terça-feira, 10 de setembro de 2013

Entrevista a João Cruz

João Cruz, tem sido um colaborador regular neste blog. Cientista, empreendedor, iconoclasta e quase sempre polémico, é uma pessoa com ideias próprias e  uma visão muito particular do mundo. Nesta pequena entrevista, vamos tentar connhecer um pouco mais da sua personalidade e das suas ideias.


Armando: João, tu tens um perfil muito sui generis, sobretudo para um país como Portugal pouco habituado a discussões abertas e livres de preconceitos ideológicos. Conhecido pelas posições consideradas por muitos neste blog de radicais, mas sempre provocadoras e estimulantes. És um empresário (de sucesso), que descobriu uma paixão pela física, sobretudo no cruzamento com a área designada “complexidade”, nomeadamente a economia. Sobre ela, tens uma perspectiva muito própria e, arriscar-me-ia a apelidar de desafiadora. Já publicaste alguns artigos sobre o tema para a comunidade científica (ver no Arxiv.org), mas gostaria agora que partilhasses algumas das tuas ideias para um público mais abrangente.
Vamos começar por falar um pouco de ti. O que te trouxe até a Física e porque optaste por não seguir o caminho tradicional: licenciatura, mestrado, doutoramento?

João: Quando comecei a minha vida universitária era muito novo na idade e mais novo ainda na mentalidade. A minha juventude tinha sido passada no pós-25/4, os meus pais não tinham formação superior nem tinha qualquer contacto esclarecido sobre o que isso significava. Desde pequeno que a minha cabeça estava feita para a ciência, para fazer coisas que não tinham sido feitas, mas o quê não fazia ideia. Tinha algum interesse na Geofísica e alguma facilidade na Física (era um estudante muito sofrível com claras dificuldades de motivação e planeamento do trabalho) pelo que optei pela área. Para fazer o quê? Não fazia a mais pequena ideia. Não tinha nenhuma imagem da vida de um físico, tirando a romântica que via no "Cosmos", que sabia não ser para mim. Entrei no advento dos computadores pessoais, descobri a electrónica e o meu foco mudou rapidamente para a área tecnológica.
Na entrada na vida "profissional", num laboratório do estado que penso já não existir, comecei a "pagar" a minha falta de foco e empenho estudantil. Nada daquilo tinha interesse para mim, não era ali que faria as coisas que não tinham sido feitas. Surgiu uma oportunidade na indústria militar passado um ano e começou aí o meu desvio. Fiquei ligado optoelectrónica durante uns anos, numa indústria que, em Portugal, só produziu munições e armas durante décadas. Mas, pelo menos aí, vi a oportunidade de fazer coisas diferentes. Entretanto, duas indústrias estavam a nascer do zero com enormes necessidades de recursos com capacidades analíticas, as tecnologias de informação e a banca de investimento e, com enorme sorte, consegui entrar nas duas simultaneamente. Como estavam a nascer do zero, havia muito pouco conhecimento instalado sobre as duas pelo que todos os desenvolvimentos que fui fazendo tiveram que ser "sem rede". Tinha que resolver o tratamento computacional dos instrumentos financeiros ao mesmo tempo que tinha que resolver todos os aspectos funcionais a eles ligados - estruturação, valorização, contabilização, reporte, etc. Algumas regras de contabilização não existiam e tive que aprender contabilidade bancária toda para as criar.  A valorização dos derivados fez-me aprender e, principalmente entender, o valor económico de algo, a importância do tempo, as razões pelas quais o risco e a rendibilidade se conjugam. E a verdade é que o meu treino na abstracção da física me levou um pouco mais à frente que os meus interlocutores profissionais que eram traders, directores financeiros, reguladores, etc. que foram os meus professores informais. Isto ao mesmo tempo que aquilo que produzia eram soluções informáticas, que também não tinha tido educação formal.
Daqui, e respondendo antecipadamente à pergunta seguinte, passei a ser possuidor de uma conjugação de competências raras aprendidas da pior maneira, a trabalhosa. Aquilo que eram as minhas dificuldades enquanto estudante eram agora as minhas forças. Comecei a seguir os trabalhos da regulação internacional e a oferecer aos clientes o poder da conjugação das competências - a física(com a respectiva carga matemática), a computação e as finanças. Desenvolvia modelos de risco em clientes que hoje são copiados nas principais praças financeiras até que se deu a crise do subprime em 2008.
A crise do subprime é o acontecimento que me faz retornar à física. Pouca gente se preocupa em olhar para a crise do subprime pela lógica. É muito mais atraente fazê-lo pela paixão e pela ideologia porque assim não dá trabalho dizer mal. Mas a lógica diz-nos que não é fácil enganar toda a gente ao mesmo tempo. É fácil vender a ideia de que foi um problema de falta regulação porque a esmagadora maioria das pessoas não sabe que os títulos do subprime estava nos balanços de quase todos os bancos do mundo e que todos os reguladores do mundo olharam pare eles de 3 em 3 meses, no mínimo. Eu estava estatisticamente protegido porque tive a sorte de viver num país que cava uma crise desde 2001, mas o que estava a acontecer minava os fundamentos daquilo que o mercado acredita. Era altura de questionar tudo desde a base e para isso precisava de ir beber novamente à fonte.
Até do ponto de vista financeiro a minha opção de voltar à física depois de velho é interessante. Um mestrado em Física custa 500 euros por ano, um doutoramento 2750, lida-se com pessoas no percentil 95 da inteligência humana e bebe-se das suas ideias. Um curso de Excel de 4 dias custa a mesma coisa...:) Acho que a pergunta deve ser feita a todos os outros: com custos destes, porque é que os meus colegas eram todos miúdos?

Armando: No teu percurso, nota-se um espírito empreendedor. O que te levou a criar a tua própria empresa e como tem sido a experiência?

João: As pessoas têm uma ideia completamente errada do que é ser empreendedor e empresário, muito formada pela sociedade aristocrática portuguesa que impôs um numerus clausus durante o estado novo e castiga qualquer ideia de sucesso depois. É vulgar eu dizer que sou empresário e bombardearem-me com patetices de exploração, fuga aos impostos, como se a iniciativa fosse sinónimo de crime. Também fazem muita confusão entre empresário e gestor. Uma parte relevante das pessoas que conheci na vida científica que são muito mais empreendedores que eu e, na realidade, gerem uma empresa. A diferença são os riscos pessoais que colocam nesse empreendedorismo. Ser empreendedor é "adicionar mãos" ao nosso corpo limitado. É alavancar as nossas capacidades juntando outras pessoas que conseguem que aquilo que conseguíamos fazer com duas mãos, fazemos agora com 50, com 100.
Como não venho de famílias abastadas, tudo o que pude empenhar na criação da minha empresa foi a minha pessoa. O conjunto de activos intangíveis que fui armazenando ao longo da vida profissional. E continuo a acreditar, mesmo agora que se está a internacionalizar para mercados mais evoluídos, que uma empresa é a extensão dos seus criadores e, por isso, a experiência é fantástica porque faço aquilo que quero, apesar da enorme responsabilidade que é ter mais de 100 famílias a depender de nós. Que empresa em Portugal se pode orgulhar de ser (quase de certeza porque não há dados) o maior empregador privado de Físicos? Em que empresa eu decidiria fazer um doutoramento em Física e o patrão concordava? Também, não havendo dados, não é fácil avaliar, mas se olharmos para a quantidade de físicos que formam empresas relativamente ao número total de físicos, não sei se não estamos perante um número substancialmente maior que noutras formações.

Armando: Falemos agora um pouco da economia. Num artigo publicado neste blog intitulado “O que é a economia”, mostravas a dificuldade em responder a uma pergunta tão simples. Será que sabemos mesmo o que é a economia? O que é afinal a economia e porque é afinal a resposta assim tão difícil?

João: Economia é uma paixão relativamente recente para mim e decorreu, como disse, da procura dos fundamentos errados daquilo em que o mercado financeiro acredita. No entanto, se fosse fazer um ranking dos temas por livros "lidos" ("ler" um livro técnico...), Economia (com "E" maísculo, a ciência) ganha de longe. Porquê? Porque, para os padrões de quem teve uma formação em ciências naturais, os economistas não se debruçam por aí além sobre os fundamentos daquilo que deveriam estudar. Mais uma vez, parece que a lógica tem um valor reduzido em muitas vertentes da nossa vida. Muito poucos economistas se debruçam sobre o que é a economia e porque é que existe. Tive conversas com pessoas que muito respeito da área que me respondiam com algum desprezo "ah, aquela coisa teórica...", resposta impensável se falarmos com um físico sobre a natureza das coisas. Existem algumas definições geralmente aceites mas há um factor que julgo fundamental, e que faz parte da minha pesquisa:  aquilo que nós entendemos como economia, o conjunto de mecanismos, tem que ser livre da história. Tem que ser válido para qualquer era da vida do Homo Sapiens, algo que cresceu com a primeira tribo e nos trouxe até hoje. E não existe noutras espécies. Seja qual for a forma pela qual possamos encarar o conjunto de mecanismos a que chamamos economia, ele é sempre o resultado da biologia do ser humano.
A dificuldade deriva de estarmos a olhar para nós, num campo completamente envenenado de crendice, interesses próprios e paixão. Daí a virtude da Física, de reduzirmos um campo complexo a algo limpo de particularidades. Mas a economia não é um sistema físico no sentido tradicional do termo, algumas aproximações podem ser feitas a partir da framework da física estatística e da física de muitos corpos para se obter aquilo que é possível obter, mas com uma diferença muito importante. Toda a física estatística foi construída em torno de uma ideia de equilíbrio. Toda a teoria da probabilidade tem subjacente uma ideia de equilíbrio, embora não de forma explícita, e, do ponto de vista físico, a economia é o contrário, é um sistema permanentemente a crescer. Transformando um pouco a física do equilíbrio para a física do "equilíbrio aparente" conseguimos atingir justificações para os fenómenos económicos que a Economia parece ser incapaz de atingir, mas nem tudo é possível explicar. Numa frase em Física definiria: "Economia é um sistema a N corpos que se atraem mutuamente e injectam energia continuamente no sistema". Em Economia,definiria: "Economia é o estudo dos mecanismos pelos quais a sociedade satisfaz as suas necessidades infinitas recorrendo a recursos finitos". Mais que isto, só com um livro inteiro

Armando: Outra questão que abordas recorrentemente é a noção de dinheiro. O que é afinal o dinheiro e o que ele representa?

João: Os economistas têm a tendência de reduzir o dinheiro a um dos seus papeis na economia actual. O dinheiro serve de meio de pagamento, evita que a nossa troca de trabalho tenha que ser síncrona; serve de padrão de valor, nós reduzimos o valor do nosso trabalho, que é sempre discutível,  a um padrão que é o valor do dinheiro. E finalmente serve de meio de armazenagem de trabalho, poupamos dinheiro para podermos trocar no futuro por trabalho de outrém. Mas olhando de forma "física" dinheiro é trabalho "enlatado". O valor que tem é o valor que o trabalho passado, que foi comprado com esse dinheiro, tem hoje. Por isso quando se "viola" o princípio da impressão de dinheiro para pagar o valor do trabalho, todo o trabalho passado passa a valer menos face ao trabalho actual e dizemos que a moeda desvaloriza.  Tudo na economia é troca de trabalho, dinheiro representa o trabalho do passado. A falta da noção do que é o dinheiro nota-se quando se discute o bitcoin e a forma como é "extraído". O valor do dinheiro não tem nada a ver com a sua raridade, o ouro tinha valor enquanto moeda se o valor do trabalho para o extrair do solo fosse superior ao valor do trabalho passado que iria representar. Por isso valor pode ser confundido com raridade, mas não é a mesma coisa. Hoje moeda é um papel ou ainda menos que isso, desde que seja garantido que aquela quantidade de moeda pagou aquele valor de trabalho. O que é o valor do trabalho? Bem, não se consegue imaginar que ciência pode viver quando o seu conceito fundamental é definido a menos de uma constante aditiva... :)

Armando: Falemos agora dos teus trabalhos. Num deles pões em causa os critérios de Basileia III que estipulam aumento dos rácios de capital próprio dos bancos. Porqua achas que esta ideia, aparentemente razoável, afinal pode ter o efeito oposto daquele para o qual foi proposto: evitar o colapso do sistema bancário?

João: Primeiro devemos entender os objectivos da imposição de um rácio de capital e da regulação bancária no seu todo. Existe regulação bancária, que em última análise é paga pelos clientes dos bancos nas taxas que pagam/recebem, para defender a estabilidade do sistema como um todo. Sistema onde, recorde-se, colocamos o stock do nosso trabalho passado para consumirmos trabalho dos outros no futuro. A ideia que está subjacente ao critérios de Basileia, o comité de reguladores bancários do mundo civilizado que se reúne nessa cidade helvética, é que uma maior almofada de dinheiro no sistema vai absorver o impacto da falência dos bancos, protegendo o sistema no seu todo. Parece intuitivo, mas na realidade é o oposto.
É intuitivo porque imaginamos um enorme gás de agentes económicos aproximadamente iguais que interagem entre si mais ou menos aleatoriamente. A mesma imagem que temos de um gás em equilíbrio termodinâmico. Mas a economia não é um sistema em equilíbrio termodinâmico. É um sistema sempre a crescer em energia, o que gera um tipo de geometria a que se chama de rede livre de escala, onde a probabilidade de se ser muito grande é baixa mas não nula, como se os choques das partículas de gás se fossem agregando as partículas fazendo com que os maiores agregados cresçam mais com o crescimento do sistema. Toda a economia é assim, daí a resiliência das desigualdades sociais, que é um fenómeno decorrente dos mesmos mecanismos que formam os gigantes financeiros. Quando estabeleço um constrangimento como um nível de capital mínimo, a probabilidade de violar esse limite sobe à medida que subimos esse nível. Como capital é o dinheiro mais caro que um banco pode recorrer(se os accionistas recebessem o mesmo que os depositantes, seriam depositantes porque estes têm menos riscos), os bancos mais pequenos desaparecem concentrando o negócio nos bancos maiores que, obviamente, têm os mesmos constrangimentos percentuais. Quando um banco quebra esses limites, os bancos pequenos que deveriam absorver o impacto não existem porque o negócio foi concentrado e a avalanche dá-se com maior intensidade. Na realidade, ao subir os níveis de capital estamos a formar aquilo a que se chama de bancos "too big to fall" (e são-no de facto!) e a aumentar a probabilidade de avalanches catastróficas no sistema financeiro. Exactamente o oposto dos objectivos iniciais. Um fenómeno semelhante ocorreu com as auditoras depois do escândalo da Enron. Na tentativa de salvaguardar a fiabilidade do reporte contabilístico, o lei Sarbanes-Oxley criou tantas exigências às auditoras que estas se concentraram e se uniram àquelas que tinham dado origem ao escândalo.

Armando.O que deveria então ser feito para tornar o sistema bancário mais robusto (ou na linguagem de Nassim Taleb, anti-fragil) e evitar outra crise?

João: Não há forma de evitar crises. Na realidade, o equilíbrio aparente formado por um sistema de N corpos que cresce energeticamente de forma contínua, impõe que as oscilações sejam na escala, ou seja, em potências daquilo que é para nós a medida directa. Isto coincide com a ideia de crise que, na escala é uma mera oscilação, mas para nós é uma avalanche. Agora, quantos mais constrangimentos encontrarmos, maior será a probabilidade de uma crise grande. A regulação bancária interna nos Estados Unidos gera mais de uma centena de falências de bancos por ano e o sistema deles é mais resiliente que o nosso, onde uma possível falência provocará uma crise enorme. A ideia que temos na Europa de que um banco não pode falir é verdadeira, mas fomos nós que pedimos isso impondo aos políticos que elegemos uma maior carga regulatória. Queixamo-nos agora do dinheiro que é colocado nos bancos em tempo de crise, mas deveríamos ter pensado nisso quando os reguladores andaram a fazer um festim administrativo.

Armando.Sei que estudas sistemas fora-do-equilíbrio mas a maioria dos economistas trabalha com sistemas em equilíbrio. O que muda assim tanto de um cenário para outro e porque é que os economistas persistem em usar modelos em equilíbrio?

João: O que os economistas chamam de equilíbrio não é o que os físicos chamam de equilíbrio. O equilíbrio dos economistas é o que os físicos chamam de "mean-field", é isso que produz o preço, por exemplo. O problema nesta abordagem dos economistas é que, ao contrário do que eles reclamam e assumem, este mean-field não traz nenhum adicional de previsibilidade. Então, ao modelarem o sistema como um sistema assumido como em equilíbrio, fazem o fit aos dados empíricos nesse pressuposto e, consequentemente, a asneira está montada. E há dezenas de razões para isto dar asneira, podíamos cingir-nos simplesmente à própria definição de economia e à teoria da probabilidade para o mostrar, nem sequer era necessário entrarmos pela ideia de equilíbrio físico. Mas eu estudo sistemas fora do equilíbrio, transformando-os em sistemas em equilíbrio, senão essa matemática também não é válida( por fora do equilíbrio entendo MESMO FORA, não são oscilações em torno de um ponto de equilíbrio térmico
). É interessante o conjunto alargado de produção científica que se fez recentemente em sistemas fora do equilíbrio que viola as bases matemáticas pelas quais se impõe uma ideia de equilíbrio térmico em Física. Essa imposição tem razões matemáticas profundas para a definição de um espaço de probabilidade na qual se define uma medida de probabilidade, não é um imposição que alguém se lembrou por razões históricas ou algo que se fundamenta num postulado e está feita a festa.

Armando.Tu tens uma larga experiência e uma visão própria do risco e gestão do mesmo. Porque é que ainda hoje não entendemos bem o risco (a avaliar pela crise recente) e como é que a física pode ajudar?

João: Nas respostas anteriores acho que digo o fundamental. Risco é incerteza e gestão de risco é a medida dessa incerteza. Se estamos a medir risco como se a economia que nos envolve fosse um gás de choques inelásticos, não só entendemos mal o risco, como fazemos apenas uma pequena ideia da sua quantificação.  Mas estamos em campo completamente aberto. A razão pela qual as medidas de risco não foram alteradas não foi teimosia. A verdade é que ainda há um caminho para fazer até podermos tornar uma medida de risco credível e praticável perante o mercado. A justificação matemática disto é algo comprida, mas em resumo, qualquer medida que se faça à luz do conhecimento que temos agora é mal feita, pelo que o mercado opta pela mais fácil. Sabemos que não há mitigante de risco como a diversidade, agora quantificá-lo é que é difícil.

Armando.Falemos agora um pouco do nosso país e do Estado, o qual tu muito tens criticado. Qual o principal problema do país e que medidas deviam ser implementadas para corrigir a falta de crescimento económico?

João: Se há coisa que não faço habitualmente é criticar o país, tirando as escolhas que faz no seu colectivo. Acho que temos o melhor país do mundo onde a natureza colocou a melhor gente que, por ser tão boa, é incapaz de encontrar um caminho em comum que respeite a individualidade. A forma como Salazar o fez foi impor a ignorância, com consequências que ainda sofremos mas parece que continuamos sem perceber a razão de existir de um estado democrático. Um estado democrático, como eu o vejo, é uma área de serviços ao país que, por deter o monopólio da violência, deve ser comandada por gente eleita para nos proteger desse poder. O estado português é exactamente o contrário e as pessoas continuam a falar "daqueles que nos governam" como se alguém estivesse no governo do estado para mandar neles. Mandam nos funcionários do estado, não nos cidadãos do país. Continuamos a exigir daqueles que nós elegemos que façam, em vez de mandarem os profissionais fazer. Somos exigentes com um desgraçado que colocámos a mandar nos funcionários públicos e depois somos permissivos com os funcionários por se recusarem a cumprir as ordens decorrentes do mandato que demos aos desgraçado. Continuamos a achar que o pagamento do bem comum deve ser feito pelos outros que têm mais que nós ou, alternativamente, pelo dinheiro que cai das árvores. Na verdade, não sei se a República Portuguesa é uma realidade economicamente viável na Europa, sei que Portugal não vai deixar de existir, mesmo que o estado caia. Acho que o mundo de hoje dá um valor reduzido ao território e um nível de poder que se justifica no território vai tornar-se incomportável. E também é verdade que todos serviços podem ser feitos em Bruxelas ou ao nível das câmaras pelo que, com o tempo, acho que vamos ver questionado o porquê de um estado em Lisboa. O facto é que conseguimos lidar com coisas do tamanho de condomínios com grande capacidade, mas quando chegamos ao município já estragámos tudo...
Eu não acho que tenhamos falta de crescimento económico. Temos falta de economia, porque durante décadas tivemos agentes alocados a recursos que não eram nossos a produzir coisas que ninguém precisa e agora têm que ser alocados a actividades económicas de facto.  Mas a economia que já funcionava e que não era o resultado de um processo administrativo, essa continua a crescer e pujante, a avaliar pelos números do comércio externo. Obviamente, a circulação de dinheiro, aquilo a que a pessoas chamam de PIB, tem que ser reduzida porque o dinheiro não era nosso. E ainda temos uma "conta calada" a resolver, depois de uma década de manobras contabilísticas e truques de honestidade questionável que, por muito menos, levaram vários gestores americanos à cadeia. Sei que com a forma como o estado português está a reagir às iniciativas do país para o salvar, não vejo como possa durar muito mais tempo. As notícias repetidas de rejeição das medidas para tornar o estado viável, por parte do próprio estado, vai tem um final muito previsível. Agora o país, esse, acho que vai muito bem, apesar de ainda termos que resolver o problema das pessoas que dependiam desse dinheiro que não era nosso. Mas acho que o que estamos a resolver estamos a resolver de forma sólida.

Armando: Antes de terminar, e de te agradecer, queria que recomendasses um livro ou outro recurso que consideres importante para perceber estes temas.

João: Somos tão bombardeados com coisas que assumimos como certas, porque "há quem perceba disso", que delegamos a tarefa de pensar nelas. Mesmo quando as coisas nos parecem estranhas, apanhamos com uma explicação parva e não nos damos ao trabalho de pensar nessa explicação. Por isso o facto de me fazeres estas perguntas é, em si mesmo, algo de muito mais raro que o meu perfil.
Um filme que andei muito tempo para ver foi o "Inside Job", sobre a crise financeira de 2008. Depois de vê-lo e à forma como o filme nos manda para a conclusão pensei que poderia fazer um documentário sobre mim. E nesse documentário diria apenas "boa parte das mulheres que vão trabalhar com ele, acabam grávidas!" . O que é verdade. Só omiti que boa parte das mulheres que vêm trabalhar comigo acabaram o curso há menos de 5 anos e, por isso, estão todas em idade de ficar grávidas dos maridos que já tinham antes de virem trabalhar comigo. Mas as conclusões para que atirei o leitor com a primeira frase, são completamente diferentes das conclusões que se tiram se não omitir as informações adicionais. E nunca menti. Portanto, o primeiro recurso é rever o "Inside Job" (estava disponível integralmente no Youtube...) e questionarmo-nos se em todas as conclusões para que somos atirados são de facto aquelas que deveríamos tirar. Vemos um filme diferente.
Acho que, concorde-se ou não com o estilo e com algumas das conclusões, Taleb é sempre um bom alimento para um espírito crítico por nos forçar a questionar mesmo aquilo que damos como certo há anos. Entre os físicos, e com algumas recomendações de prudência devido ao facto da sua produção ser constrangida pelo protocolo da economia dos papers, o José Fernando Mendes, o Jean-Phillipe Bouchaud, o Sorin Solomon e o Johannes Voit. Mas como referi, é um campo aberto, há muita coisa boa, muita coisa má e, principalmente, muita coisa má que já foi boa. A área fora do equilíbrio está ainda muito fora do equilíbrio.
Finalmente, "I only believe in the ultimate equations, the ultimate data run away with my money..."

5 comentários:

Jose Salcedo disse...

Excelente entrevista, João e Armando, apreciei muito. Excellent food for thought. Abraços.

Armando disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Armando disse...

Algumas referências ao trabalho do João que me esqueci de mencionar na entrevista original.

referências

maria disse...

o João sabe que já tem vários colegas no estranja que se dedicam a sério à " quantum economic " ?

e a brincar , e se quiserem rir um bocadinho :
http://uncyclopedia.wikia.com/wiki/Quantum_Economics

João Pires da Cruz disse...

Há muita gente que se dedica ao estudo da economia, mas a quantum economics a sério consegue ser pior que essa a brincar :)

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