domingo, 2 de junho de 2013

"O QUE É A ARTE?" PARA TOLSTÓI


Extracto do livro com o mesmo título que acaba de ser publicado na Gradiva com introdução de Aires Almeida:

"(...) O que resulta então de todas estas opiniões e definições da beleza disponibilizadas pela ciência da estética?

Se não levarmos em conta as definições imprecisas, que não abrangem a ideia de arte e que ora consideram a beleza segundo a utilidade, ora segundo a racionalidade, ora segundo a simetria, ora segundo a ordem, ora segundo a proporcionalidade, ora segundo a elegância, ora segundo a harmonia das partes, ora segundo a unidade na diversidade, ora segundo múltiplas combinações destes princípios, as definições estéticas da beleza reduzem-se a duas concepções principais: a primeira, que a beleza é algo que existe em si mesmo, uma manifestação do absolutamente perfeito — da ideia, do espírito, da vontade, de Deus; a outra, que a beleza é um certo tipo de prazer obtido por nós desinteressadamente.

A primeira definição era aceite por Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer e pelos franceses Cousin, Jouffroy, Ravaisson e outros, sem mencionar os filósofos estetas de segundo plano. Esta mesma definição objectivo-mística da beleza é também aceite pela maior parte das pessoas instruídas da nossa época. É uma concepção de beleza muito difundida, sobretudo entre as pessoas da geração mais velha.

A segunda concepção de beleza encara-a como um certo tipo de prazer retirado por nós, sem qualquer finalidade ou proveito próprio, encontrando-se predominantemente difundida entre os estetas ingleses e partilhada pela outra metade, geralmente mais jovem, da nossa sociedade.

Por isso existem, como não podia deixar de ser, apenas duas definições de beleza: uma objectiva e mística, que confunde esta noção com a suma perfeição, com Deus — uma definição fantasiosa, fundamentada em coisa nenhuma; a outra, pelo contrário, uma definição subjectiva muito simples e compreensível, que considera a beleza como aquilo que agrada (não acrescento à palavra agrada e expressão «sem finalidade ou proveito», porque a própria palavra agrada subentende por si esta ausência de considerações sobre o proveito).

Por um lado, a beleza é entendida como algo místico e exaltante, mas, infelizmente, muito impreciso, e que, consequentemente, abrange a filosofia, a religião, e a própria vida, como sucede no pensamento de Schelling, Hegel e seus seguidores alemães e franceses.

Ou, por outro lado, como acontece com a definição de Kant e seus seguidores, a beleza é apenas um certo tipo de prazer desinteressado que recebemos. Neste caso, apesar de parecer muito claro, o conceito de beleza é, infelizmente, igualmente impreciso, porque segue noutra direcção — ou seja, inclui em si também o prazer da bebida, da comida, da sensação de toque numa pele macia e assim por diante, como reconhecem Guyau, Kralik, e outros.

É certo que, observando o desenvolvimento da teoria estética no que respeita à beleza, é possível notar que no início, quando a estética surgiu como ciência, predominava a definição metafísica de beleza, mas, à medida que nos fomos aproximando da nossa época, destacou-se mais a definição empírica, que nos últimos tempos tem vindo a adquirir um carácter fisiológico, a ponto de se encontrarem estetas como Véron e Sully, que tentam prescindir da noção de beleza. Contudo, tais estetas têm muito pouco sucesso, e quer a maioria do público quer os artistas e os especialistas se agarram firmemente à noção de beleza tal como é definida na maioria das teorias estéticas — ou seja, como algo místico e metafísico, ou como um tipo especial de prazer.

Então o que é, essencialmente, este conceito de beleza, que tão persistentemente é mantido pelas pessoas do nosso meio e tempo no que respeita à definição da arte?

Por beleza, no sentido subjectivo, nós designamos aquilo que produz em nós um certo tipo de prazer. No sentido objectivo, no entanto, chamamos beleza a algo absolutamente perfeito, que existe fora de nós. Mas uma vez que reconhecemos existir algo fora de nós absolutamente perfeito e assim o consideramos unicamente porque obtemos da sua manifestação um certo tipo de prazer, a definição objectiva é nada mais que a definição subjectiva expressa de forma diferente. Em essência, tanto uma como outra concepção de beleza reduz-se a um certo prazer obtido por nós, ou seja, reconhecemos como beleza aquilo que nos agrada sem despertar em nós um forte desejo. Poder-se-ia pensar que, postas assim as coisas, seria natural para a ciência da arte não se contentar com uma definição da arte baseada na beleza — ou seja, naquilo que agrada — e procurar uma definição geral aplicável a todas as obras de arte, com base na qual seria possível determinar que objectos pertencem ou não à arte. Mas como o leitor pode ver pelas passagens que citei dos livros de estética, e ainda mais claramente das próprias obras citadas, se fizer o favor de as ler, tal definição não existe. Todas as tentativas para definir a beleza absoluta em si mesma — como imitação da natureza, finalidade, concordância das partes, simetria, harmonia, unidade na diversidade e assim por diante — ou nada definem ou definem somente algumas características de algumas obras de arte, e nem de longe incluem tudo aquilo que as pessoas sempre consideraram e ainda consideram arte.

Não existe uma definição objectiva de arte; as definições existentes, como a metafísica ou a empírica, reduzem-se à definição subjectiva e, por mais estranho que possa parecer dizê-lo, à consideração de que a arte é aquilo que revela a beleza; enquanto a beleza é aquilo que agrada sem provocar desejo. Muitos estetas sentiam a insuficiência e a instabilidade de tal definição, e, para a fundamentar, perguntavam-se por que razão é o que agrada, transformando a questão da beleza numa questão sobre o gosto, como fizeram Hutcheson, Voltaire, Diderot e outros. Mas todas as tentativas para definir o gosto, como o leitor pode descobrir tanto na história da estética como pela experiência, não levam nem podem levar a sítio algum, pelo que nunca haverá uma explicação para o facto de uma coisa agradar a uns e não agradar a outros e vice-versa. Assim, a estética existente, toda ela, está longe de ser o que se poderia esperar de uma actividade intelectual que se autodenomina ciência — a saber, determinar as propriedades e as leis da arte e da beleza, se for este o conteúdo da arte, ou identificar as propriedades do gosto, se dele depender a questão da arte e do seu valor, para, em seguida, com base nessas leis, reconhecer como arte as obras que se lhes ajustam, e rejeitar as que não se ajustam a elas; mas, em vez disso, começa por reconhecer um certo tipo de obras como boas porque agradam para depois construir uma teoria que inclui todas as obras que agradam a um certo círculo de pessoas.

Existe um cânone artístico segundo o qual as obras preferidas no nosso meio são consideradas arte (Fídias, Sófocles, Homero, Ticiano, Rafael, Bach, Beethoven, Dante, Shakespeare, Goethe, e outros), e os juízos estéticos devem ser tais que dêem para abranger todas essas obras. Encontram-se facilmente na literatura estética juízos sobre o valor e o significado da arte que estão fundamentados não em leis conhecidas, segundo as quais consideramos isto ou aquilo bom ou mau, mas no facto de coincidir ou não com o cânone por nós estabelecido. Ainda há dias li um livro nada mau de Volkelt. Discutindo as exigências de moralidade nas obras de arte, o autor afirma sem rodeios que é incorrecto colocar exigências morais à arte, e como prova aponta que se esta exigência fosse admissível então Romeu e Julieta de Shakespeare e Mestre Guilherme de Goethe não seriam classificados como boa arte. Mas como tanto um como outro são abrangidos pelo cânone artístico, essa exigência é injusta. Por isso é necessário encontrar uma definição de arte que possa incluir estas obras e, em vez da exigência moral, Volkelt coloca como fundamento da arte a exigência de significação (Bedeutungsvolles).

Todas as teorias estéticas existentes são construídas conforme este plano. Em vez de dar a definição da verdadeira arte e, em seguida, avaliando se a obra está ou não de acordo com esta definição, julgar sobre o que é e o que não é arte, um certo grupo de obras que por alguma razão agradam às pessoas de certo círculo é considerado arte, e é inventada uma definição de arte tal que possa abranger todas estas obras. Encontrei recentemente uma confirmação admirável dessa técnica num excelente livro de Richard Muther,  História da Arte do Século XIX. Iniciando a descrição dos pré-rafaelitas, decadentistas e simbolistas, já aceites pelo cânone da arte, o autor não só não se atreve a criticar esta corrente, como tenta afincadamente alargar o âmbito do cânone de forma a incluir na arte os atrás referidos, que se lhe apresentam como uma reacção natural contra os extremos do naturalismo. Sejam quais forem as insanidades existentes na arte, se são aceites entre os estratos superiores da sociedade, imediatamente é elaborada uma teoria que explica e torna legítimas tais insanidades, como se nunca tivesse havido época na história em que em certos círculos exclusivos não fosse aceite e aprovada arte falsa, disforme e absurda, que não deixou qualquer marca e acabou por ficar completamente esquecida. Podemos ver até que ponto pode chegar o absurdo e a disformidade da arte no nosso meio, principalmente quando se sabe que pode ser considerada infalível, como agora acontece.

Por isso, a teoria da arte baseada na beleza, exposta por estetas e adoptada de forma confusa pelo público, não é outra coisa senão a aceitação de que é bom aquilo que foi e é considerado agradável por nós, isto é, por um certo círculo de pessoas. (...)"

Lev Tolstoi

3 comentários:

José Batista disse...

Subjectivas, a beleza e a arte, como (só) Leão Tosltoi nos diz, de modo tão eloquente.
À pedagogia sempre a vi como uma arte mais que como uma ciência, onde nem sempre é fácil conseguir (e sentir) a (tão) almejada e compensadora beleza. Muitas coisas se podem aprender e treinar em pedagogia, e nada ensina mais nem melhor do que a experiência, mas parece-me haver outras coisas que estão para lá da "simples" formação de professores, a qual, nem por isso, deixa de ser fundamental, naturalmente. Porque fazer pedagogia não é arbitrário nem subjectivo. Longe disso. Mas é qualquer coisa que em muito me parece escapar à mais completa e exaustiva teorização.
E, heresia minha, pedagogo só é para mim alguém que mostra na prática como se faz. Sem pretender mostrar nada a ninguém, nem mesmo a si próprio. Que faz pedagogia, vulgo, que ensina, apenas e antes de tudo porque sente o imperativo de não poder desistir de ensinar. Nem de renunciar ao gosto de fazê-lo.
Foi pelo exemplo de alguns professores que tive, e de outros que conheço muito bem, e com quem convivo, bem como com os que foram seus alunos, que sedimentaram em mim estas ideias.
Ensinar é sofridamente belíssimo. É.

Parabéns à Gradiva e aos seus editores.

Anónimo disse...

É por isso que o mundo não tomba!

Que crítica mais crispada no link abaixo!

http://espectivas.wordpress.com/tag/fernando-pessoa/


Pedro Silva

Cláudia da Silva Tomazi disse...

A arte é confidente da expressão.

Arte! Necessária em calibrar a emoção.

É valor único e pátrio.

Animada e criativa, inspirada e lúcida.

Arte genuína nem lamenta, alivia comiseração.

Arte com critério é obediente.

Arte com limite é imposição.

Arte pela arte?! É ventre.

Arte em parte é anseio.

Arte compartilhada é seio.

Gostar da arte é guardar distância.

O tempo compreende qualquer expressão.

Arte enquanto princípio, vislumbra humanidade.

Arte é um valorar; através do horizonte a imensidão.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...