Texto na continuação de um outro, a propósito do comentário de Luís Ferreira.
1.
Quando se coloca esta dupla negação pretende-se mostrar que temos de encontrar um equilíbrio entre estas duas conceções extremas. De algum modo estamos a ser vítimas destas oposições que, por razões sociológicas e culturais são, ou têm sido, mais opostas dialecticamente do que deviam ser. É preciso voltar à síntese equilibradora.
Os naturalismos têm, como é óbvio, por detrás de si, a Natureza e a sua razão de ser, que não podemos ignorar nem desvalorizar; sejam eles científicos, literários ou filosóficos.
O Naturalismo, como se sabe, tem que ver com a Natureza e suas leis fundamentais, e, paralelamente, com o facto de a Natureza ser tudo o que existe, esgotar de algum modo a realidade, ideia progressivamente aceite à medida que perdiam terreno conceções espiritualistas, metafísicas e todas as que ultrapassam ou pressupõem domínios não naturais. Isto é, que não existem na Natureza e que, por isso, não podemos conhecer (por processos fiáveis e segundo as exigências atuais do conhecimento científico) nem, portanto, controlar.
Este processo de valorização da Natureza, embora se possa entroncar em Aristóteles, nos atomistas e nos estóicos, foi paralelo ao desenvolvimento das ciências da Natureza e de toda a informação científica em geral, que nestas (e mais tarde nas ciências sociais) se foi acumulando, em virtude de métodos de investigação cada vez mais específicos e aperfeiçoados.
Deixar pois que a Natureza se desenvolva nos jovens, naturalmente, isto é segundo as suas leis, os seus ritmos e sem os constrangimentos excessivos e despropositados de algumas coações sociais (e educativas) é uma ideia que nos parece correta e adequada; sobretudo por que é “natural”. A Natureza está certa, é ela que tudo determina, ela é a referência, daqui a ideia de otimismo antropológico, que é muito forte em Rousseau.
A educação deve respeitar as leis da natureza, até porque estas são, no nosso atual ponto de vista, as leis que condicionam toda a realidade. Não há outra, ou, pelo menos, não temos acesso a ela. Este aspeto é importante que seja respeitado, pois deve ser evitada toda a violência que constrange ou inibe o desenvolvimento que a natureza pressupõe em nós, e que estamos naturalmente em condições de alcançar.
Épocas houve em que educar era ir contra muitas destas forças, controlá-las, coagi-las. A Natureza era vista como defeituosa, e a natureza humana perigosamente propensa ao erro (daí o pessimismo antropológico), que por isso tinha que ser constantemente vigiada, controlada e corrigida pela educação e pela pressão social. Frequentemente de maneira cruel e violenta, porque tudo o que fosse no sentido dessa correção era aceitável em vista de um bem maior a alcançar.
É a estes olhos que temos que compreender Rousseau, e não só, mas também Coménio, Pestalozzi, e, já no século XX, os teóricos da Educação Nova e outros mais radicais ainda, como já assinalamos.
Rousseau, em pleno Romantismo, adorador da Natureza, não podia ver com bons olhos uma educação, formalista, inibidora, contrariando o crescimento e o desenvolvimento natural; segundo ele era demasiado anti-natural para dar bom resultado. Quando agora se diz mal de Rousseau, e se fala dos “filhos de Rousseau” com desprezo, era bom que se pensasse no contexto cultural em que as suas ideias apareceram, por um lado, e que se reconhecesse que Rousseau é uma das grandes personalidades não só do século XVIII, mas de toda a Modernidade, determinante mesmo, pelas suas ideias, para a formação da mentalidade Moderna.
O “naturalismo científico” de que fala Luís Ferreira, no comentário ao texto anterior, enquadra-se no processo de desenvolvimento científico dos séculos XIX e XX e em grande medida vai na linha de muitas das intuições de Rousseau, de Pestalozzi e de quase todos os grandes nomes da pedagogia contemporânea. A nível psicológico há também um grande desenvolvimento no domínio das leis reguladoras dos comportamentos, como consequência da investigação científica que se desenvolve. A própria ideia de “natureza humana” evoluiu em função dos conhecimentos psicológicos, biológicos e etnológicos, que se foram constituindo.
É compreensível que estes conhecimentos, dando-nos informação sobre os processos de crescimento biopsíquico, fases do desenvolvimento intelectual e mecanismos de aprendizagem tenha vindo a condicionar as ideias e as práticas educativas, que assim se foram tornando mais “naturalistas” e científicas e menos ideológicas, espiritualistas, voluntaristas, etc. Neste sentido as componentes não científicas foram cedendo espaço, não sem relutância, aos conhecimentos, cada vez mais rigorosos em termos científicos, que a investigação ia proporcionando, e continua a proporcionar.
Uma certa crítica à educação como demasiadamente técnica, que é hoje corrente em certos sectores, vem da predominância científica e técnica dela, na base, por sua vez, do que poderíamos chamar naturalismo científico, incluindo vários domínios de investigação
2.
Acontece, porém, que o ser humano não é só natureza, é também, e numa enorme escala, sociedade e cultura. E quem diz cultura diz espiritualidade, afetividade, ideologia, moral, racionalidade, irracionalidade, etc.
A ideia de ser humano e de comportamento humano perde sentido sem os contextos socioculturais, sem os grupos e as infinitas interações e dependências que provocam e em que assentam. O que significa que a educação não pode nunca deixar de pensar nesta dimensão cultural, nem desprezá-la. O que pressupõe viver com os outros e aprender a valorizar isso (sem os outros nós não éramos nada), vitalizar os grupos, qualificar o social e os seus mecanismos de coesão e de autonomia.
Para valorizar cada um em particular é indispensável articular o desenvolvimento individual, (onde as componentes natural e egoísta são predominantes) com a componente social onde os outros e os grupos são os factores de interação indispensáveis e sem os quais o nosso próprio desenvolvimento seria impossível.
A educação nas últimas décadas, talvez por reação à pressão social anterior, teve tendência a desvalorizar e esquecer este aspeto, mas não é possível fazê-lo sem prejuízo mais ou menos grave.
Repare-se que Piaget (que Luís Ferreira referiu) estuda as fases do desenvolvimento intelectual, com base empírica e de uma maneira quase exaustiva, para concluir que há fases definidas nesse desenvolvimento, há sequências, há uma estrutura à espera de se desenvolver segundo uma certa ordem pré determinada. Mas há uma hierarquia de dificuldades, que não adiante querer alterar (o que releva de uma ordem da natureza) mas que nada disto funcionará se não houver interação com os outros, ou seja, que a natureza do nosso intelecto está como que à espera das situações de interação social para se desenvolver e ir alcançando os diversos e cada vez mais evoluídos estádios de desenvolvimento intelectual. O que demonstra a importância do social.
É claro que a “educação por medida”, a individualização dos processos de aprendizagem, a ideia de que cada aluno é um caso, etc., são verdades, mas não podem ser tomadas demasiado à letra. Victória Camps fala-nos nos «paradoxos do individualismo», de que a nossa época sofre, e da necessidade de recuperar uma dimensão social atualmente em perda. É corrente hoje dizer (e pensar) que podemos fazer tudo o que quisermos desde que não incomodemos os outros; ou de que tudo nos é permitido desde que não infrinjamos uma lei explícita, ou ainda que todo o legal é moral, etc.
Ora, não só o conceito de incómodo ou de prejuízo alheio é muito ambíguo e variável, como as leis são, como se sabe, muito interpretáveis e, portanto, demasiado adaptáveis às circunstâncias e aos diferentes poderes dos intervenientes. E também não podemos identificar a moral com o direito, porque este tem uma dimensão objetiva e abstrata, por onde muitos se escapam, e a moral é sobretudo subjetiva e concreta, apanhando-nos sempre; o direito permite inúmeras fugas à nossa responsabilidade e a obrigação moral, desde que verdadeiramente interiorizada, não permite nenhuma. E, além disso, o outro, o nosso semelhante, ou seja, aquele que faz de mim o que eu sou, não pode ser visto como alguém que me coíbe e me pode perturbar, mas sim como o outro (os outros) de que eu preciso e que, portanto, interagindo comigo, me constituem e eu constituo. O que implica a adoção e o cumprimento de normas de vida coletiva, de regras de entendimento, de factores de aproximação, de articulação de forças, de referências e de interpretações comuns, em suma, de valorizações (e desvalorizações) segundo as mesmas pautas, etc.
Ora, a partir do momento em que se entra em consideração também com a componente social da educação o conceito de naturalismo relativiza-se, ou melhor, terá que se articular com os fatores que fazem do indivíduo um ser social, logo, relativo, integrado, e interdependente. Facto que o condiciona, mas também o potencia; força que o limita, mas também o expande.
O próprio conceito de aperfeiçoamento, que toda a educação pressupõe, contém uma componente natural, que tem que ver com natureza física e biológica do ser humano, e outra mais complexa, que releva do social, do cultural e sobretudo do ético. E aqui entram as valorizações e as interpretações, ou seja, entra em jogo o ético e o moral (o que é costume, o que é aceite, o que é considerado correto) e o axiológico (o valor, o dever ser). E isto em função de finalidades que a”natureza humana” com maior ou menor ambiguidade pressupõe.
O problema das finalidades mais ou menos explícitas, ou, pelo menos, implícitas, está sempre presente em toda a ideia de educação. Estas têm variado muito ao longo dos tempos e das sociedades, podem até chegar a ser contraditórias, mas estão sempre lá, pelo menos implícitas. Não se pode conceber um processo de crescimento e de aperfeiçoamento sem ter em vista uma finalidade.
Todo a educação é, por isso, teleológica (de “telos”, fim).
Mas a este nível coloca-se o problema da fragilidade das correntes naturalistas, da sua ausência de resposta. Qual é a finalidade da natureza? Não se encontram finalidades humanas na Natureza senão cumprir as suas leis e estar sujeito à infalibilidade do nascimento, do crescimento e da morte.
As finalidades humanas, tal como o conceito de aperfeiçoamento, a ideia de cânone, de referencial (presente em todas as sociedades e nas manifestações artísticas, por exemplo) necessita de ideias, de conceções sobre o humano, de padrões de qualidade, de valores, em suma precisa de pensamento coerente, de filosofia, para dar à educação as componentes que a Natureza não dá, ou só dá em pequena escala.
Podemos dizer que a Natureza é o padrão por excelência, mas o homem não se esgota nisso porque a ordem cultural é de outra natureza e de algum modo funciona em contraposição a ela.
Portanto, a oposição otimismo naturalista / pessimismo antropológico é uma antinomia que aconteceu muitas vezes ao longo dos séculos, mas que deve ser evitada. Porque, verdadeiramente, a natureza não é otimista, nem pessimista. E a chamada “natureza humana”, tanto nos dá razões para o pessimismo como para o otimismo.
Mas isto já depende em grande medida de educação, como todos sabemos. Em suma: há razões para se ser otimista e razões para se ser pessimista. Mas não esquecer que estes mesmos conceitos são uma criação nossa.
João Boavida
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1 comentário:
Um autor cuja obra pode dar um contributo importante para as questões aqui colocadas é, julgo Vygotsky, que definia a educação como o desenvolvimento artificial (hoje o mais adequado será dizer cultural) da criança.
Apesar de contemporâneo de Piaget, a obra deste psicólogo russo só foi contudo mais conhecida no ocidente a partir dos anos 80. Se ambos consideram que o conhecimento se constrói a partir da interacção do sujeito com o meio, para Vygotsky, ao contrário do que afirma Piaget, não é o desenvolvimento que possibilita a aprendizagem, é a aprendizagem que promove o desenvolvimento cognitivo.
Ainda segundo Vygotsky, as matérias de ensino e o momento em que são estudadas têm um papel importante na aprendizagem e no desenvolvimento dos alunos:
(…)”Para cada matéria de ensino há um período em que a sua influência é mais proveitosa, porque a criança se encontra mais receptiva. Montessori e outros educadores chamaram-lhe o período sensitivo, termo que é usado também em biologia para os períodos de desenvolvimento ontogénico em que o organismo é particularmente sensível a determinado tipo de influências. Durante esse período, uma influência que antes ou depois pouco efeito teria pode alterar radicalmente a evolução do desenvolvimento. Mas a existência de um tempo óptimo para o ensino de determinado assunto não pode ser explicada em termos puramente biológicos, pelo menos no que toca a processos tão complexos como a linguagem escrita. As nossas investigações demonstraram a natureza social e cultural do desenvolvimento das funções superiores durante este período, isto é, a sua dependência relativamente à cooperação com os adultos e ao ensino que estes ministram” (Vygotsky, Pensamento e Linguagem).
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