Podemos imaginar que a vida é uma Ópera em que um número astronómico de moléculas e iões contracenam para desencadear uma experiência única na história do planeta: a humanidade. Esta ideia é inspirada e fundamentada pela leitura de um livro que deve fazer parte de todas as bibliotecas portuguesas, públicas (incluindo as dos Conservatórios e Escolas de Música) e privadas: “Poções e Paixões – Química e Ópera”. É um livro magistralmente composto pelo químico João Paulo André, Professor de Química na Universidade do Minho, que nele nos mostra a sua extensa cultura operática, para além da sua grande capacidade de divulgar ao grande publico a ciência que domina: a Química.
Este livro teve 1ª edição
em Março deste ano, 2018, e foi publicado pela editora Gradiva na sua
incontornável colecção “Ciência Aberta”, dirigida desde o número 201 pelo
Professor Carlos Fiolhais. Nesta biblioteca de cultura científica, este é o
volume número 226. Fascinante! Deve passar a fazer parte da bibliografia das
disciplinas de História da Música e da Química, onde as houver!
É que esta obra é singular,
mesmo a nível internacional, na sua mestria de mostrar sem artifícios que a
Química está presente de forma natural num número inimaginável de Óperas,
género que teve o seu início em 1597, em Florença, com a Ópera “Dafne”, de
Jacopo Peri, no seio da Camerata Fiorentina. A Química moderna “nasce” cerca de
dois séculos depois, em 1789 e em Paris, com a obra “Tratado Elementar de
Química” de Antoine Lavoisier (saliente-se, que em Coimbra, Vicente Coelho de
Seabra, antecipa, a meu ver, este “nascimento” da Química, com a publicação
menos conhecida do primeiro volume de “Elementos de Chimica”, em 1788).
Ao longo de 450 páginas
(fôlego impossível para qualquer cantor ou actor operático, apesar de algumas
óperas se desenvolverem ao longo de muitas horas), João Paulo André não se
limita à Química e à Ópera. Para as contextualizar, descrever e eventualmente
explicar, escreve amplamente sobre a cultura humana no seu todo. A Ópera, afinal
de contas, aborda temas de toda a história e natureza da humanidade. E a
Química, apesar de muitos não o entenderem, está em toda a parte: somos feitos
de compostos químicos.
Pautadamente, em dez capítulos, o autor escreve com uma fluidez melódica e
surpreendente, sobre a cultura humana. Após um preâmbulo em que o autor
apresenta e discute algumas afinidades gerais entre a Química e a Ópera, o
livro começa com o fogo (“O elemento roubado”), terminando na radioactividade e
na bomba atómica. Pelo meio, revisita o universo alquímico, a metalurgia, o
ouro, os metais pesados, as plantas venenosas e farmacêuticas, o tabagismo, as
bebidas alcoólicas, o cianeto dos campos de concentração nazis, os neurotransmissores
e as hormonas do amor.
Da vasta galeria de personagens que são referidas nesta obra, fazem parte
os grandes envenenadores da História e Mitologia (Medeia, Mitridates,
Cleópatra, Agripina, Locusta, família Bórgia, Marquesa de Brinvilliers…),
vários pares amorosos célebres (Romeu e Julieta, Tristão e Isolda…), passando
por Marilyn Monroe ou Rasputin. São os condimentos de poções e paixões que dão
corpo ao título deste livro.
Este livro está profusamente ilustrado ao longo de uma narrativa de leitura
mais do que acessível: cativante. Sem perder o rigor próprio da ciência, o autor “delicia-nos” com uma prosa elegante. Isto debruado com a referência cuidada a
inúmeras óperas e árias líricas, e à história da música e da ciência centrada,
neste caso, principalmente na Química.
Como nota de referência, refira-se que na génese deste livro de divulgação
científica encontra-se a palestra “Ópera, Venenos e outros Químicos”, proferida
pelo autor na Universidade do Minho em Novembro de 2011, no âmbito do Ano
Internacional da Química.
João Paulo André
Neste livro, para além das oportunas notas de rodapé, encontramos uma
cuidada bibliografia que, para além de referenciar o conhecimento descrito,
permite novas descobertas para o leitor mais interessado. Ademais, o autor
proporciona-nos no final um muito interessante glossário de “termos científicos
e musicais, onde, num encontro inesperado de culturas, a par de entradas como
“agonista” ou “barbitúrico” se pode encontrar, por exemplo, “atonal” ou
“barítono”, refere-nos João Paulo André.
"Poções e Paixões - Química e Ópera" mostra, segundo o autor, “que, se por um lado, a
Química é a ciência central que está em toda a parte, até mesmo no amor, a
Ópera é muito mais do que o espectáculo em que “o barítono ama a soprano, que ama
o tenor”.
Ainda na primeira edição, na minha opinião, este livro merece uma outra dimensão editorial: capas duras que suportem um tamanho superior que permita ao
leitor desfrutar melhor das inúmeras ilustrações que compaginam a escrita
magistral. Mas, nessa eventual outra edição, a actual capa, autoria de Armando
Lopes, deve manter-se, tão interessante que é! Deve-se também referir que a
presente edição teve o apoio da Sociedade Portuguesa de Química e da Ciência
Viva.
Neste livro, que é para todos, o Professor Carlos Fiolhais escreve o
prefácio. E nele, diz sobre o autor: “há poucos, muitos poucos, mestres de
Química e de Ópera, sábios que consigam fascinar-nos com o entrelaçamento da
ciência e da arte. O autor do livro que o leitor tem (pode ter, acrescento eu)
entre mãos é um mestre das duas culturas, que afinal são uma só”.
Num país onde, infelizmente, os espectáculos de Ópera praticamente só
ocorrem em Lisboa, este livro é uma aurora que permite a quem o lê aprende e
desfrutar o melhor da cultura humana. Não hesite. Tome a poção que é este livro
e apaixone-se pelo conhecimento!
António Piedade
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