A crise do livro é real. Por isso são oportunas tomadas de posição como esta que recebemos deos subscritores:
1. Diagnóstico da crise que afecta o
sector do livro e da leitura
É hoje notório que a Cultura foi desvalorizada pelos
últimos governos de Portugal. Investe-se pouco na área cultural e noutras
afins, como a Ciência, para as quais o orçamento de Estado é sempre diminuto,
não passando do zero vírgula qualquer coisa.
Tratada como um parente pobre, a Cultura tem vindo a
ser subestimada como se nenhum valor pudesse trazer ao país, o que é falso. A
Cultura tem um papel crucial no desenvolvimento e progresso de qualquer país,
merecendo por isso maior investimento da parte do Estado e da sociedade civil,
como em tempos já aconteceu e tem lugar na maioria dos nossos parceiros na
União Europeia.
Não se trata de defender a tutela paternalista da
Cultura pelo Estado. Trata-se, isso sim, de defender que ao
Estado cabe um papel relevante na salvaguarda de condições mínimas para a
actividade das pequenas e médias empresas independentes do ramo editorial (editoras,
livrarias e distribuidoras) que, por serem tratadas do mesmo modo do que as
grandes (ou seja, com a mesma carga de fiscalidade, impostos e imposições
burocráticas, e rendas elevadas), vêm o seu impacto e o seu futuro sob ameaça
permanente, perdendo espaço para os grandes grupos e os grandes centros
comerciais onde a relação de proximidade leitor/livreiro se tornou inexistente
e a principal preocupação é o lucro.
Temos consciência de que o diagnóstico que se
segue é preocupante mas também temos vontade de contribuir para mudar este
estado de coisas. Por isso, na segunda parte propomos 15 medidas que consideramos essenciais para
ajudar a sair da presente crise, e iremos colocar este documento enquanto
petição pública para poder ser subscrito por todos os interessados.
1.1. Razões da crise que afecta as
editoras e livrarias independentes
Nos últimos anos tem vindo a crescer a percepção de
uma crise no sector do
livro e da leitura em Portugal. Importa reflectir sobre o que se está a passar,
para se poder apresentar soluções exequíveis o mais rapidamente possível. É que
está em causa o futuro de muitas famílias, a riqueza das nossas cidades, o
património cultural do nosso país.
Apresenta-se de seguida um diagnóstico sucinto do sector, começando pelas
principais razões que provocaram a presente situação de crise:
– concentração excessiva e concorrência desleal por
parte dos dois grandes grupos editoriais e livreiros, Porto Editora e Leya, nos
principais segmentos do mercado (livro escolar e livro generalista), que vem a
tornar-se notória e incomportável nas seguintes situações:
a) imposição unilateral de condições altamente
desfavoráveis às pequenas e médias e editoras, mediante a exigência de
descontos leoninos que vão já até quase 50% sobre o preço do livro (desconto
pouco abaixo do que é concedido às distribuidoras) e um regime de fornecimento
(vulgo conta-consignação) em que não arriscam um cêntimo e lhes dá a
possibilidade de prestarem contas quando querem (a perto de um ano como é o
caso das Livrarias Bertrand do grupo Porto Editora) para protelarem o pagamento
das vendas;
b) condições diferentes e discriminatórias no caso
inverso em que os descontos em muitos casos não vão além do desconto normal,
30%, e a modalidade mais praticada é o regime de fornecimento em conta-firme
com exigência de pagamento a 30/60 dias da emissão da factura;
c) frequentes infracções à Lei do preço fixo do livro,
algumas vezes penalizadas com multas que ficam muito aquém dos lucros obtidos;
d) condições desfavoráveis impostas pelos
hipermercados que, no que toca ao livro, só são suportáveis pelos dois grandes
grupos editoriais, graças à concentração de autores de maior venda que o seu
poder financeiro lhes proporciona.
Outras situações que afectam as editoras e livrarias
independentes são:
a) o recurso à figura do PRE (Plano de Revitalização
Económica) por parte de certos grupos livreiros, que obriga os pequenos
credores editores e livreiros a abdicarem automaticamente de 50% da dívida, e,
por vezes, o recurso subsequente à insolvência, deixando de pagar dívidas
elevadas que dificultam a subsistência das editoras fornecedoras (foi o caso
recente do grupo das livrarias Bulhosa que tem ainda a particularidade da
empresa que o comprou, como editora sua fornecedora, aparecer em primeiro lugar
na lista dos credores); esta situação é tanto mais imoral porquanto o fisco
arrecada logo o IVA no acto da facturação, e, a ressarcir o seu valor às
editoras fornecedoras que ficaram depauperadas por essas insolvências, só o faz
muito depois e mediante um complexo processo burocrático;
b) falta de estímulos na promoção do livro e da
leitura, sobretudo de autores portugueses (clássicos e não só), que poderiam
ter lugar mediante uma melhor utilização da televisão pública que é paga por
todos nós, da qual está ausente um programa diário de cultura que englobe os
países lusófonos e contenha uma vertente informativa extensa e sem
discriminação das editoras independentes;
c) o Estado português não presta qualquer apoio às
livrarias e editoras independentes de mérito comprovado que lutam com
dificuldades financeiras, seja quanto à minimização de impostos e carga fiscal
burocrática, seja na melhoria de condições de crédito e de arrendamento, seja
no custeamento de estágios neste sector para gente jovem desempregada;
d) os livros escolares, outrora publicados por
editoras grandes, médias e pequenas, estão hoje maioritariamente nas mãos dos
dois grandes grupos acima referidos que procuram controlar o mercado com
políticas que vão do aliciamento a escolas e professores a maiores descontos às
grandes superfícies que têm conduzido ao fecho de muitas das livrarias e
papelarias que os trabalhavam sazonalmente.
1.2. O
desinvestimento na leitura pública como ameaça ao desenvolvimento cultural
Uma política do livro democrática e sustentável tem
necessariamente que se articular com uma política da leitura. A
sustentabilidade impõe que se promova diariamente a diversidade cultural, para
atenuar efeitos nefastos advindos da concentração e homogeneização. A
diversidade cultural tornou-se uma prioridade consagrada em inúmeros documentos
internacionais desde os anos 1970, da UNESCO [1] ao Conselho da Europa e à
comunidade ibero-americana.
Nas últimas décadas, tem-se verificado a nível
planetário que a redução da diversidade no sector do livro corrói o pluralismo
de pontos de vista, experiências e criações, enfraquece o debate público e a
experiência humana, debilita a capacidade emancipatória dos cidadãos e das suas
comunidades. Como antídoto impôs-se a ideia da bibliodiversidade, que surgiu
nos anos 1990, e a qual necessita da articulação entre políticas do livro e da
leitura, e entre Estados e sociedades civis organizadas.
Mas não basta abraçar ideias, impõe-se dar-lhes
conteúdo prático, na aplicação das políticas públicas nos vários níveis do
Estado, envolvendo e responsabilizando os cidadãos e suas organizações.
Em Portugal, um dos pilares duma política integrada do
livro e da leitura têm sido as bibliotecas públicas municipais. Ora, estas
atravessam uma crise grave que urge solucionar. A crise liga-se a severas
restrições orçamentais mas é, acima de tudo, um problema programático. Que fins
se pretendem atingir? Que resultados se têm atingido? Que meios se devem
mobilizar?
Desde logo, em muitas bibliotecas não têm sido
devidamente acautelados os seus fundos bibliográficos. As novidades tardam, e
parte do atraso deve-se a ainda não ser sistemática a “catalogação na fonte”
dos livros, o que evitaria a duplicação de trabalho e impõe um urgente reforço
de meios específicos. Diversas juntas de freguesia e municípios deixaram de
investir na actualização consistente da oferta de livros nas suas bibliotecas.
O investimento parece ter sido desviado para o livro escolar, o que esvazia as
bibliotecas locais. Além disso, há bibliotecas municipais que têm fundos
preciosos de livros de autores portugueses dos séculos XIX e XX que estão em
depósitos distantes, sob o pretexto de que estas bibliotecas só devem
disponibilizar livros novos, quando o que devem é assegurar uma oferta o mais
generalista possível, incluindo quanto a autores e edições mais recuadas. As
reedições que se vão fazendo não cobrem tudo, há que atender públicos
diversificados (incluindo os que necessitam de pesquisar, cada vez mais um
requisito do próprio ensino, básico e superior), e nem todas as obras
relevantes podem ser contempladas no orçamento bibliotecário.
Outro problema grave prende-se com o incumprimento da
missão integral por estas bibliotecas, a que estão obrigadas dado o lugar
central que detém nas respectivas comunidades, enquanto pólos culturais e
educativos.
Como sustenta o Conselho da Europa desde 1970, a
cultura não é somente bens de consumo, mas sobretudo um espaço no qual os
cidadãos podem formar a sua própria cultura, posição que foi reiterada por
resolução da 1.ª Conferência de Ministros Europeus responsáveis pelos Assuntos
Culturais, em 1976.
Por isso, torna-se imperioso inverter o profundo
desinvestimento em actividades culturais promotoras do livro e da leitura, da
hora do conto à declamação de poesia e às oficinas artísticas. São estas e
outras iniciativas afins que colocam em interacção os cidadãos com actores
sociais e culturais diversos, permitindo e suportando a criação, a difusão
e o pluralismo culturais, mas também a integração e coesão
socioculturais. Para tal efeito, é crucial dotar estas iniciativas de recursos
próprios, para acabar de vez com o mau hábito de se considerar que o
trabalhador intelectual e artístico deve intervir nestes espaços a título
gracioso. Só assim será possível respeitar a sua dignidade profissional e
reforçar as vias de produção, participação e circulação culturais e de
integração sociocomunitária. E só assim também se porá cobro ao financiamento
de actividades culturais pelos próprios funcionários das bibliotecas (em
dinheiro para materiais, em combustível para deslocações, em horas
extraordinárias não pagas, etc.), um abuso do seu espírito de missão que tem
ocorrido em várias bibliotecas municipais. O bom investimento em equipamentos
promotores da literacia digital não deve comprometer o resto.
Por fim, estes espaços podem e devem dar um maior
contributo para a coesão territorial, o que só se consegue com a sua mais
eficiente distribuição territorial. Em primeiro lugar, o projecto de uma rede
de bibliotecas públicas cobrindo todo o território está por concluir e marca
passo, volvidos 31 anos (209 bibliotecas activas, para 308 municípios, ou
c. 2/3), com o Estado central alheado do seu programa de cofinanciamento de
bibliotecas municipais. Por outro lado, em muitos concelhos uma só biblioteca
fixa não chega a todas as populações, pelo que se impõe que o pivot central
estimule (e seja parceiro) do lançamento de bibliotecas itinerantes junto dos
municípios interessados, o que tem descurado. Para ambos os programas deve
procurar-se financiamento junto da União Europeia e doutro tipo de organizações
com empenho neste sector.
2.
Revitalizar o livro e a leitura - propostas e parcerias para vencer a crise
A situação do sector do livro e da leitura é
preocupante há já muito tempo, com as consequências que todos conhecemos no
encerramento de livrarias e editores independentes, bem como de distribuidoras.
Se nada fizermos tudo irá piorar.
As causas são variadas, mas há umas mais determinantes
do que outras, como se pode ler no diagnóstico acima exposto. Não têm um
responsável único. Há longos anos que editores e livreiros estão desunidos e de
costas voltadas, preocupando-se apenas com o seu “quintal”. Também o apoio
estatal ao sector da Cultura tem sido insuficiente, emergindo o livro e a
leitura como o elo mais pobre e sem voz. A concentração de editoras e livrarias
em dois grandes Grupos (Porto Editora e Leya) é um motivo adicional para que os
editores e livreiros independentes se unam na defesa dos interesses comuns,
quer para contrabalançar o domínio destes Grupos quer para tomarem medidas que
favoreçam a distribuição e as vendas de uns e outros, enriquecendo assim o
sector do livro em termos de diversidade e pluralismo. Nesse sentido, põe-se à
consideração das instituições do sector, das entidades públicas e da opinião
pública as seguintes 15 propostas.
1. Organização
de um calendário de eventos culturais nas livrarias tendo o livro e a leitura
como pretexto. Haveria uma melhoria na difusão do livro e dele todos
beneficiariam, incluindo os autores que contariam com muito mais divulgação.
Seria importante poder contar com o apoio de escolas (públicas, cooperativas e
particulares), no sentido de facilitar a deslocação de crianças para assistirem
e participarem em algumas destas iniciativas (por ex., hora do conto,
declamação de poesia, audição de criadores e de pessoas mais idosas e de
distintas pertenças étnicas e religiosas para despertar o conhecimento sobre
arte e história e a convivência inter-geracional, comunitária, cultural e
religiosa), integrando-as numa relação escola-comunidade que urge aprofundar e tornar
parte quotidiana da cidade, um elo cívico.
2. Criação de
uma base de dados (informatizada e integrada em intranet ou na internet)
abarcando todos os livros disponíveis tanto de livrarias como de editores
aderentes, trabalho a ser realizado enquanto estágio formativo por
desempregados ou por estudantes (enquanto componente prática de cursos técnicos
BAD ou universitários ligados às ciências da informação) destinado a futuros
documentalistas, bibliotecários, livreiros, vendedores, etc., e devendo
concitar-se (dado o seu interesse para a sociedade e a economia) o apoio
oficial sob o modo de comparticipação financeira desses estágios (através do
Ministério da Cultura e/ou do Ministério do Trabalho) e realizar-se parcerias
com outras instituições, como as universidades com estes cursos e a Associação
Portuguesa de Bibliotecários, Documentalistas e Arquivistas (BAD).
3. Criação de
cursos de formação para livreiros e outros agentes do sector (como os
vendedores, mediadores entre editores e livreiros e cuja profissão está hoje em
risco), paralelamente aos estágios acima referidos, apoiados oficialmente e
pela BAD.
4. Realização
de consultas junto dos parceiros aderentes para satisfazer pedidos de obras
inexistentes no stock da livraria ou da editora, melhorando
assim a capacidade de resposta, em vez do useiro “está esgotado” ou “não temos
de momento”. Também a consulta do editor é necessária, em vez do tal “está
esgotado”.
5. Participação
activa de uns e outros na divulgação do livro e na animação da leitura quer nos media do
Estado quer através de um programa de comunicação eficaz junto dos órgãos de
comunicação social (em especial dos públicos), das bibliotecas públicas
(municipais e escolares) e outras instituições.
6. Recuperação
da profissão de livreiro para efeitos fiscais, um direito elementar atendível
face ao facto de existirem outras profissões do sector do livro reconhecidas
pelas entidades competentes (como as de editor, tradutor, etc.).
7. Exigência
do cumprimento escrupuloso da Lei do preço fixo do livro, pilar de salvaguarda
da bibliodiversidade, impondo-se a fiscalização permanente da sua aplicação por
parte da Inspeção Geral das Actividades Culturais (reforçando-se a respectiva
equipa caso seja necessário) e a punição célere e agravada das violações deste
diploma, atendendo a que estas têm vindo a acumular-se e os prevaricadores são,
regra geral, reincidentes.
8. Aplicação
de procedimentos legais de combate à concorrência desleal decorrente do abuso
de posição dominante por parte dalgumas entidades, nomeadamente proibindo e
punindo a imposição de condições leoninas altamente desfavoráveis às editoras
independentes, como a exigência de grandes descontos no preço do livro e o
protelamento do pagamento das vendas, entre outras.
9. Aplicação
de procedimentos legais que evitem a penalização das pequenas e médias editoras
no quadro do Plano de Revitalização Económico, tanto enquanto credores que são
obrigados por este diploma a abdicarem automaticamente de 50% do crédito como
pela ausência de garantias legais no cenário de incumprimento do plano acordado
e do recurso à declaração de insolvência, como ocorreu já em vários casos
(veja-se o exemplo recente das livrarias Bulhosa).
10. Atribuição
de certos apoios às editoras independentes em dificuldades – à imagem do que é
feito em França, Canadá e outros países –, como a redução de impostos, da carga
fiscal burocrática e a concessão de crédito com melhores condições.
11. Criação de
um pacote para dinamização da presença dos editores e livreiros nos espaços
lusófono e ibero-americano, incluindo o reforço dos estímulos à divulgação, ao
intercâmbio e à exportação do livro (sendo central a redução dos custos de
transporte) e o apoio à participação em feiras do livro.
12. Estudo de
medidas para enfrentar os efeitos negativos decorrentes da existência dum duopólio do
livro escolar por parte dos grandes grupos editoriais.
13. Apelo às
juntas de freguesia e municípios para reforçarem o orçamento destinado à
actualização do recheio bibliográfico das suas bibliotecas, tendo em atenção a
necessidade de salvaguardar uma proporção significativa de aquisições às
editoras independentes, bem como a necessidade de se estudar esta situação a
nível nacional.
14. Apelo às
juntas de freguesia, municípios e Estado central para reforçarem o orçamento
destinado às actividades culturais promotoras do livro e da leitura (p. ex.,
hora do conto, declamação de poesia, oficinas artísticas), sendo crucial dotar
estas iniciativas de recursos próprios, incluindo a justa remuneração do
trabalho intelectual e artístico envolvido nessa programação.
15. Relançamento
do programa de cofinanciamento de bibliotecas municipais de modo a que o país
fique totalmente coberto por uma rede de bibliotecas públicas, incluindo nesta
as unidades itinerantes nos territórios mais carenciados, com maior área e/ou
mais densamente povoados, em diálogo com os municípios e as comunidades.
É do
entendimento dos subscritores desta carta aberta que a crise que o sector do livro e
da leitura atravessa só poderá ser superada se as entidades competentes
ponderarem urgentemente soluções construtivas como as que são avançadas aqui.
Além disso, estas medidas terão tanto mais eficiência quanto mais parcerias se
conseguirem criar. Daí o apelo ao envolvimento de todas as entidades
interessadas na promoção de uma cultura sustentável e cidadã, onde a
bibliodiversidade, o pluralismo e a capacitação de todos sejam pilares duma
sociedade democrática, progressista e em constante renovação.
Lisboa, 17
de Abril de 2018
Os primeiros subscritores,
José
Antunes Ribeiro (editor-livreiro na Espaço Ulmeiro Associação Cultural,
ex-fundador da Assírio & Alvim e da Ulmeiro)
Assírio
Bacelar (editor na Nova Vega, ex-fundador da Assírio & Alvim)
Daniel Melo (historiador,
investigador em política cultural e história do livro e da leitura)
[1] Veja-se, a título de exemplo, a Convención sobre la protección y la
promoción de la diversidad de las expresiones culturales, de 2005 (<http://es.unesco.org/creativity/convencion/que-es/texto>).
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