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– Não sei o que tenho, sinto-me apertada. Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só cabeços.
E que cabeços! E foi assim até ao alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A partir daí, na descida para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e, quando passámos à planura, ouvi-a exclamar:
– Aqui, sim, já a gente respira!
Em sua opinião, voltáramos ao Alentejo. E tinha razão! Administrativamente integrada na Estremadura, a península de Setúbal só a ela se liga pela Ponte 25 de Abril e pelo grande fluxo de cidadãos, que, de uma e de outra banda do chamado Gargalo do Tejo, o atravessam diariamente nos dois sentidos, a caminho do trabalho e no regresso a casa. Como geólogo contactei de muito perto com os terrenos e também com as gentes desta região, tendo tido oportunidade de constatar aqui a continuidade territorial e cultural do Alentejo.
São as fábricas de cortiça e de transformação de carne de porco, são os mercados, onde não faltam o pão e o queijo alentejanos, os poejos, os cardinhos e as beldroegas, são os restaurantes, as tabernas e as vendas à moda antiga, as colectividades culturais e recreativas. O substrato geológico e os condicionalismos climáticos que caracterizam o Alentejo foram favoráveis à vegetação que aqui se desenvolveu, parte dela indígena e outra parte introduzida, bem como à ocupação animal, também ela autóctone e importada. O montado e o porco preto dele dependente, a vinha, o olival e a seara de pão, a tetralogia mediterrânea, no dizer de Alfredo Saramago, constituem elementos maiores tradicionalmente referidos nesta paisagem.
Mas não são menos alentejanos, quase sempre esquecidos, os campos de arroz da bacia do Sado, o extenso areal e os alcantilados da linha de costa ou os densos pinhais da franja litoral. Mediterrâneo por natureza e atlântico por posição, como nos ensinou Orlando Ribeiro, os seus parâmetros marcaram as populações que aqui viveram, do mesmo modo que continuam a marcar o alentejano dos dias de hoje.
Os vestígios mais antigos da presença dos nossos antepassados em terras alentejanas remontam ao Paleolítico e estão representados, em especial, por utensílios em pedra lascada encontrados, em abundância, nos terraços fluviais de alguns dos seus rios, e por não menos importantes gravuras rupestres, como as trazidas às primeiras páginas dos jornais, na sequência dos trabalhos na barragem de Alqueva. Primeiro como recolectores, apanhando bolotas nos então muito mais cerrados montados, pescando e caçando, estes nossos longínquos avós acabaram por se tornar pastores e agricultores. Tal fixação levou à construção dos primeiros povoados nas colinas sobranceiras aos principais cursos de água. A densidade de construções megalíticas (antas, menhires e cromeleques), característica ímpar desta região, testemunha a importância da sociedade agropastoril que aqui teve berço há mais de 5000 anos.
Aqui se instalaram, durante mais ou menos tempo, ou por aqui passaram ligures e celtas, fenícios, gregos, cartagineses e romanos, uns nas suas rotas comerciais e outros em busca do ouro, da prata, do cobre e do estanho, com relevo particular para os romanos. Estes, chegados no século III a.C., deixaram-nos importantes marcas civilizacionais da sua ocupação e domínio político de, pelo menos, meio milénio. Antes de serem Alentejo, estas terras constituíram parte da Hispania Ulterior, na sequência da divisão administrativa criada na Península pelo invasor. Estas mesmas terras foram, mais tarde, a metade sul da Lusitânia, a mais ocidental das três províncias ibéricas do Império Romano.
Outra importante presença, que ainda hoje se faz sentir, foi a islâmica, iniciada no século VIII com a conquista de Mértola, por Muçá ben Nusayr, pondo fim à dominação visigótica, a última das invasões levadas a efeito por povos do norte da Europa, habitualmente referidos como bárbaros. A ocupação muçulmana teve aqui uma longa permanência, cerca de cinco séculos, que só terminou com a reconquista cristã, no século XIII Com a islamização, estas terras fizeram parte do Garb, que quer dizer Ocidente, designação naturalmente usada pelos que vinham de oriente, neste caso, os invasores árabes.
Mais precisamente, o seu nome foi al Garb al-Andaluz, que significa o ocidente da Hispânia, que incluía, não só o Alentejo, como também, o Algarve e a Andaluzia, do outro lado do Guadiana. A civilização muçulmana deixou aqui muito dos seus saberes, não só os tidos por eruditos, como os do melhor aproveitamento da terra, numa das regiões mais áridas do território que é hoje o nosso. À unidade de coabitação entre a Andaluzia, o Alentejo e o Algarve, durante mais de um milénio, criada pelos invasores romanos e continuada pelos conquistadores islâmicos, seguiu-se a separação, delineada ao sabor da reconquista e das disputas fronteiriças entre o reino de Portugal e o de Castela e Leão, ao longo do Guadiana. Não é, pois, por acaso, que há bastantes traços comuns entre nuestros hermanos andaluces e os alentejanos, por um lado, e entre estes e os algarvios, por outro. Após a reconquista, concluída por D. Afonso III, no século XIII, e na sequência da reorganização territorial, foi criada a comarca de Antre Tejo e Odiana (Entre Tejo e Guadiana), designação antiga que resistiu ao tempo através da poética de Bernardim Ribeiro, na Écloga de Jano e Franco, e que corresponde grosso-modo, ao actual Alentejo, tendo por limite meridional as alturas definidas pelas serras de Caldeirão e de Monchique. Anteriormente, o termo Alentejo, como nome de região, não existia.
Com o significado de para além do Tejo, foi criado pelos conquistadores vindos do norte, do jovem reino de Portugal. O Ultra Tagum, no latim dos eruditos de então, deu Além do Tejo, no dialecto romance, que era o que se falava aí, ao tempo dos nossos primeiros reis. Tendo este grande rio por fronteira natural, as terras que lhe ficavam a sul estavam, pois, para além dele. De todos estes povos, os que por aqui passaram e que aqui viveram, herdámos genomas e culturas. O alentejano é, pois, o produto desta longa e complexa história e, naturalmente, da que se lhe seguiu, marcada sobretudo por um regime de propriedade de “muita terra a dividir por poucos” (Mattoso e Daveau, 1997), ou de “Terra pouca para muitos, terra muita para poucos”, como cantou Manuel Alegre (1996), num longo percurso condicionado pela paisagem física em que se desenrolou.
A diversidade fisiográfica do Alentejo determina que, dentro de uma certa unidade, como é muitas vezes apresentada, haja diferenças sensíveis de local para local. Há um Alentejo interior, a oriente, semi-árido, dominado pela azinheira, e um outro, a ocidente, menos seco, influenciado pelos ventos húmidos do Atlântico, onde o montado de cortiça impera. Por outro lado, a escarpa de falha da Vidigueira, um acidente tectónico que limita, a sul, a serra de Portel, marca igualmente, como um degrau, a separação entre duas superfícies bem assinaladas pelos geógrafos, a de Évora, a norte, mais elevada e acidentada, e a de Beja, mais rebaixada e de mais vastas planuras.
São alentejanos os madeireiros serranos de Portalegre e os seareiros das planícies que se estendem para Sul. São alentejanos os cultivadores de sequeiro, os regadores do vale do Caia e os que vivem dos arrozais alagados dos campos aluviais dos seus grandes rios. São ainda alentejanos os pescadores e todos os que habitam a longa faixa litoral, que se estende da restinga de Tróia às falésias atlânticas do Algarve. Fala-se do falar alentejano, da cozinha alentejana, dos cantares do Alentejo e contam-se divertidas anedotas, visando os seus habitantes. Alentejanos são todos os da margem esquerda do Tejo e se o nome nada tem de especial, quando dito por alguém da margem norte, constitui um paradoxo sempre que são os próprios alentejanos que assim se autodenominam, uma vez que, sendo e estando do lado sul do Tejo (para eles o lado de cá, e, portanto, aquém do Tejo) se estão a afirmar além dele, como bem lembrou José Mattoso.
Alentejano é, pois, o nome pelo qual esta comunidade se auto-identifica sem se dar conta que, em rigor, o termo só faz sentido quando dito por estremenhos, beirões, minhotos ou transmontanos. Nunca por eles próprios e, muito menos, por algarvios. Nestas condições dever-nos-íamos considerar “aquentejanos”, sugestão, aliás, já avançada no século XIII, mas que não fez vencimento. Com efeito, dois documentos assinados em Beja, em 1284, auto-situam-se no “Aaquem Tejo”. No Alentejo de hoje, as aldeias e as pessoas estão a urbanizar-se mercê, sobretudo, de dois factores determinantes: - a facilidade dos transportes, que as põe a escassos minutos das cidades vizinhas, e a televisão, que tudo uniformizou.
Estes dois veículos da modernidade puseram fim ao isolamento de séculos, situação que é uma realidade, não só aqui, como por todo país. Porém, não obstante esta modernização, a cultura dos alentejanos, enraizada ao longo de gerações, e a persistência de uma condição ancestral por demais conhecida, fizeram e continuam a fazer deles aquilo que gostamos que digam de nós e que Manuel Alegre tão bela e rigorosamente cantou na linguagem universal dos poetas, em “O Estilo”, 1996: «Incapaz de ser senão diferente / há um modo de calar e um falar claro / um olhar cara a cara e frente a frente / um viver devagar que tudo é raro / e único e só assim urgente».
A. Galopim de Carvalho
(Texto adaptado de “…Com Poejos e Outras Ervas”, Âncora Editora, 2004)