educativos na Estratégia de Educação para a Cidadania, ainda que com diferentes intenções, não estarão dispostos a abdicar do acesso directo aos alunos, professores e famílias, que se lhes abriu. Consta em documento curricular: “É desejável que as escolas (...) estabeleçam parcerias com entidades externas. A título de exemplo identificam-se e recomendam-se (...): Instituições de ensino superior e centros e redes de investigação; Associações juvenis; ONG; Autarquias e seus órgãos (...); Serviços públicos de âmbito local, regional e nacional; Grupos de cidadãos/ãs organizados/as, tais como grupos de voluntariado; Meios de comunicação social; Empresas do sector público e privado”. E, mais adiante: é preciso "realizar-se um trabalho em rede entre escolas e stakeholders” (aqui, p.14) 
3) A sociedade, que somos todos nós, acha muito bem que a escola mude, que inove, que deixe de transmitir conhecimentos teóricos, abstractos, descontextualizados, porque isso não faz as crianças interessar-se por ela, nem as prepara para a vida, para o futuro, para o emprego, para o sucesso. Em paralelo sempre que se detecta um problema que não sabe ou não quer resolver imputa a responsabilidade à escola: a violência no namoro, os problemas de ecologia, a alimentação, a sexualidade, etc, etc, etc. tudo tem de ser tratado na escola, não integrado nas disciplinas mas à parte delas, orientado, trabalhado e controlado por esses tais agentes sociais.
Com isto não estou a desvalorizar a iniciativa da Associação de Professores de História, bem pelo contrário, entendo que seria desejável a união das diversas associações de professores num problema que, insisto, é comum; o que quero dizer é que as três razões que indiquei são, na verdade, de grande peso e que a sua superação, a ser conseguida, implicará, antes de mais, consciencialização e muito empenho, o não se faz de um momento para o outro.

3 comentários:

Anónimo disse...

As disciplinas curriculares não tinham todas a mesma carga horária porque, essencialmente, umas eram mais difíceis de ensinar e aprender do que outras. Porém, na escola das aprendizagens essenciais, para não dizer mínimas, é praticamente obrigatório que todos os cidadãos completem o ensino secundário, portanto as matérias letivas devem ser expurgadas de todos os conteúdos que exijam um mínimo de inteligência e trabalho para serem compreendidos pelos alunos. Assim, num ambiente de indisciplina crescente em sala de aula, a Cidadania, na esteira das saudosas Área Escola e Área de Projeto, constitui-se como uma fonte de saber universal e humanista, onde os jovens cidadãos terão a oportunidade de apresentar, à turma e demais representantes da comunidade escolar alargada, vistosos trabalhos de grupo, em suporte multimédia, com os temas habituais de poluição, violência doméstica, discriminação da comunidade LGBT, flagelo das drogas duras, arte e grafitis, aquecimento global, prevenção dos fogos florestais, lince da Serra da Malcata em vias de extinção, pedofilia e clero católico, revolução dos coletes amarelos na França e em Portugal, alta cozinha versus cozinha rústica, guerras e bombas atómicas, crime e castigo, Prémio Nobel da Paz, e de outros que, nunca sendo abordados nas disciplinas maçudas, que exigem estudo, dão uma bagagem cultural muito consistente, e indispensável, para quem quer seguir estudos superiores na Universidade ou no Politécnico.
Até que uma próxima troika venha dizer que na escola secundária em Portugal estas novas palhaçadas também devem acabar porque ficam muito caras aos contribuintes. Infelizmente, nunca há culpados!...

José Meireles Graça disse...

A sociedade não acha nada disso que se diz no ponto 3) que ela acha. Na verdade, a "sociedade" delega, como sempre delegou, nos especialistas, a tarefa de decidir o que o ensino é. Ciente disto, a parte esquerda da intelligentsia, em Portugal e noutros lugares, minou os aparelhos de Estado para formatar as cabecinhas das novas gerações. Tem tido sucesso, tanto que que a maioria dos professores hoje engole acriticamente o pedagogês, a desvalorização das Humanidades e o conjunto de disciplinas destinadas a formar o Homem Novo preocupado em salvar o planeta, teoricamente da desgraça e praticamente do capitalismo. Adestrado no culto da igualdade e em vários tipos de engenharias sociais, todas tendentes a fazer tábua rasa de toda a sorte de tradição, toda a ideia de nacionalidade e todo o espírito crítico desalinhado. Que haja também quem julgue, sem ser de esquerda, que a sociedade do futuro requer um ensino do futuro, como se alguém soubesse realmente como ele vai ser, não muda nada. A diminuição da importância do ensino da História, da Filosofia e da Geografia, a benefício de propaganda neomarxista de engenharia social, não é inocente. Inocente é não perceber o que se está a passar há muito e julgar que, sem identificar o problema nem pôr o nome aos bois, se resolve o que quer que seja.

Helena Damião disse...

Prezado leitor José Meireles Graça
Na verdade, para ter um registo científico, a minha afirmação precisava de ser apoiada em dados recolhidos junto de diversos sectores da sociedade. Ela é, no entanto, apoiada no que me é dado perceber, com a atenção que dedico ao assunto. E o que me é dado perceber é que o conhecimento escolar, com destaque para o de algumas disciplinas é muitíssimo desvalorizado no discurso social que ouvimos, seja ela veiculado pelos meios de comunicação social, seja pelas conversas informais, seja, nos documentos legais e curriculares seja, até, por trabalhos académicos.
Cordialmente,
MHDamião

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