segunda-feira, 7 de maio de 2018

"A LÍNGUA DOS DEUSES"


Introdução de "A Língua dos Deuses: 9 razões para amar o grego" de Andrea Marcolongo (na foto) que acaba de sair na Gradiva, um livro que louva e divulga a língua grega:

"O mar queima as máscaras
Incendeia‑lhes o fogo do sal
Homens cobertos de máscaras
Acendem‑se no litoral.
Só tu poderás resistir
Na pira do Carnaval.
Só tu, a que sem máscaras
Esconde a arte de existir.

Giorgio Caproni, in Cronistoria

É «estranho» — muito estranho — «o facto de querermos saber grego, de nos esforçarmos por saber grego, de nos sentirmos atraídos pelo grego e insistirmos em fazer uma ideia do significado do grego, com base em sabe‑se lá que pormenores incongruentes e sabe‑se lá em que vaga semelhança com o significado real do grego», escreve Virginia Woolf. Porque «na nossa ignorância seremos sempre e apesar de tudo os últimos da classe, uma vez que não sabemos que som tinham as palavras gregas nem em que ocasiões precisas será apropriado rirmo‑nos».

Também eu sou estranha — muito estranha.

E estou grata a esta minha estranheza, que me conduziu sem combinação prévia, como todas as coisas belas que acontecem na vida, a escrever este livro dedicado ao grego antigo. E fui obstinada ao ponto, não só de querer saber grego, mas ainda de o divulgar.

A vós, leitores. Sempre a última da classe, naturalmente, mas talvez agora sabendo pelo menos dizer‑vos onde exactamente deveremos rir‑nos.

Língua morta e língua viva.
Tortura do liceu e aventuras de Ulisses.
Tradução ou hieróglifos.
Tragédia ou comédia.
Compreensão ou mal‑entendido.
Sobretudo, amor ou desamor.
Revolta, portanto.
Compreender o grego não é questão de talento, mas de militância — como a vida.

Se escrevi estas páginas foi porque me apaixonei pelo grego antigo quando era criança: feitas as contas, o amor mais longo da minha vida.

Agora, adulta, gostava de tentar oferecer (ou restituir) um pouco de amor àqueles que se desapaixonaram: quase todos os que se debateram — em criança — com esta língua de adultos nos anos do liceu. E gostava até de fazer apaixonar aqueles que não conhecem nada dela.

Sim, este livro fala, antes de mais, de amor: para com uma língua, mas sobretudo, para com os seres humanos que a falam — ou, se já ninguém a fala, para com aqueles que a estudam porque são a isso obrigados ou irremediavelmente atraídos.

Não importa portanto se o leitor sabe grego antigo ou não. Não estão previstos exames de aferição nem testes de surpresa — surpresas, pelo contrário, sim. E muitas.

Não importa sequer que tenham estudado línguas clássicas no liceu. Se não estudaram, melhor. Se conseguir estar à altura de vos guiar no labirinto do grego com a minha fantasia, irão chegar ao fim do caminho com novos modos de pensar o mundo e a vossa vida, seja em que língua for que a expressam em palavras.

Se estudaram, melhor ainda. Se conseguir responder a perguntas que nunca se vos colocaram ou que nunca tiveram resposta, talvez no final desta leitura tenham recuperado partes vossas perdidas numa juventude passada a estudar grego sem perceber bem o porquê e que talvez se vos possam tornar úteis, tão úteis, agora.

Em ambos os casos, estas páginas constituirão um modo de nos divertirmos, eu e vós, a pensar em grego antigo.

Cada um de vós já deve ter‑se confrontado, no decurso da vida, com o grego e com os Gregos. Uns com as pernas apertadas sob os bancos do liceu, outros no teatro, frente a uma comédia ou tragédia, outros ainda nos corredores sombrios de tantos museus arqueológicos que inundam a Itália — em todos estes casos, o sentido do ser grego nunca parece mais apaixonante e vivo que uma estátua de mármore.

A todos — mas a todos mesmo — deve ter sido dito mais cedo ou mais tarde, ou nem sequer terá sido dito, porque há mais de dois milénios que a voz que circula é sempre a mesma, de tal forma que está já sob a pele e dentro da cabeça de cada europeu: «Tudo aquilo que de belo e insuperável já foi dito ou feito no mundo foi dito ou feito pela primeira vez pelos antigos Gregos.» E, portanto, em grego antigo.

Praticamente ninguém tem dele um conhecimento directo — a única certeza é que um grego antigo que fale grego antigo é coisa que já não existe. É coisa de que apenas «ouviram falar», ou nem sequer ouviram, como disse acima: é assim e pronto, há séculos. A nossa suposta herança cultural grega foi‑nos pois generosamente confiada por um povo antigo que não entendemos, numa língua antiga que não entendemos.

Formidável.

É terrível a condição daquele que não entende mas a quem foi dito que deve amar: começa de imediato a odiar.

Aparentemente, frente aos mármores do Pártenon ou ao teatro de Siracusa ficamos orgulhosos dos Gregos e do grego antigo, como se eles fossem obra dos nossos antepassados, de uns nossos trisavós afastados. Gostamos de os imaginar ao sol de uma qualquer ilhota, ocupados a inventar a filosofia ou a historiografia, ou então sentados num teatro implantado no declive de uma qualquer colina enquanto assistem a uma tragédia ou a uma comédia; ou ainda, de noite, a observarem um céu repleto de estrelas enquanto descobrem a ciência e a astronomia.

Mas, cá bem no fundo, sentimo‑nos sempre inseguros de nós mesmos, postos face a uma interrogação sobre uma história que não é nossa, como se tivéssemos esquecido qualquer coisa da antiga Grécia. E a língua grega é precisamente essa qualquer coisa que não entendemos.

«O grego: aquele absurdo, trágico, instante do humano», para citar Nikos Dimou e toda a sua infelicidade.

Portanto, não se trata apenas de estarmos à beira do estatuto de deserdados e desadaptados desta herança cultural do grego antigo. Se ainda tentamos recuperar uma migalha daquilo que a grecidade nos deixou em herança, somos vítimas de um dos sistemas escolares mais retrógados e obtusos do mundo (na minha opinião, naturalmente, sempre a última da classe e talvez, depois deste livro, chumbada e expulsa).

O liceu clássico, tal como está estruturado, parece não ter outro objectivo que não seja o de manter os Gregos e o seu grego o mais inacessíveis possível, mudos e gloriosos lá em cima no Olimpo, envoltos num temor reverencial que se transforma com frequência num terror divino e num desespero muito terreno.

Os métodos de aprendizagem utilizados, excepção feita a poucos e iluminados professores, são uma garantia perfeita de ódio, em vez de amor, para quem ousa aproximar‑se da língua grega. A consequência é a rendição incondicional face a esta herança que já não queremos porque, mal a afloramos, não a entendemos e fugimos aterrorizados. A maioria, mal se liberta da obrigação escolar, queima atrás de si as barcas do grego.

Outros tantos serão os leitores que reconhecerão neste livro a memória pegajosa dos seus medos, dos seus esforços, da sua raiva, da sua frustração com o grego antigo, reconhecendo‑se nos meus. E no entanto estas páginas nascem da convicção de que não tem sentido saber uma coisa que não se recorda, sobretudo se a estudámos com esforço durante cinco anos ou mais.

Este livro não é por isso uma gramática convencional do grego antigo, nem descritiva nem normativa. Não tem nenhuma presunção académica (essas existem em demasia desde há milénios). Tem, é certo, uma forte pretensão de paixão e desafio. É uma narrativa literária (e não literal) de algumas particularidades de uma língua magnífica e elegante como o grego antigo — aquele seu modo de exprimir de forma fulminante, sintética, irónica, aberta da qual — somos sinceros — sentimos uma nostalgia involuntária.


Seja o que for que vos disseram (e sobretudo não vos disseram), o grego antigo é, antes de mais, uma língua.

Cada língua, com cada uma das suas palavras, serve para representar um mundo. E este mundo é o vosso. É graças à língua que podem formular uma ideia, dar voz a uma emoção, comunicar um estado, exprimir um desejo, ouvir uma canção, escrever poesia.

Nestes nossos tempos, em que todos estamos ligados a alguma coisa e quase nunca ligados a alguém, onde as palavras caíram em desuso, substituídas por emojis e outros pictogramas modernos; neste mundo cada vez mais veloz e nesta realidade tão virtual que agora vivemos em diferido de nós mesmos, já não nos entendemos, de facto, por palavras.

A língua, ou o que dela resta, está a tornar‑se cada vez mais banal: quantos de vocês já telefonaram hoje (quero dizer: digitaram efectivamente um número para escutar uma voz humana) por amor? E quando foi a última vez que escreveram uma carta (quero dizer: com uma esferográfica numa folha de papel) e lamberam um envelope e um selo?

O fosso entre o significado de uma palavra e a sua interpretação aumenta hora a hora, tal como os mal entendidos e os não ditos, de forma directamente proporcional aos remorsos e aos fracassos. Está a perder‑se pouco a pouco a capacidade de falar uma língua, seja ela qual for. De nos entendermos e nos fazermos entender. De dizermos coisas complexas com palavras simples, verdadeiras, honestas: eis a potência do grego antigo.

Vai parecer‑vos estranho (eu declarei desde o início que sou estranha), mas a leitura deste livro dedicado ao grego poderá vir em vosso auxílio todos os dias (e não para entregar um trabalho escolar atrasado: para isso já basta a vida).

Sim, mesmo aquele grego antigo. Abordado sem medo (e com uma boa dose de loucura), o grego deixa‑se olhar de frente e ainda vos fala. Com uma voz vibrante, pura. Para poder pensar e, portanto, dizer um desejo, um som, o amor, a solidão, o tempo: para se reapossarem finalmente do vosso mundo, agora, e dizê‑lo à vossa maneira. Porque, ainda para citar Virginia Woolf, «é ao grego que regressamos quando estamos cansados da vagueza, da confusão e da nossa época».

Escrever este livro dedicado ao grego antigo foi para mim uma experiência humana extraordinária. Foi como recuperar o sentido das palavras gregas escritas num quadro negro há mil anos e logo apagadas no fim da aula — esquecidas.

Parti da recordação de mim própria, pouco mais que criança, a trabalhar afanosamente com um alfabeto que não era o meu até olhar agora para a língua, portanto para a natureza humana, de uma maneira completamente nova.

Recuperei, de dentro de caixotes sobreviventes de mais de dez mudanças, livros de quando tinha catorze anos, onde anotava ao lado das declinações o nome do companheiro de carteira, até aos manuais universitários que me seguem mais de vida em vida, de cidade em cidade, do que as chaves de todas as casas que tive e abandonei.

Experimentei parar de ter pensamentos que me atormentaram durante mais de uma década, descobrindo que bastava partilhá‑los com as pessoas que me rodeavam: também elas estavam a pensar as mesmas coisas, a maior parte das vezes sem o saberem. Nunca as tínhamos dito uns aos outros.

Ajudei em 2016 jovens a debaterem‑se com o liceu clássico: as perguntas que eles me fizeram foram as mesmas que eu me colocava quando também era inexperiente no grego, e sobretudo na vida. E, uma vez perguntado, é impossível fazer retroceder a curiosidade, ela obstina‑se; exactamente como eu fiz, ainda que tenha demorado tanto tempo a encontrar ou imaginar a resposta.

Ri‑me com imensos amigos, agora adultos, que passaram pelas mesmas desventuras com o grego antigo, descobrindo que qualquer pessoa que se aproxime desta língua tem uma série de tristes figuras escondidas na gaveta — eis, precisamente, o sítio onde nos devemos rir.

Tentei, sobretudo, contar as estranhezas do grego antigo a quem nunca o estudou. É incrível: entenderam‑me, entendemo‑nos. E bem. Talvez melhor.

Eu, que sou tão estranha, aprendi a olhar para o tempo de outra maneira, graças ao aspecto da língua grega, e a dizê‑lo.

Soprei tantos dentes‑de‑leão exprimindo desejos no optativo e fazendo contas com a minha vontade de os realizar que restam hoje muito poucos nos campos de fim da Primavera em Sarajevo.

Disse amo‑te no dual, um número da língua grega que significa nós ambos — só nós.

Reconheci a crueldade do silêncio imposto, mas também que certa música não a ouvimos apenas, também a vemos.

Fiz até as pazes com o meu nome masculino, Andrea, uma causa que pensava estivesse perdida para sempre.

Ao escrever este livro, a «estranheza que tenho na cabeça» tornou‑se paradoxalmente menos estranha. Em resumo, graças ao grego antigo — entendendo‑o ou pelo menos intuindo‑o — consegui dizer muito mais coisas, e não menos, a mim própria e aos outros.

Espero que o mesmo vos aconteça ao lerem estas páginas. E que possam chegar ao fim sabendo rir e apreciar o grego antigo, pelo menos uma vez na vida.

2 comentários:

Anónimo disse...

Na fotografia de Andrea Marcolongo, dá para ver perfeitamente, em primeiro plano, mais duas fortes razões, pelo menos, para amar o grego. As palavras do Latim com maior carga cultural são de origem grega. Quem não se lembra do "esternocleidomastóideo" do Vasquinho da Anatomia? A palavra erudita, agora pode ser do português, que é uma espécie de latim estragado, mas a sua origem clássica é grega.

C. Eliseu disse...

Grato pela divulgação do livro. Fui comprá-lo e espero boa leitura.

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