Ainda no Público de hoje o Professor Mário Vieira de Carvalho, da Universidade Nova de Lisboa, denuncia as descaradas ilegalidades da gestão de Nuno Crato da ciência e tecnologia, com o completo beneplácito de Pedro Passos Coelho (se, nesta área crítica para o nosso desenvolvimento, o primeiro-ministro não tivesse dito "mata", o ministro não poderia ter dito "esfola")
"No início do seu mandato,
dizia o ex-presidente da
FCT, perante um auditório
de sábios, que era preciso
introduzir na ciência em
Portugal regras idênticas
às que vigoravam no
estrangeiro. Como no futebol.
Se não podíamos “competir”
no futebol usando campos,
balizas ou equipas com dimensões
diferentes das praticadas por esse mundo
fora, também nas arenas da ciência
teríamos de “jogar” segundo regras
universalmente aceites.
Que regras seriam essas? Não dizia
quais. Mas era evidente que tinham
de ser diferentes das regras de
avaliação internacional que já tinham
sido introduzidas havia muito pelas
reformas — essas, sim, estruturais — de
José Mariano Gago. Para o porta-voz
da política científica do Governo da
direita, era evidente que o enorme salto
nos indicadores do potencial científico
nacional e da sua internacionalização
em todos os domínios resultava de
uma espécie de batota que o Estado
se permitira introduzir no sistema
para vencer um atraso secular e nos
aproximar da Europa. Por isso, já depois
do inenarrável caos nas avaliações, em
finais de julho de 2014, a presidência da
FCT ainda clamava, qual rana rupta antes
do estoiro final: “É verdade que este é o
primeiro exercício de avaliação em que
todas as unidades de I&D são avaliadas de
forma competitiva.” É preciso ter lata!
A equiparação entre ciência e
futebol (a eureka! deste Governo) não
passava de uma fórmula vazia que
varria para debaixo do tapete o lixo
estrutural do país. Basta lembrar os
milhões que sobram à iniciativa privada
para investir em clubes de futebol e a
escassez dos meios que a mesma investe
em “modernização”, inovação ou
recrutamento de mão de obra qualificada
e bem paga — isto é, paga pelo seu justo
valor (nada de excessivo, certamente,
quando cotejado com salários de
jogadores e treinadores). Um estudo
comparativo deste tipo de correlação na
OCDE talvez levasse à conclusão de que a
iniciativa privada, em Portugal, por tanto
querer “competir” no futebol, pouco se
tem esforçado por “competir” em esferas
estruturantes e estratégicas da economia.
Eis o que até parece ser incentivado pelo
Governo, ao pretender diminuir agora
ainda mais os “custos” do trabalho: mais
lixo estrutural, em vez de uma economia
verdadeiramente “competitiva” na
sociedade do conhecimento!
Como se viu, porém, ao longo deste
penoso consulado, o futebol de que
falava o presidente da FCT não tinha
paralelo nos anais do desporto. Mudava-se
de regras a meio do jogo, entregava-se
a arbitragem a quem desconhecia a
matéria em competição, alteravam-se
por decisão administrativa — enfatizo —
resultados cientificamente validados por
painéis internacionais, cometiam-se,
enfim, inomináveis atropelos às mais
elementares regras de transparência e
isenção. Já para não falar da legalidade —
coisa que nunca preocupou esta direção
da FCT, useira e vezeira em ignorar
recursos de decisões de avaliação (ou,
após muita insistência, em recusar-se a
fundamentar cientificamente o seu não provimento),
em desrespeitar prazos
para responder a reclamações e em
dispensar-se de corrigir erros informáticos
e outros lapsos grosseiros mesmo
quando estes inquinavam o processo de
avaliação. Marcas
de uma gestão
discricionária, à
margem do Estado
de direito.
As
consequências
estão à vista.
No futebol
continuamos,
mais ou menos,
na mesma. Na
ciência ficámos
com equipas
enfraquecidas
ou destruídas.
Antes altamente
internacionalizadas,
atrativas para
investigadores
de excelência em
todos os domínios
científicos,
perderam centenas
dos seus melhores
elementos,
forçados a emigrar, a regressar
ao estrangeiro ou a desbaratar no
desemprego e subemprego o seu saber e
capital de experiência.
Por fim, na despedida, o árbitro inventou
a regra de que também podia jogar numa
das equipas: e marcou um golo!
Espanta-nos que um cientista
reconhecido pela sua investigação
em cegueira tenha demonstrado uma
tão confrangedora falta de visão em
matéria de política científica! Mas é um
facto — mais uma vez comprovado pela
experiência de quatro anos de governo da
direita — que a cegueira ideológica cega
mais do que a visual.
Mário Vieira de Carvalho
Professor catedrático jubilado
(FCSH-UNL)
terça-feira, 22 de setembro de 2015
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