sexta-feira, 20 de setembro de 2013

I Am A Curious



Aparentemente, entre Fermi, Oppenheimer e um velho e cúpido professor de Física com o fémur partido, roçando os seios da jovem empregada de sua casa, não há nenhuma diferença.
Alberto Moravia é um dos grandes escritores italianos do século vinte. Romances como Os Indiferentes, O Conformista, O Desprezo, A Romana, La ciociara, A Desobediência e O Homem Que Olha tiveram êxito, e foram levados ao cinema por realizadores de méritos consagrados como Vittorio De Sica e Jean-Luc Godard.
O Homem Que Olha é uma reflexão sobre o voyeurismo e a curiosidade. O narrador é filho do professor de Física e repreende, pelo diálogo, a curiosidade sem limites e a perversão do pai:
«Eu digo-lhe: «Não te vou pedir informações científicas; as minhas perguntas referem-se aos aspectos, como dizer, humanos.»
«Humanos?»
«Quer dizer refere-se às pessoas que levaram a cabo as experiências a que devemos as armas nucleares.»
A minha maneira de começar a discussão, directa e pessoalizada, surpreende o meu pai, que evidentemente esperava uma abordagem diferente. Respondeu-me com uma agressividade irónica: «Que te fizeram essas pessoas? Há pouco a dizer a seu respeito: todos eram gente de bem, acreditavam no que estavam a fazer e faziam aquilo em que acreditavam.»
Digo com precaução: «Não duvido de que, realmente, como dizes, fossem pessoas de bem. O que me interessa é antes o facto de, embora sendo pessoas tão diferentes umas das outras (por exemplo, que diferença maior do que a existente entre Fermi e Oppenheimer?), terem todas um traço comum.»
«Creio que sim, eram homens de ciência.»
Corrijo: Não estou a falar das suas características profissionais; mas de um traço, por assim dizer, psicológico.»
O meu pai desdobra novamente o jornal, talvez num gesto demonstrativo de que, embora não recuse o diálogo, o tema não o interessa. Diz depois, distraidamente, percorrendo os títulos: «Que traço?»
«Não sei como lhe hei-de chamar. Curiosidade é muito pouco, indiscrição é inexacta, profanação é demais. Digamos, talvez, ardente curiosidade.»
«Porquê ardente?»
«Porque dir-se-ia tratar-se de um fogo devorador, inextinguível, destruidor?»
O meu pai rectifica: «Estavas a falar de curiosidade, mas de que curiosidade?»
«A curiosidade que se encontra na origem das experiências.»
Meu pai acaba por pôr de lado o jornal e pergunta: «Porque chamar-lhe curiosidade e não, por exemplo, sede de saber?»
«Porque sede de saber é uma expressão figurada, de tipo retórico. A sede é uma sensação física; usa-se para indicar uma necessidade impulsiva: o nosso corpo por meio da sede dá-se conta de que não pode sobreviver sem uma certa quantidade de água…digamos, sem olhar através do buraco da fechadura um casal que está a fazer amor.»
Com esta frase, naturalmente, penso na poesia de Mallarmé, no imaginário rapaz de boa família que espreita pela fechadura da porta a «concha pálida e rosa».
Mas, ao meu pai, que ignora todas as leituras, a comparação deve parecer pelo menos desajustada. Vejo-o soerguer as sobrancelhas: «O que é que o buraco da fechadura tem a ver com isto?»
«É para definir um género de curiosidade – como hei-de dizer? – libidinosa.»
O meu pai não tarda a dar-se conta do que estou a querer dizer. Exclama numa voz curiosamente alterada: «De acordo contigo, os que levaram a cabo a experiência da cisão do átomo eram curiosos como os que espreitam pelo buraco da fechadura um casal que faz amor?»
Começo a rir, satisfeito por sentir-me compreendido: «No fundo, lá bem no fundo, acho que sim.»
Ele retorque, com convicção: «Não eram curiosos, analisavam.»
«Mas, apesar de tudo, sempre com curiosidade.»
O meu pai diz, cansado: «Não estou a perceber bem onde queres chegar.»
«A parte nenhuma. Só quero dizer que a curiosidade, atingindo um certo grau de ardor, é sempre sinal de desorientação, de cegueira. O homem curioso é um homem muito, muito comum. E o facto de ser, justamente, curioso, demonstra-o.»
Vejo-o bocejar ostensivamente em sinal de saciedade: «Agora só te falta descobrir que a curiosidade é a mãe da ciência.»
Agarro na objecção com ferocidade: «É claro, trata-se de um lugar-comum, mas, neste caso, vivam os lugares-comuns.»
O meu pai cala-se, descontente.
Eu acrescento, com mais seriedade: «Gostava de insistir no facto de que as pessoas que tu dizes que analisavam eram homens comuns, ou seja, medíocres, justamente porque “apenas” analisavam.»
«Bah!»
«É tão verdade que não previram os efeitos da curiosidade e foram apanhados a contrapé pelas suas próprias descobertas. Sabes o que disse Fermi a propósito da cisão do átomo?»
O meu pai fica calado. É claro que o tom persecutório da minha voz lhe provoca um fastio enorme. Mas eu cito lentamente: «Deus, nos seus imperscrutáveis desígnios, tornou-nos cegos perante o fenómeno da cisão do átomo.»
A bomba atómica beija o seio da Terra. Lábios sequiosos e abertos beijam o néctar nuclear. Entretanto permaneço curioso, dentro dos limites, em relação ao futuro do meu país. As livrarias estão a abarrotar de livros escritos por génios ( de preferência funcionários de editoras) , as livrarias estão vazias. O senhor Paulo Portas é tão curioso que vê  o que ninguém vê e chega  aonde ninguém  chega. O ano escolar arrancou bem em todas as escolas e o número de alunos no ensino secundário decresceu drasticamente, porque os pais não têm dinheiro. As câmaras estão endividadas e continuam a gastar... assim andamos.

1 comentário:

perhaps disse...

A minha curiosidade em relação ao futuro do país, e não serei original, já sofreu uma mutação e está mais próxima da agonia, do "Pai, se é possível, afasta de mim esse cálice" (que tresanda). Parece-me também que as consequências são por demais indesejáveis. Um país quase no completo a subir este calvário, é demais. É que, definitivamente, não somos deuses nem aparentados - ainda que possamos pensá-lo. E o próprio, se bem me lembro, sofreu de paixão um fim de semana inteiro e prolongado, começou para aí à 5ª, e morreu no fim daquilo tudo.
Mesmo que acreditemos em ressurreições temos de esperar pelo fim do mundo. Tempo demais para cada português. E portanto. Assistimos à sem vergonhice de quem não merece nem pisar o tapete da casa da Res Pública, mas ali está asneirando constante e indefecto. Três meses sem poderem tocar nas contas, tresladados (tresladados, sim, são cadáveres putrefactos) para uma casa de um bairro social, sem acesso a nada de seu. A viverem com ordenado mínimo. Ou de pensionista.

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...