O professor e investigador da Universidade do Minho Moisés de Lemos Martins escreveu no passado dia 12 um artigo de opinião que vale a pena reproduzir aqui. É mais uma voz, esta
da sacrificada área das ciências sociais e humanas (não foi a única, o descalabro estendeu-se a quase todas elas, tirando as áreas da biomedicina privilegiadas pelo governo), que se juntam ao coro de protestos contra uma política de devastação que o ministério de Nuno Crato empreendeu na ciência e ensino superior. Assistiu-se a uma política de terra queimada, onde o "posso, quero e mando" substituiu a avaliação por pares que se usa noutros países europeus:
"No termo da actual legislatura, é de balanço e prospectiva a hora que vivemos. Centrando o olhar nas Ciências Sociais e Humanas (CSH), procuro fazer aqui um balanço do que tem sido a política científica em Portugal. E aponto caminhos de futuro.
1. Começo pelo diagnóstico. Porque não virar a cara à ferida, nem iludi-la, é já caminho para diante.
Quando se levantou um vento ruim na Cidade, fomos avisados de que iria haver a concentração dos apoios financeiros onde eram “cientificamente rentáveis” (Passos Coelho em declaração à Lusa, a 09.11.2011).
E logo começou o trabalho de sapa da destruição: a opacidade dos procedimentos; os painéis de avaliação suspeitos; a arbitrariedade das decisões; as reprovações administrativas; a caótica e alucinada gestão do quotidiano dos centros; o empastelamento burocrático; as métricas inadequadas às CSH; os concursos, com regras de geometria variável, muitos deles abertos em férias. E pelo caminho, a devastação, com o desperdício de capacidade, energia e experiência.
Seguiu-se a constituição de um Conselho Científico, diminuído “em autonomia, autoridade e experiência” (Ramada Curto). E as avaliações, sem especialistas na área específica e com agendas políticas escondidas, que condenaram, à uma, projectos, investigadores e especialidades.
Vimos coisas de espantar, como a invenção de categorias acima de excelente (“Outstanding” e “Exceptional”), sendo recusado financiamento aos projectos de investigação classificados como “excelentes”, assim como a muitos considerados “fora de série”.
Surgiu, depois, o ludíbrio dos concursos “investigador FCT” e “doutoramento FCT”. O ludíbrio, porque se tratou da armação de uma tramóia, argumentada com a retórica da competitividade e da internacionalização. E logo caíram, a pique, as bolsas de doutoramento e pós-doutoramento.
Seguiu-se o concurso das infra-estruturas tecnológicas de investigação (o concurso Roteiro), com avaliações, à medida, feitas por um painel de obscuros investigadores e com pareceres das CCDR – pareceres de natureza política e administrativa.
Chegou, entretanto, a avaliação das unidades de investigação. Aí, de tão desacreditado, o sistema ruiu. E todos se ergueram em protesto, uns com absoluta razão, outros sem razão nenhuma.
Por fim, a FCT brindou-nos com elogios internacionais à sua política e com um “Código de Conduta” de que os investigadores estariam precisados.
2. Depois desta calamidade, é necessário começar de novo. Mas a partir do zero. Porque é no grau zero da credibilidade que se encontram os órgãos que tutelam a ciência em Portugal.
O Ministério da Educação e Ciência, a Secretaria de Estado da Ciência e a FCT precisam de merecer a confiança da comunidade académica.
A FCT precisa de uma administração que exprima o interesse público e a diversidade do campo científico. O que hoje não acontece – a FCT serve sobretudo interesses privados e tem estado por conta de uma única área científica.
A FCT também precisa de um Conselho Científico de CSH representativo, que mereça a aprovação das especialidades. Um Conselho sem intrusos, que hoje o desacreditam, pela desqualificação, pela encomenda partidária e pelo vício do nepotismo.
3. O dia de hoje parece marcado por uma espécie de síndrome de Pol Pot, que empurrou, com maus modos, os jovens cientistas para fora do sistema e as CSH para os campos da estagnação e do isolamento internacional.
Houve erros no passado, que importa não repetir.
A FCT deve ouvir a comunidade científica (os centros e as associações científicas), corrigindo uma ancestral lógica centralista de gestão da ciência. E deve constituir painéis de avaliação que garantam a diversidade dos paradigmas e respeitem uma prática científica plural, corrigindo a queda para o paradigma da ciência objectivista e operativa, em exclusivo acordo com unidades de medida.
Não deve, porém, atrelar as CSH a estratégias mercantilistas, produtivistas e gestionárias, que as abastardem. E não deve substituir-se aos centros, definindo e escolhendo os seus parceiros estratégicos para a internacionalização. Vimos no passado esse tipo de intervenção, de cima para baixo, à revelia das dinâmicas estabelecidas no campo científico e com o desprezo das competências reconhecidas por avaliações que a própria FCT promoveu. Por exemplo, no domínio da comunicação digital e da comunicação multimédia, vimos a FCT escolher, em benefício indevido de uns e prejuízo imerecido de outros, os parceiros portugueses para a cooperação com a Universidade de Austin.
Também não pode a FCT discriminar financeiramente os centros de excelência, em favor dos Laboratórios Associados, cujo envelope financeiro chegou a representar dois terços do orçamento global do Estado para a ciência.
4. Recomeçar significa, todavia, retraçar a história, reformular funções e experimentar novas articulações.
Hoje, a Europa apresenta-se unificada, mas em crise. Por essa razão, é importante conhecermos o que nos identifica e distingue. Com o processo de globalização socioeconómica a assinalar o tempo, é necessário estudar as identidades nacionais, regionais e locais, assim como as identidades transnacionais – sobretudo as identidades, europeia e lusófona.
Precisamos de respeitar a língua portuguesa como língua de cultura e pensamento, e em consequência, reconhecê-la como língua de conhecimento. Fazendo-o, precisamos de atribuir valor estratégico à construção da comunidade de investigação lusófona.
Por outro lado, da mesma forma que o crescimento económico e tecnológico não pode dispensar a dimensão cultural, também a ideia de desenvolvimento não pode dispensar as CSH. Na era da globalização da economia, pela potência da tecnologia, as CSH revêem-se na ideia do desenvolvimento harmonioso, da solidariedade humana e da coesão social. Porque se entendem como parte inteira no convívio das ciências e como parte inteira no desenvolvimento colectivo.
Uma esperança nova na ciência não pode deixar de compreender estas aspirações e de lhes dar resposta."
Moisés de Lemos Martins
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