domingo, 19 de agosto de 2012

Niels Steensen (1638 - 1696)

Texto que nos foi gentilmente enviado pelo Professor Galopim de Carvalho.

Nicolaus Stenonius, de seu nome latino (Nicolau Steno, em português), anatomista dinamarquês, graduado pela Universidade de Copenhaga, é considerado um pioneiro em vários domínios das ciências da Terra. Viajou pela Europa; uma actividade constante ao longo da sua vida, o que lhe permitiu desenvolver esta sua vocação.

Teve papel importante nas áreas da paleontologia e da estratigrafia, bem como nas da mineralogia e cristalografia, muito antes destas matérias se terem afirmado como disciplinas científicas. No seu tempo eram muitos os que não aceitavam os objectos a que hoje chamamos fósseis [1] como sendo restos de amimais ou plantas do passado, uma vez que a maioria não tinha representação em seres do presente. Plínio, o Velho, e outros autores antigos, tinham sugerido que os ditos objectos caíam do céu ou da Lua. Outros defendiam que eles cresciam naturalmente nas rochas. Não estando ainda preparados para aceitar a vida anterior à criação do Homem e a evolução, os naturalistas do século XVII preferiam encarar estes achados como
lapides sui generis (pedras únicas no seu género), inexplicavelmente geradas no seio das rochas e nunca restos de animais ou plantas.

Ao contrário desta visão generalizada, que não contradizia os textos bíblicos, Steno já verificara que certos fósseis (“petrificados”, como então se dizia) eram semelhantes entre si, quaisquer que fossem as rochas em que estivessem embutidos, e que, por outro lado, tinham o mesmo aspecto das partes dos animais a que se assemelhavam. Ao observar os dentes de um tubarão actual, Steno verificou que estes eram muito semelhantes a certos objectos encontrados em rochas sedimentares na Ilha de Malta, então chamados
glossopetrae (línguas petrificadas), uma vez que faziam lembrar línguas de serpente transformadas em pedra. Steno mostrou que os glossopetrae eram mesmo dentes provenientes das bocas de antigos seláceos, do mesmo tipo dos que observara caídos no fundo do mar, aí conservados no seio dos sedimentos e depois trazidos à superfície incluídos na rocha em que esses sedimentos se haviam transformado [2].

Assim, afirmou, sem sombra de dúvida, que “os corpos que se assemelham a plantas e animais encontrados na terra têm a mesma origem que as plantas e os animais a que se assemelham”. Esta afirmação, hoje evidente, representou, para a época, uma inovação e um romper com as ideias do passado. Trata-se do reconhecimento do conceito paleontológico de fóssil, no que foi apoiado pelo filósofo alemão Gottfried von Leibniz (1646-1716) e pelo inglês Robert Hook (1635-1703).

Steno dizia ainda: “as conchas e outros restos de antigos seres vivos, encontrados nas rochas de uma dada região, são despojos de animais marinhos” e afirmava que “as camadas que os contêm são necessariamente marinhas”, concluindo que “o mar ocupara essa região”. Com estas afirmações, e embora sendo respeitador do tempo bíblico e dos relatos das Sagradas Escrituras, Steno inovou o conceito de fácies [3]. Foi na explicação destes problemas que ele descobriu um dos fundamentos da paleontologia e da geologia sedimentar, em geral, incluindo a estratigrafia.

Para muitos dos contemporâneos de Steno, era intrigante o mistério de como um animal petrificado e, portanto, sólido, poderia estar presente dentro de uma rocha também ela sólida. O trabalho de Steno sobre os dentes de tubarão levou-o a questionar-se sobre este problema. Os corpos sólidos encontrados dentro de outros sólidos, que despertaram o interesse deste estudioso, incluíam não apenas os fósseis (como hoje os definimos), mas também os cristais, veios, filões, camadas e encraves igualmente embutidos no interior das diversas rochas. Tal interesse levou-o a publicar, em Florença, em 1669, “De solidus intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus” (Prodromo de uma dissertação sobre sólido contido no sólido).

Depois de observar as montanhas da Itália, Steno afirmou que “as camadas são formadas paralelamente à horizontal, em obediência à gravidade terrestre”, introduzindo o que ficou conhecido por Princípio da Horizontalidade Original, concepção que lhe permitiu explicar que, “quando estas camadas se encontram inclinadas, tal é devido a deformação posterior”, o que deixa ver que admitia a existência de forças susceptíveis de deformar porções da crosta terrestre.

Uma outra afirmação de sua autoria assenta na sobreposição das camadas sedimentares. Segundo ele, “qualquer camada é mais moderna do que a que lhe fica por baixo e mais antiga do que a que lhe está por cima”. Esta afirmação, demasiado evidente nos dias de hoje, representa um passo significativo no caminho da estratigrafia. Foi considerada o Princípio Fundamental da Estratigrafia, pois mostrou que as camadas sedimentares são cada vez mais modernas à medida que se sobe na série. Uma terceira afirmação de sua autoria, fala da “continuidade lateral no seio das camadas de rochas sedimentares”.

Estas afirmações constituem hoje verdades mais do que evidentes, mas foram, na época, grandes passos em frente. Com este autor, as sucessões de camadas sedimentares passaram a funcionar como “arquivos da natureza”, como lhes chamou, mais tarde, o naturalista e geólogo alemão Peter Simon Pallas (1741-1811), e o geólogo francês Faujas de Saint-Fond (1741-1819), ou como “anais do mundo físico”, no dizer do padre francês contemporâneo, Giraud Soulavie (1752-1813), fundador da moderna estratigrafia paleontológica.

Na área de mineralogia e cristalografia, Steno revelou, em 1669, que os “ângulos diedros, formados pelas faces homólogas dos cristais de quartzo, são constantes e independentes da forma e da dimensão das mesmas”. Esta sua revelação, que ainda tem um âmbito restrito, mas que alguns referem com Lei de Steno, está na base da conhecida Lei da Constância dos Ângulos, esta, sim, uma verdadeira lei, formulada um século mais tarde, pelo francês Romé de l'Isle.

[1] Fóssil - No sentido mais antigo do termo, fóssil era todo o material que se desenterrava ou extraía de dentro da terra (do latim fossile, desenterrado), o que abrangia os minerais, as rochas e os fósseis (no sentido que hoje lhe damos), os achados pré-históricos e arqueológicos. As expressões carvão-fóssil, combustível-fóssil, ainda em uso, são reminiscências deste conceito. Só no século XVIII o termo passou a ser usado no sentido que hoje tem em paleontologia.
[2] - Está aqui contida a ideia vinda de trás e assimilada por Steno de que um sedimento incoeso se transforma em rocha coesa, processo de litificação a que o alemão Karl von Gümbel, em 1888, deu o nome de diagénese. Mais de seiscentos anos antes de se falar em diagénese, Alberto, o Grande (1206-1280), alquimista francês, afirmava que “o lodo alagadiço e viscoso, trazido pelas águas, que cimenta a terra e a transforma em pedra dura...”. Quando, em finais do século XVIII, o escocês James Hutton, considerado o pai da geologia moderna, afirmava que “as camadas sedimentares foram antigos sedimentos que se transformaram em rocha”, está a repetir uma ideia vinda de tempos antigos.
[3] - Fácies – No contexto das rochas sedimentares, define-se como o conjunto de características paleontológicas, mineralógicas ou outras que permitam conhecer o ambiente em que a rocha se formou.

Galopim de Carvalho

3 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Afrontar as ideias em vigor
no tempo em que vivemos necessita
de indómita coragem por supor
a mais cruel e crassa revindicta!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Das ideias do tempo discordar
era crime de lesa humanidade,
que levava as pessoas a enfrentar
o banimento da sociedade!

JCN

João de Castro Nunes disse...

Admiro nos seus textos, Professor,
a lucidez da sua exposição
a par do seu saber que sem favor
está de longe fora de questão!

JCN

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