Aparentemente, entre Fermi,
Oppenheimer e um velho e cúpido professor de Física com o fémur partido,
roçando os seios da jovem empregada de sua casa, não há nenhuma diferença.
Alberto Moravia é um dos grandes
escritores italianos do século vinte. Romances como Os Indiferentes, O
Conformista, O Desprezo, A Romana, La ciociara, A Desobediência e O Homem Que
Olha tiveram êxito, e foram levados ao cinema por realizadores de méritos consagrados
como Vittorio De Sica e Jean-Luc Godard.
O Homem Que Olha é uma reflexão
sobre o voyeurismo e a curiosidade. O narrador é filho do professor de Física e
repreende, pelo diálogo, a curiosidade sem limites e a perversão do pai:
«Eu digo-lhe: «Não te vou pedir
informações científicas; as minhas perguntas referem-se aos aspectos, como
dizer, humanos.»
«Humanos?»
«Quer dizer refere-se às pessoas
que levaram a cabo as experiências a que devemos as armas nucleares.»
A minha maneira de começar a
discussão, directa e pessoalizada, surpreende o meu pai, que evidentemente esperava
uma abordagem diferente. Respondeu-me com uma agressividade irónica: «Que te
fizeram essas pessoas? Há pouco a dizer a seu respeito: todos eram gente de bem,
acreditavam no que estavam a fazer e faziam aquilo em que acreditavam.»
Digo com precaução: «Não duvido de
que, realmente, como dizes, fossem pessoas de bem. O que me interessa é antes o
facto de, embora sendo pessoas tão diferentes umas das outras (por exemplo, que
diferença maior do que a existente entre Fermi e Oppenheimer?), terem todas um
traço comum.»
«Creio que sim, eram homens de
ciência.»
Corrijo: Não estou a falar das
suas características profissionais; mas de um traço, por assim dizer,
psicológico.»
O meu pai desdobra novamente o
jornal, talvez num gesto demonstrativo de que, embora não recuse o diálogo, o
tema não o interessa. Diz depois, distraidamente, percorrendo os títulos: «Que
traço?»
«Não sei como lhe hei-de chamar.
Curiosidade é muito pouco, indiscrição é inexacta, profanação é demais.
Digamos, talvez, ardente curiosidade.»
«Porquê ardente?»
«Porque dir-se-ia tratar-se de um
fogo devorador, inextinguível, destruidor?»
O meu pai rectifica: «Estavas a
falar de curiosidade, mas de que curiosidade?»
«A curiosidade que se encontra na
origem das experiências.»
Meu pai acaba por pôr de lado o
jornal e pergunta: «Porque chamar-lhe curiosidade e não, por exemplo, sede de
saber?»
«Porque sede de saber é uma
expressão figurada, de tipo retórico. A sede é uma sensação física; usa-se para
indicar uma necessidade impulsiva: o nosso corpo por meio da sede dá-se conta
de que não pode sobreviver sem uma certa quantidade de água…digamos, sem olhar
através do buraco da fechadura um casal que está a fazer amor.»
Com esta frase, naturalmente,
penso na poesia de Mallarmé, no imaginário rapaz de boa família que espreita
pela fechadura da porta a «concha pálida e rosa».
Mas, ao meu pai, que ignora todas
as leituras, a comparação deve parecer pelo menos desajustada. Vejo-o soerguer
as sobrancelhas: «O que é que o buraco da fechadura tem a ver com isto?»
«É para definir um género de
curiosidade – como hei-de dizer? – libidinosa.»
O meu pai não tarda a dar-se
conta do que estou a querer dizer. Exclama numa voz curiosamente alterada: «De
acordo contigo, os que levaram a cabo a experiência da cisão do átomo eram
curiosos como os que espreitam pelo buraco da fechadura um casal que faz amor?»
Começo a rir, satisfeito por
sentir-me compreendido: «No fundo, lá bem no fundo, acho que sim.»
Ele retorque, com convicção: «Não
eram curiosos, analisavam.»
«Mas, apesar de tudo, sempre com
curiosidade.»
O meu pai diz, cansado: «Não
estou a perceber bem onde queres chegar.»
«A parte nenhuma. Só quero dizer
que a curiosidade, atingindo um certo grau de ardor, é sempre sinal de
desorientação, de cegueira. O homem curioso é um homem muito, muito comum. E o
facto de ser, justamente, curioso, demonstra-o.»
Vejo-o bocejar ostensivamente em
sinal de saciedade: «Agora só te falta descobrir que a curiosidade é a mãe da
ciência.»
Agarro na objecção com
ferocidade: «É claro, trata-se de um lugar-comum, mas, neste caso, vivam os
lugares-comuns.»
O meu pai cala-se, descontente.
Eu acrescento, com mais seriedade:
«Gostava de insistir no facto de que as pessoas que tu dizes que analisavam
eram homens comuns, ou seja, medíocres, justamente porque “apenas” analisavam.»
«Bah!»
«É tão verdade que não previram
os efeitos da curiosidade e foram apanhados a contrapé pelas suas próprias
descobertas. Sabes o que disse Fermi a propósito da cisão do átomo?»
O meu pai fica calado. É claro
que o tom persecutório da minha voz lhe provoca um fastio enorme. Mas eu cito
lentamente: «Deus, nos seus imperscrutáveis desígnios, tornou-nos cegos perante
o fenómeno da cisão do átomo.»
A bomba atómica beija o seio da
Terra. Lábios sequiosos e abertos beijam o néctar nuclear. Entretanto permaneço
curioso, dentro dos limites, em relação ao futuro do meu país. As livrarias estão a abarrotar de livros escritos por génios ( de preferência funcionários de editoras) , as livrarias estão vazias. O senhor Paulo Portas é tão curioso que vê o que ninguém vê e chega aonde ninguém chega. O ano escolar arrancou bem em todas as escolas e o número de alunos no ensino secundário decresceu drasticamente, porque os pais não têm dinheiro. As câmaras estão endividadas e continuam a gastar... assim andamos.