Artigo de Maria do Carmo Vieira
sobre o famigerado Novo Acordo Ortográfico:
sobre o famigerado Novo Acordo Ortográfico:
Obedecer
é como confessar que nada valho.
Henry Thoreau
A frase que serve de epígrafe a este texto reflecte a
profunda amizade que criei com o escritor norte-americano, desde a leitura da
sua obra Desobediência Civil. Uma
frase que interiorizei e aprendi de cor, ou seja, no seu sentido etimológico,
aprendi de coração (do latim cor, cordis). Desde sempre também a transmiti aos
alunos pelo facto de a considerar imprescindível na vida, tendo em conta as
várias opções que a mesma nos exige, em situações, muitas vezes, difíceis,
sejam elas de carácter humano, político ou cultural.
Aristides de Sousa Mendes, cônsul em Bordéus, no ano de 1940,
durante a Segunda Guerra Mundial, ensinou-nos precisamente que há momentos em
que devemos desobedecer e por isso, face ao horror que esperava os refugiados, sobrepôs
corajosamente “o dever de elementar humanidade que o obrigava a fazer o
possível para salvar toda aquela gente” ao “seu dever de funcionário que o obrigava
a não conceder os vistos”. Uma atitude que não evidencia o herói porque as
opções que fazemos, e cujas consequências por vezes nos são tão nefastas, como
aconteceu a Aristides de Sousa Mendes, não são ditadas pela heroicidade, antes
pela procura de justiça e de paz com a própria consciência, o que exclui desde
logo qualquer tipo de resignação. Situação idêntica, a do Movimento da
Resistência cujos membros, em persistente desobediência, apesar da ameaça certa
de tortura e mesmo de morte, se mantiveram firmes e leais à causa que os
norteava.
Será sempre mais fácil obedecer, negligenciando
a necessidade de reflectir e de expressar criticamente o que sentimos, mas as
consequências ser-nos-ão certamente nefastas porquanto nos permitimos assistir,
consciente ou inconscientemente, à nossa própria degradação espiritual. Não
perceberam, em 1933, os estudantes universitários alemães quão escravos se
tornaram de Hitler, ao participar activamente em autos-de-fé das obras de escritores alemães, proscritos do cânone
nazi. O seu acto
violento de queimar livros significava metaforicamente a morte dos seus autores
e das suas ideias. Alienados, porque incapazes de pensar, quiseram ignorar que
«as ideias têm asas» e «ninguém as pode impedir de voar». [1]
Repressão alguma impedirá, na verdade, o pensamento de se expressar e de criar.
A primeira
parte do texto poderá parecer desadequada, tendo em conta o seu objectivo – a
Iniciativa Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (ILC-AO). No entanto,
ela pretendeu evidenciar que é sempre possível não trair o que sentimos e o que
pensamos, e que, em diferentes situações, podemos ser beneficamente
influenciados por exemplos que a História nos legou.
E, assim,
chegados à segunda parte do texto, focar-nos-emos no património cultural e
artístico que representa a Língua Portuguesa, tão aviltada com o famigerado
Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), imposto contra a vontade da esmagadora
maioria dos portugueses, por via da ignorância, da desonestidade intelectual e
da violência que significou o decreto relativo à sua aplicação. As primeiras
vítimas forçadas a lidar com o caos, decorrente de numerosos erros,
incongruências e surpreendentes facultatividades, foram naturalmente os
funcionários públicos e a Escola, evidenciando-se mais uma vez a táctica de quem
pretende impor a sua vontade: mentir e forçar à obediência os que ensinam a
pensar.
Mentiram, e
limitamo-nos a algumas situações, quando invocaram uma discussão pública sobre
o AO 90, que nunca aconteceu; quando alertaram para a necessidade de uma
unificação ortográfica (impossível), como forma de «salvar a língua
portuguesa»; quando esconderam dos portugueses os pareceres maioritariamente
contrários (25 em 27) à aplicação do AO 90, em que se incluía inclusive o do
Ministério da Educação; quando consideraram a «existência de alguns erros» que
seriam corrigidos e que até agora o não foram; quando abafaram a informação de
que dos oitos países da CPLP que haviam negociado o AO 90, apenas quatro o haviam ratificado (Portugal,
Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe), ficando a faltar, até hoje, os
restantes (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste).
Os professores, sobretudo os da disciplina de
Português, estudaram (e continuam a estudar), prezam a sua inteligência e têm
uma missão a cumprir junto dos alunos que neles confiam, acreditando na sua
competência. Torna-se por isso imprescindível que não obedeçamos a este AO 90,
que não nos resignemos perante a aberração que põe em causa o carácter normativo
da ortografia. Na verdade, a resignação é uma forma de obediência, uma forma de
abdicar do acto de resistir, silenciando o que pensamos e iludindo-nos a nós
próprios. Daí a exigência de dizer «Não!» à estupidez e à tirania de quem não sabe
nem quer ouvir, de demonstrar lealdade relativamente ao Saber e de expressar
afectividade pela Língua Portuguesa, «um legado de
séculos, uma obra de cultura» [2]que
não pode continuar entregue a um pequeno grupo, ávido de negociatas.
A Iniciativa
Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico de 1990 está prestes a
perfazer as 20 mil assinaturas, exigidas por lei. Subscrevê-la é um acto de resistência
(https://ilcao.com/).
Maria do Carmo
Vieira
Maio de 2018
11 comentários:
Já assinei o Manifesto em defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico de 2 de Maio de 2008.
Antes de mais nada, eu também já assinei o Manifesto em defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico de 2 de Maio de 2008.
Objetivamente, o herói nacional Aristides preferiu obedecer a estrangeiros judeus do que às autoridades portuguesas, a quem devia obediência e o pão que comia junto com a sua família. Com isto, não estou a contradizer Maria do Carmo Vieira, cuja luta, contra o Acordo Ortográfico, também é minha!
O que quer que se faça, existe sempre alguém a quem se obedeceu. Nem que seja sem se saber. Salvo no caso excepcional em que se faz algo em que nunca ninguém pensou.
Por isso a frase de Thoreau não faz sentido.
Com todo o respeito pelos anónimos das 12:42 e das 14:36, assinaram o Manifesto Em Defesa da Língua Portuguesa Contra o AO, e então? Eu também assinei... e jantei ontem e costumo ir de férias para o Algarve. O que é que tudo isto tem que ver com o texto de Maria do Carmo Vieira?
É certo que, em condições normais, o Manifesto devia ter sido mais que suficiente para resolver de vez a questão do AO. Mas não foi. Invocar o Manifesto — uma petição debatida e arquivada na Assembleia da República há quase dez anos — a propósito de um apelo actual à subscrição da ILC não faz muito sentido.
Não faz sentido assinar esta. Já toda a gente interiorizou a maior parte das alterações ortográficas e fica caro aos bolsos dos pobres comprar novos manuais, prontuários, dicionários, gramáticas... 10 anos depois.
Como professora, saliento a máxima de um clássico: «errar é próprio dos homens; persistir no erro é próprio de loucos». Sempre o discurso miserabilista dos pobrezinhos dos alunos. Eles não precisam da nossa pena, mas da nossa competência e ensinar bem a Língua Portuguesa (o que só pode acontecer sem AO 90) é ensinar a bem pensar. Saber pensar e exprimir correctamente o seu pensamento será a única mais-valia para os tais «pobres» (triste designação) a que se refere.
Maria do Carmo Vieira
Saúdo a distinta Colega, e boa Amiga, Maria do Céu Vieira, pela sua insistência em não se acomodar a todos ao crimes cometidos contra a Língua Pátria, de que é exemplo este AO, em contramão com políticos videirinhos que a tudo se rendem para subir na vida e aumentar os seus proventos. Um grande beijinho. Rui
A primeira parte do seu artigo é absolutamente desadequada ao fins que tinha em vista quando o escreveu. Portugal, no tempo da Segunda Guerra Mundial, era um país neutral. Quem lhe pode garantir que o heróico Aristides não foi comprado pelos judeus?! Quem lhe garante que um ato irresponsável, corrupto e ilegal de um cônsul português não poderia ter desencadeado um conflito diplomático grave que acabasse com a Alemanha a invadir Portugal?!
Haveria milhares de mortos portugueses!
Por fim, Portugal recebeu centenas de milhar de refugiados da guerra porque Salazar permitiu. Só por isso, a doutora Maria do Carmo Vieira considera Salazar um herói português?!
Séc XVI até séc. XX - Em Portugal e no Brasil a escrita praticada era de cariz etimológico (a raiz latina ou grega determinava a forma de escrita das palavras com maior preponderância).
1907 – A Academia Brasileira de Letras começa a simplificar a escrita nas suas publicações.
1910 – Implantação da República em Portugal – é nomeada uma Comissão para estabelecer uma ortografia simplificada e uniforme a ser usada nas publicações oficiais e no ensino.
1911 – Primeira Reforma Ortográfica – tentativa de uniformizar e simplificar a escrita, mas que não foi extensiva ao Brasil.
1915 – A Academia Brasileira de Letras resolve harmonizar a sua ortografia com a portuguesa.
1919 – A Academia Brasileira de Letras revoga a sua resolução de 1915.
1924 – A Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras começam a procurar uma grafia comum.
1929 – A Academia Brasileira de Letras altera as regras de escrita.
1931 – É aprovado o primeiro Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal, que visa suprimir as diferenças, unificar e simplificar a língua portuguesa. Contudo, este acordo não é posto em prática.
1938 – São sanadas algumas dúvidas quanto à acentuação de palavras.
1943 – É redigido o Formulário Ortográfico de 1943, na primeira Convenção Ortográfica entre Brasil e Portugal.
1945 – Um novo Acordo Ortográfico propunha uma unificação ortográfica absoluta que rondava os 100% do vocabulário geral da língua. Mas tal unificação assentava em dois princípios que se revelaram inaceitáveis para os brasileiros (repunha as chamadas consoantes mudas no Brasil e passava a grafar com acento agudo e não circunflexo, conforme a prática brasileira). Torna-se lei em Portugal, mas não no Brasil, por não ter sido ratificado pelo Governo; os brasileiros continuam a regular-se pela ortografia do Vocabulário de 1943.
1971 – São promulgadas alterações no Brasil, reduzindo as divergências ortográficas com Portugal.
1973 – São promulgadas alterações em Portugal, reduzindo as divergências ortográficas com o Brasil.
1975 – A Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboram novo projecto de acordo, que não é aprovado oficialmente.
1986 – O presidente do Brasil, José Sarney promove um encontro dos então sete países de língua oficial portuguesa - Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe -, no Rio de Janeiro. É apresentado o Memorando Sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O Acordo Ortográfico de 1986, que resulta deste encontro, é amplamente discutido e contestado pela comunidade linguística, nunca chegando a ser aprovado.
1990 – A Academia das Ciências de Lisboa convoca novo encontro, juntando uma Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. As duas Academias elaboram a base do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O documento entraria em vigor, de acordo com o seu artigo 3o, no dia "1 de Janeiro de 1994, após depositados todos os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo português".
1995 – O Acordo Ortográfico de 1990 é apenas ratificado por Portugal, Brasil e Cabo Verde, embora o texto previsse a sua implementação em toda a Lusofonia no início de 1994.
2004 – Os ministros da Educação dos vários países da CPLP reúnem-se em Fortaleza, no Brasil, para a aprovação do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Fica assim determinado que basta a ratificação de três membros para que o Acordo Ortográfico possa entrar em vigor e Timor-Leste passa a integrar a CPLP.
2006 – Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe ratificam o documento, possibilitando a entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990.
2008 – O Acordo Ortográfico de 1990 é aprovado por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Brasil e Portugal, sendo esperada a sua implementação no início de 2010.
2009 – Entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 no Brasil e em Portugal.
Manifestos e petições. Luta histórica.
Hei de acabar velha e seca a bicar o meu nome em petições de defesa da língua de pronúncia cultural enquanto dou brasileiro às crianças pobrezinhas da favela portuguesa, as quais nunca hão de aprender a ler e a escrever de forma funcional, a não ser que entrem no mundo do crime.
P.S. Não sei quem fez esta compilação. Circula pela Internet.
Curioso raciocínio. Para passarmos de cavalo para burro não se olha à "interiorização" do AO45, que existe há várias gerações — e que é, essa sim, partilhada por "toda a gente". Já para defender o AO90 vale tudo, até uma pequena falácia... quem disse que os manuais escolares teriam de ser substituídos? Seria uma despesa absurda!
Basta um pequeno exercício em sala de aula para que esses manuais possam ser usados. E os alunos, além de passarem a dispor de uma ferramenta superior (não há normas perfeitas mas o AO45 é, objectivamente, melhor do que o AO90), terão ainda o "aborrecimento" de ficar com conhecimentos acima da média sobre ortografia e sobre a sua própria Língua. Não faz sentido assinar esta? Não faz sentido é arrastar o AO90 por mais tempo.
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