Novo texto de Galopim de Carvalho:
Em franco contraste com a pouca atenção dada à disciplina de Geologia nas nossas escolas, situação esta que tenho vindo insistentemente a denunciar, responsável pela mais do que notada falta de cultura científica neste importante domínio do conhecimento, nunca, como nas últimas décadas, foram tantos e bons os geólogos portugueses, a trabalharem no terreno, a investigarem e a ensinarem nas nossas Universidades.
É evidente que esta situação tem raízes e são elas que me proponho recordar, em meia dúzia de pequenos textos, rendendo-lhes as devidas homenagens. Tudo começa com:
DOMENICO AGOSTINO VANDELLI (1735-1816)
Doutorado em medicina pela Universidade de Pádua, este naturalista italiano, conhecido entre nós por Domingos Vandelli, foi contratado pelo Marquês de Pombal, em 1764, para ensinar ciências químico-naturais no Colégio dos Nobres, em Lisboa, mas este ensino nunca chegou a ser concretizado, pelo que regressou durante algum tempo a Itália. Voltou quatro anos mais tarde, com a incumbência de criar, em Lisboa, o Jardim Botânico da Ajuda.
Em 1772, foi nomeado lente de História Natural e Química na Universidade de Coimbra, onde fundou outro jardim botânico, desenvolveu acção muito importante como pioneiro no ensino da Mineralogia e da Geologia, incluídas na “cadeira” de Geognósia. Como precedências destas disciplinas foram fixadas as de Química, Física, Matemática e Geometria, por serem consideradas fundamentais tanto na preparação da então moderna mineralogia, de acentuado pendor químico, como da nascente cristalografia morfológica ou geométrica.
A obra escrita que nos deixou “Sobre as Produções Naturais do Reino e das Conquistas - Primeiras Matérias de Diferentes Fábricas, ou Manufacturas”, publicada na Academia Real das Ciências, em 1789, constitui o primeiro relato de natureza científica acerca dos minerais reconhecidos em Portugal e nos territórios de além-mar, suas localizações e aplicações.
Domingos Vandelli foi o pai do naturalista Alexandre António Vandelli, nascido em Coimbra, em 1784.
MANUEL JOSÉ BARJONA (1758-1831)
Doutor e lente da Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, de sólida formação em física e em química, introduziu entre nós o estudo da mineralogia química, na linha de grandes nomes da época, como os suecos Axel Fredrik Cronstedt (1722-1765), Johan Gottschalk Wallerius (1709-1785) e Olof Torbern Bergman (1735-1784). Entre outros trabalhos, deixou-nos Metallurgiae Elementa, editado, em 1798, pela Biblioteca Geral da mesma Universidade. Este seu livro, escrito em latim, é a primeira e a mais antiga publicação sobre metalurgia surgida em Portugal. A sua realização, no âmbito dos Estatutos Pombalinos da Universidade, destinou-se a uso escolar e a versar matérias então integradas nos planos curriculares de cursos então criados. Em 1823, publicou Táboas Mineralógicas, título do que é considerado o primeiro livro de mineralogia em português, no qual estabeleceu cinco classes na sistematização dos minerais: “terras”, ”pedras”, “sais”, “sulfuretos e betumes”, “metais e semimetais”. Deve-se-lhe, ainda, a organização e catalogação dos minerais do Museu de História Natural daquela Universidade.
Aderente à causa liberal, não assinou o auto de aclamação de D. Miguel de Portugal que se fez na Universidade de Coimbra. Em consequência e apesar de já septuagenário, foi preso, em Junho de 1828, acusado de revolucionário e adversário do governo miguelista, tendo sido demitido do seu lugar de professor.
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1763-1838)
Considerado o primeiro geólogo das Américas, foi também o primeiro geólogo e um dos primeiros mineralogistas portugueses. Mas a sua actividade científica não se limitou a estes campos do saber. Discípulo de Domingos Vandelli, teve ainda papel relevante em áreas como a prospecção e exploração mineiras, a silvicultura, os solos e as pescas, entre outras. Evocado nos dias de hoje como patriarca da independência do país irmão, deixou o seu nome ligado não só, do outro lado do Atlântico, à formação do Império do Brasil, como à causa liberal que aqui, em Portugal, pôs fim à monarquia absolutista e abriu as portas à via constitucional.
Nascido em Santos, no estado de São Paulo, de família de ascendência nobre, oriunda do Minho, este lusodescendente veio para Portugal a fim de cursar a Universidade de Coimbra onde obteve, em 1788, as cartas de bacharel e de formatura em Leis e a de bacharel em Filosofia Natural, nome que então se dava às Ciências Naturais.
Como «pensionário» (bolseiro) da Coroa, por proposta da Academia das Ciências, ao tempo de D. Maria I, Andrada e Silva iniciou, em 1790, um vasto e proveitoso périplo de dez anos pela Europa, a fim de frequentar alguns dos mais prestigiados centros de ensino superior e realizar estágios e visitas a importantes explorações mineiras. Na École des Mines de Paris estudou com o fundador da cristalografia, René-Just Haüy, e, em 1792, apresentou à Sociedade de História Natural desta cidade um interessante estudo, Mémoire sur les diamants du Brésil. Em seguida frequentou, na Alemanha, a prestigiada Academia de Minas de Freiberga, onde estudou Mineralogia e Geognósia com o professor Abraham Gottlob Werner. A seguir a esta fase, estagiou em fundições da Saxónia, do Tirol e outras, e frequentou as aulas dos grandes mestres nas universidades italianas de Pádua e de Pavia. Nos últimos anos desta sua peregrinação pela Europa, José Bonifácio visitou ainda as mais importantes jazidas mineiras da Escandinávia, de Inglaterra, dos Balcãs, da Suíça, da Itália e da Turquia, onde consolidou a sua preparação geológica e mineralógica.
Em resultado da sua investigação como mineralogista, Andrada e Silva publicou trabalhos de reconhecido mérito e deles constam, entre outros, a descoberta e caracterização da espodumena e da petalite (dois silicatos de alumínio e lítio), da criolite (um fluoreto de alumínio e sódio), da indicolite (uma turmalina de cor azul) e da wernerite (um aluminossilicato de sódio e cálcio, variedade de escapolite,) que assim designou em homenagem ao que foi seu mestre Abraham Werner. Em sua honra, o americano James Dwight Dana (1813-1895), autor do celebérrimo Sistema de Mineralogia, considerado um dos mais notáveis mineralogistas de sempre, deu o nome de andradite, em 1868, a uma espécie do grupo das granadas, perpetuando, assim, a sua memória entre a comunidade científica. Regressado a Portugal, em 1800, aureolado de grande prestígio internacional, Andrada e Silva foi, nomeado Intendente-geral das Minas e Metais do Reino. Entre outros cargos que assumiu, e nos quais deixou nome, contam-se os de director do Laboratório de Docimasia da Casa da Moeda e de administrador das Ferrarias da Foz do Alge e das minas de carvão de Buarcos e de São Pedro da Cova. A sua grande preocupação com a pesquisa do carvão e do ferro indicam-no, por outro lado, como elemento destacado da corrente fisiocrática que, em Portugal, abriu caminho à Revolução Industrial. Defensor acérrimo do sistema métrico decimal, não obstante a má vontade dos seus colegas, por razões ligadas à origem francesa, então de má memória, esteve ainda ligado à prospecção e exploração das areias auríferas da Adiça (Mina do Príncipe Regente), no concelho de Almada.
Em 1802, Andrada e Silva obteve o grau de Doutor pela Universidade Coimbra e, dado o seu prestígio, foi ali criada a cadeira de Metalurgia, que lhe foi destinada e que regeu como lente, até 1807, por ocasião da primeira invasão francesa, altura em que, no posto de major, integrou um batalhão académico de luta contra o invasor.
Por iniciativa do académico duque de Lafões, foi admitido na Academia de Ciências de Lisboa, de que se tornou membro ilustre e secretário-geral. Do seu currículo consta ainda a qualidade de membro de várias e prestigiadas sociedades científicas europeias, como as de Paris, Berlim, Londres e Edimburgo, e ainda da Academia das Ciências de Estocolmo.
As primeiras manifestações a favor da independência da grande colónia, chamam-no de regresso ao Brasil, a favor de uma causa a que se associou inteiramente, chegando a ser uma das mais destacadas figuras na constituição do novo país, onde desempenhou importantes cargos políticos e sofreu graves dissabores decorrentes dessa sua condição.
Passados que foram os ânimos desses tempos conturbados e serenadas as paixões, reconhece-se-lhe hoje a acção que realizou em prol do novo e grande país, tendo conseguido consolidar a independência e garantido a integridade do território, graças à sua inesgotável energia, firmeza de carácter e sentido diplomático. Por ter evitado a divisão do imenso território em pequenos estados, os brasileiros chamaram-lhe o ministro da Unidade Nacional e consideram-no o Patriarca da Independência do Brasil e o Pai da Pátria, tendo-lhe erigido, em 1872, uma estátua em bronze, no Rio de Janeiro, nas comemorações dos cinquenta anos de independência.
É dele a ideia de uma cidade central no interior do Brasil, vontade que se cumpriu com a inauguração da capital, Brasília, em 21 de Abril de 1960.
O Museu Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade de Coimbra, tem hoje o nome de José Bonifácio de Andrada e Silva, antigo lente que elegeu como patrono, estando o seu busto em local de destaque na galeria de mineralogia. Um outro busto seu existe na Academia das Ciências de Lisboa, evocando o ilustre membro que foi desta instituição. Do outro lado do Atlântico, na outra pátria de José Bonifácio, o seu retrato em pintura mural está igualmente presente entre os esplêndidos minerais da galeria de mineralogia da Escola de Minas de Ouro Preto, em Minas Gerais.
António Galopim de Carvalho
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