Minha apresentação, ontem no Corte Inglês de Lisboa do livro "Os Anos Devastadores do Eduquês", de Guilherme Valente, edição da Presença:
O meu editor é Valente, Guilherme Valente. E o meu autor hoje é também Guilherme Valente. Estamos a assistir a algo extraordinário, que é a metamorfose do editor Valente no autor Valente. Habituado a pôr cá fora os livros dos outros, assim uma espécie de médico obstetra que superintende os nascimentos, hoje ele vê-se na circunstância inédita de ter as suas próprias dores de parto. O autor que acaba de se estrear olhará decerto para o seu editor, o consagrado Francisco Espadinha da Presença, para perceber como os autores olham gratamente para ele quando sai um dos nossos livros. Um autor nada pode sem um editor e hoje sem Espadinha o livro de Valente não poderia ver a luz do dia. A primeira palavra deste leitor do novo livro não pode, portanto, deixar de ser de agradecimento ao editor e ela tem a mesma força que as palavras de agradecimento que tantos leitores têm expresso ao editor da Gradiva. Guilherme Valente, quando, em 1981, já passaram três décadas, fundou uma editora que, num bom exemplo do que os economistas chamam oferta criativa, criou um público para a ciência que parecia inexistente. Criou uma necessidade onde ela parecia estar ausente. Quando se fala da cultura científica em Portugal, há um antes e um depois da Gradiva. Neste meu, nosso, obrigado a Francisco Espadinha está também o meu, nosso, obrigado a Guilherme Valente.
Mas hoje o editor está feito autor e temos também de agradecer ao jovem autor tanto quanto temos agradecido ao experiente editor. A questão deste Os anos devastadores do eduquês é a educação nacional. Esta é a questão que Guilherme Valente tem, desde há longos anos, a latejar dentro de si. Aliás a Gradiva deve ter resultado da necessidade de responder a esta questão. Se a velha escola não chegava, era preciso criar uma outra escola a partir de livros convenientemente escolhidos. Se os reitores que havia não chegavam era preciso o reitor de uma nova escola, “uma escola tão ou mais exigente que as demais”, conforme afirmou José Mariano Gago, quando em 1991 chamou a Guilherme Valente o “reitor da Universidade da Gradiva”. A questão que tem inquietado o “reitor da Gradiva” e autor deste livro e que o tem mobilizado para numerosas intervenções nos mediainterpelando-nos a todos é: Por que é que Portugal não se desenvolveu como outros países? Ou, actualizando a questão, por que é que Portugal não se desenvolve?A questão é complexa, tem nuances, alçapões, mas Guilherme Valente não hesitará, como muitos de nós, em afirmar que o défice do nosso desenvolvimento, resultou em grande medida, do nosso atraso na educação. Foi por falta de educação não tivemos nem ciência, chave do desenvolvimento, nem cultura, condição ambiental do desenvolvimento, de modo a estarmos noutro lugar do ranking das nações. Ele concordará decerto com Antero de Quental quando este escreveu nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares
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“A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos.”
E quando ele, mais à frente, acrescentou: “Dessa educação, que a nós mesmo demos durante três séculos, provêm todos os nossos males presentes.”
Portugal é a grande questão que Guilherme Valente e afinal nós temos ou devemos ter connosco próprios.Alexandre O’Neill escreveu:
“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém”
Por causa de Portugal, a educação é a questão que Guilherme Valente tem consigo mesmo, “golpe até ao osso, fome sem entretém”. E, de novo, a questão que ele tem é uma questão colectiva, a questão que temos ou devemos ter connosco próprios. Por que é que Portugal não teve, não tem, uma educação melhor?
As palavras, quando não estão existem, têm de ser criadas. A palavra “eduquês” foi cunhada pelo ministro Marçal Grilo, que, visivelmente incomodado com o ruído, pediu para que se deixasse de falar "eduquês", o dialecto incompreensível, devastador para os ouvidos, com o qual se expressava e auto-justificava o statu quo educativo. A arrelia dele era com a obscuridade de alguns teóricos da educação, cujas ideias tinham assentado arraiais no Ministério. Bem sei que resumir um fenómeno complexo e multifacetado num só termo pode ser perigoso, mas a expressão ficou e já merecia estar dicionarizada. Nuno Crato publicou em 1986 um livro que ajudou a popularizar o termo, ao mesmo tempo que desconstruía a precária estrutura dos conteúdos subjacentes: O Eduquês em Discurso Directo: Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista (Gradiva, 2006).
Guilherme Valente, percebeu logo, argutamente, que o dito eduquês, decretado em documentos como o Currículo Nacional do Ensino Básico - Competências Essenciais, de 2001, não era apenas uma linguagem, a linguagem que transformava os professores em “ensinantes” e os alunos em “aprendentes”, mas, pior, uma ideologia, isto é, “um conjunto de preconceitos e de ideias que recusam a análise crítica e racional e não aceitam submeter-se à experiência, à prova da realidade”. Segundo o filósofo Simon Blackburn uma “espécie de óculos que distorcem e dissimulam a realidade”. Uma forma de anti-ciência, já se vê. O ensino tinha de ser “igualitário”, tinha de estar “centrado no aluno”, tinha, em vez de inculcar os saberes da humanidade, de desenvolver “competências”. A ligação entre linguagem e ideologia é bem conhecida. Uma linguagem coerciva é sempre o veículo de que uma ideologia se serve para se impor. Roland Barthes escreveu na sua Lição, proferida para entrar no Collège de France, que “a linguagem é uma legislação e a língua o seu código (...) Nela se traçam infalivelmente duas rubricas: a autoridade da asserção e a gregaridade da repetição”. E, no caso em apreço, se a língua era pobre e confusa, por vezes não mais do que um linguarejar, a ideologia padecia dessas mesmas deficiências. Tal seria divertido não fora ser trágico devido à sua instalação no aparelho do Estado: a visão do eduquês era obrigatória no sistema de educação a todos os níveis, não admitindo discussão.
Uma ideologia que não admite discussão – que não permite o confronto com alternativas - é totalitária, é uma forma de pensamento único, uma forma de pensamento que pretende perpetuar-se. E bem sabemos como o totalitarismo é sempre um ambiente de tragédia. Neste caso os resultados estão à vista. Em Os Anos Devastadores do Eduquês, que reúne escritos que vão, com uma regularidade e oportunidade espantosas, desde 2001 a 2012, desde o ano das Competências Essenciais até aos nossos dias quando esse documento já foi revogado, o autor fala do desastre da educação nacional. Ele disse que o rei ia nu quando toda a gente, ou quase, via o rei não só vestido, como até muito bem vestido (de facto, a linguagem pode, como uma moda, tornar sedutora a ideologia mais detestável). Da leitura desse conjunto de textos de intervenção, de combate pedagógico, filosófico e político sim, mas acima de tudo de combate cívico, emerge uma posição coerente que, concorde-se ou não, denota uma notável capacidade de interpretação da história recente da educação entre nós. Sim, a escola do eduquês era uma escola que recusava a avaliação. Era uma escola que cultivava o uniformismo, o relativismo, a indiferença. Chegou ao ponto de recusar a participação de portugueses nos testes internacionais PISA por medo dos maus resultados. Também internamente, a avaliação era desvalorizada, só faltando publicar pautas de exames sem as notas à frente dos nomes dos alunos. Há aqui dois textos de que tive a honra de ser coautor, embora o contributo principal tenha sido do Guilherme, cujos títulos são esclarecedores (o nosso autor é muito bom nos títulos!): “A governanta que não quer ser avaliada” e “O horror aos melhores e a inutilidade da escola”. Se acaso parecer a algum leitor que um outro passo deste livro peca por exagero é porque a escola descrita pecava também pelo exagero. Descontando as excepções que as houve, resultado do esforço de bons professores num clima adverso, havia uma escola alheia ao conhecimento e aos valores. Era uma escola que não estimulava nem premiava nem os bons professores nem os bons alunos. Era uma escola que produziu insucesso e abandono, uma vez que os piores alunos, em geral de famílias mais desfavorecidas, que os defensores do eduquês diziam defender, não eram convenientemente ajudados pela escola, mas sim deixados à sua sorte.
Para transmitir melhor a ideia de que um sistema uniforme não ajuda os mais pobres, o autor oferece-nos no seu livro uma bela história da sua vida. Estando ele a estudar em Leiria, numa escola primária de gente pobre, largou os sapatos para brincar com os colegas descalços. O pai que o viu descalço ensinou-lhe à noite: “O que tens de fazer não é tirar os sapatos, mas fazer sempre tudo na tua vida para que toda a gente possa andar calçada”.
Havia evidentemente que confrontar a utopia escolar com a realidade. E a realidade é dura quando batemos com a cabeça nela. A princípio foram poucos a ver mas logo a opinião pública, com a divulgação dos resultados do PISA e dos rankings baseados em exames nacionais, se foi apercebendo do logro que era essa escola do vazio, da permissividade, do facilitismo, uma escola onde tanto as ciências como as artes eram preteridas em favor das ditas competências, que sem conhecimento substantivo pouco ou nada significavam. Era uma escola que, parafraseando um título de um artigo de Guilherme Valente contido neste livro, tinha a intenção de inculcar o “espírito crítico sem haver nada na cabeça”. Uma escola, enfim, que não cumpria o seu nobre e inalienável propósito de preparar para a vida. Uma escola que não contentava as famílias por não oferecer futuro às crianças e jovens.
No ano de 2002 foi lançada uma pedra no charco sob o título de Manifesto para Educação da República. O respectivo texto, um documento precioso da história recente da educação em Portugal, está transcrito no livro juntamente com algumas das reacções recebidas. O Manifesto fez manchetes no Público, no DN e no Expresso. A favor pronunciaram-se alguns governantes como Veiga Simão, Couto dos Santos, José Mariano Gago, David Justino, para além de grandes nomes da nossa intelligentsia como Eduardo Lourenço, João Lobo Antunes e Joaquim Gomes Canotilho. Assinou-a também Nuno Crato, na altura quase desconhecido e hoje ministro da Educação e Ciência. A mensagem, clara, retoma o espírito de Antero de Quental e ressoa até aos nossos dias: “A República está a educar mal os seus filhos. É essa a razão fundamental porque os portugueses continuam a não ser capazes de produzir a riqueza que consomem”. Mas, apesar das manchetes e dos milhares de assinaturas, há que reconhecer hoje que da pedra ficaram apenas os salpicos, tendo as águas voltado a parar. Continuou praticamente inabalado o sistema que se expressava em eduquês que, curiosamente, tinha defensores em todo o espectro político. Muito mais tarde, quando milhares de professores saíram à rua contra um modelo burocrático e kafkiano de avaliação, foi curioso verificar que tanto ministério como sindicatos, apesar de parecerem em séria oposição, convergiam no essencial da cartilha, só diferindo em pormenores da sua aplicação. Agora que Nuno Crato está ao leme de um programa de mudança, há razões para ter esperança em dias melhores para a nossa escola. Mas, convenhamos, estes tempos da troika são difíceis: não só os cofres estão vazios como a máquina é velha e pesada, os interesses são muitos e contraditórios e o conservadorismo dificulta qualquer tentativa de inovação.Tudo isso explicará por que tarda a afirmar-se nas escolas a necessária mudança. Mas a semente está lançada e a árvore vai crescer e dar frutos, se o solo for bem regado.
Este livro que hoje sai é uma contribuição bastante útil para o debate sobre a mudança. Recomendo, em especial, o último texto Últimos telegramas da frente, onde Guilherme Valente, distanciando-se de medidas a que o aperto financeiro obriga como, por exemplo, os megaagrupamentos escolares (que, segundo ele, são uma medida do eduquês), faz uma lúcida análise da actualidade educativa, convidando-nos a uma discussão sobre a escola que temos e a escola que queremos.
O autor Valente, tal como o editor Valente, estudou filosofia, conhece o espírito da ciência, leu os clássicos da literatura (sabe Camões e Gil Vicente de cor!), e tem por isso a mais-valia da cultura. Interrogado sobre a diferença entre os homenscultos e os incultos, Aristóteles retorquiu: “A mesma diferença que existe entre os vivos e os mortos”. Guilherme Valente tem o mérito de pensar tudo aquilo que diz. Ele conhece o aforismo de Aristóteles: “O homem prudente não diz tudo quanto pensa, mas pensa tudo quanto diz." Ao contrário da linguagem e doutrina que critica, Guilherme Valente tem a vantagem da claridade. Pode-se concordar ou não, mas ele transmite-nos o que o pensa de uma forma directa e transparente. Já Aristóteles dizia que “a primeira qualidade do estilo é a clareza”. Finalmente, o autor que celebramos hoje tem, ao enfrentar o vento, a suprema virtude da coragem. O mesmo Aristóteles afirmou que “a coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras”. Este livro só podia vir da pena de um homem culto, que pensa bem, escreve claro e tem coragem.
Resultando da cultura, do pensamento, da claridade e da coragem, os argumentos expostos em Os Anos Devastadores do Eduquês têm, para além do poder da lógica, a força da liberdade, que é subversiva. Os Anos Devastadores só podem, para muitos, ser um livro escandaloso. Vou, para expressar melhor a ideia de lógica subversiva, buscar uma citação não à Grécia Antiga mas à Inglaterra moderna. George Orwell, na sua distopia 1984, descreve um ambiente opressivo no qual um dos slogans é “2 + 2 = 5”. Um dos personagens afirma a páginas tantas: “A liberdade é aliberdade de dizer que dois e dois são quatro. Quando ela é concedida tudo o resto vem por acréscimo.”
Se me socorro de citações é para não ficar atrás do autor do livro que apresento, que se outros méritos não tivesse teria o de conter várias citações inspiradoras. Começa com uma carta de Lincoln ao professor dos seus filhos: “Caro professor: ensine-lhe que mais vale uma moeda ganha do que uma moeda encontrada” (raros serão os livros que se podem gabar de ter um prefácio de Lincoln!). E termina com uma frase de Einstein, que ao verificar um facto social nos deixa um apelo à consciência individual: “O mundo é muito mais ameaçado por aqueles que toleram o mal do que por aqueles que se entregam a fazê-lo.”
Livros como este ajudam a libertar o mundo de ideias perigosas e dificultam ou, quero ser optimista, mesmo impedem o mal que elas possam causar. Obrigado, Guilherme, pela tua incansável contribuição cívica. Desejo-te, na tua nova condição de autor, uma longa e fértil obra, uma obra pelo menos tão longa e fértil como tem sido, é e esperamos que continue a ser a tua obra de editor.
3 comentários:
Inteligência é uma plasticidade desenvolvida a leitura cuja dimensão projectara sabedoria.
Admito que desisti de ler a partir do momento em que as asneiras escritas ultrapassaram o limite do razoável... gostaria de saber qual a experiência que o autor deste texto e o senhor Guilherme Valente têm relativamente ao ensino básico.
Um livro deve estar envolto num certo mistério.
Devemos esperar ler coisas novas, quiçá alguma grande surpresa.
É um pouco como na culinária, um prato exótico ou desconhecido faz-nos salivar antes mesmo de nos sentarmos à mesa.
Se não há coisas novas, mistério, ingredientes («culinários») novos...
Bem, todos os dias galinha, todos os dias galinha, todos os dias alinha (ainda por cima de aviário, não do campo), bbbbrrrrrrr....
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