sexta-feira, 29 de junho de 2012

Nada mais fácil do que pensar* sem preconceitos


*pensar: aplicar ou colocar pensos; distribuir pensos; arrumar pensos (numa cena de pancadaria, por exemplo: «ele arrumou-lhe dois pensos»)


Tomemos os anos 1945 a 1965, em Portugal: o pós-guerra. Que se fazia então nas escolas portuguesas? Muita coisa detestável: o ensino era para alguns; os manuais eram livros únicos; o debate de ideias era pouco expressivo.

E fora das escolas? Mais coisas detestáveis: o trabalho assalariado começava muito cedo; a aprendizagem continuava em via única; o debate de ideias ganhava foros de segredo.

Significa isto que era tudo horrível? Bom, não. Sempre houve gente inteligente a tomar decisões corretas, sempre houve bons professores dentro e fora da escola, sempre houve decisores interessados nas pessoas, e no conhecimento.

Vivemos uma realidade nova nas escolas: o ensino é para muitos; pululam os manuais; o debate de ideias é livre. E, no entanto, não sentimos claramente que tudo esteja melhor. Nem todos os estudantes que terminaram a escolaridade obrigatória revelam muito mais conhecimentos ou aptidões que outros que, na 2.ª metade do século 20, iam trabalhar com a 4.ª classe feita—embora tenham um pouco mais do dobro do tempo de estudos. Por outro lado, a generosa oferta de manuais, que não é representativa de proporcional oferta de qualidade, esbate, inevitavelmente, a ideia de currículo nacional estruturado. Finalmente, o confronto de ideias não parece ter afastado a intolerância, ou remetido para segundo plano a predominante indigência dos juízos.

Quando nos damos ao trabalho de pensar sem ideias preconcebidas, não só afastamos fantasmas, como percebemos que diferentes épocas podem ser, em muitos aspetos, bastante parecidas—embora contrastantes noutros. Por exemplo: havia bons livros únicos. Hoje, nalgumas disciplinas, os professores queixam-se da escolha: é farta, mas não é satisfatória. Outro exemplo: havia precedências curriculares. Hoje, nalgumas disciplinas, ninguém tem a garantia de estar a ser entendido por uma turma que terá, ou não, pré-requisitos sólidos sobre matérias fundamentais, de modo a aprender os conceitos do nível seguinte.

O estado português tem gerido isto com pulso firme: derrapando para a prática cada vez mais instalada de teses construtivistas, facilitando experiências com pouco cariz científico, olhando sempre, tenso, por cima do ombro, para ver o que se faz «lá fora».

Ao contrário daquelas pessoas que julgam que um dos males do ensino nacional é a permanente mudança de rumo, eu julgo que o rumo, pelo contrário, tem sido a constante dos vários ministérios, contra todas as ocorrências e obstáculos. É o que a opinião pública identifica como «facilitismo» e «eduquês».

O balanço é negativo? Não, apesar de tudo isto, o balanço é positivo: ainda temos perto de um milhão de analfabetos, mas alfabetizámo-nos muito no último meio século. É este o ponto de partida das melhores práticas de ensino no mundo. E fizemos muita asneira, o que é sempre uma boa base de ponderação para entender o que é melhor. Quando parece que estamos encalhados é que estamos, com alguma probabilidade, em condições de raciocinar de forma mais abrangente, e de tomar as melhores decisões.

Passamos a vida a tropeçar na Finlândia. Nas várias Finlândias. Ora, se pode ser útil saber o que os outros fazem, é bom que percebamos que o nosso país copiou sempre uma considerável quantidade de disparates ao imitar práticas estrangeiras. O carimbo da importação não dá, aqui como no queijo, garantias de subida de qualidade. Temos de olhar para o espelho e perceber o que é mais simples para formar gente para a vida—aqui; na nossa terra.

Sobretudo, que não seja por preconceito que deixamos de olhar para os anos da ditadura a lembrar o que se fazia, porque havia boas coisas: na minha opinião de praticante, um currículo nacional nítido; programas que discriminavam os conteúdos, de forma clara, para as várias disciplinas e níveis; muitos professores provenientes da universidade, com boa preparação científica; espaços públicos adequados—as escolas do estado; avaliação equivalente para todos. Tiremos a canga da doutrinação—que, convenhamos, não funcionava—e andámos a produzir bons técnicos e bons quadros, durante alguns anos, embora em quantidade diminuta.

Até o facto de a doutrinação não funcionar nos poderá servir de guia: se o Estado Novo não conseguiu passar a mensagem doutrinária, com todo o peso do pilão utilizado, como podemos acreditar, em democracia, na efetividade duma Formação Cívica na formação de jovens? Qualquer rapariga ou rapaz de espírito livre vai marimbar-se instantaneamente para a conversa politicamente correta do catecismo! (E cumprir, estrategicamente, as manobras de avaliação que lhe garantam a nota…)

Ora tudo o que era bom no passado pode ser replicado, se não nos distrairmos com o que era mau e com a bússola. Então, vou rever: novamente na minha opinião de praticante, um currículo nacional nítido; programas que discriminem os conteúdos, de forma clara, para as várias disciplinas e níveis; muitos professores provenientes da universidade, com boa preparação científica; espaços públicos adequados—as escolas do estado; avaliação equivalente para todos.

O que é imperioso? Que o currículo e os programas respeitem os critérios de laicidade que são os da República. Que a preparação específica dos professores para o ensino diga respeito a coisas práticas (como é que pode ser introduzido com efetividade o conjunto dos números inteiros relativos, e não como é que podemos transformar, através da dinâmica de grupos, uma coisa enfadonha como a ficha de leitura de «Os Maias» num grande entretenimento como Os Ídolos). Que as escolas (direções, professores, auxiliares) não deixem passar em branco o respeito pela casa, pela instituição, pela finalidade. Um aluno pode ser cábula. Isso acompanha-se, altera-se. O aluno não pode é ser malcriado, ou destrutivo. Só a gerir o dia-a-dia e a manter o respeito já as direções têm muito que fazer. Não precisam de mais corveias.

Neste momento, vive-se ainda a vertigem dos projetos educativos. Não creio que possamos ver-nos livres dessa maçada tão cedo. Olhemos, então, com a devida reverência:

Com a chegada de 2013 aproxima-se, nas nossas escolas, o termo da vigência dos projetos educativos iniciados em 2010. Os projetos educativos são elaborados e aprovados pelos órgãos de gestão para uma vigência de 3 anos, e nada indica que devam ser consultados os professores nesta matéria. No entanto, «o direito a emitir opiniões e recomendações sobre as orientações e funcionamento do estabelecimento de ensino [...]» é reconhecido na lei (Decreto-Lei n.º 270/2009 de 30 de setembro: art.º 5.º, 2 a)). Penso que cumpre aos professores interessados, por conseguinte, darem um passinho em frente; e opinarem, recomendarem, discutirem.

Mas vejamos a lei: diz o Decreto-Lei n.º 75/2008 de 22 de Abril:

Artigo 9.º

«Instrumentos de autonomia

1 — O projecto educativo, o regulamento interno, os planos anual e plurianual de actividades e o orçamento constituem instrumentos do exercício da autonomia de todos os agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, sendo entendidos para os efeitos do presente decreto-lei como:

a) «Projecto educativo» o documento que consagra a orientação educativa do agrupamento de escolas ou da escola não agrupada, elaborado e aprovado pelos seus órgãos de administração e gestão para um horizonte de três anos, no qual se explicitam os princípios, os valores, as metas e as estratégias segundo os quais o agrupamento de escolas ou escola não agrupada se propõe cumprir a sua função educativa; [...]»

Diz o Decreto-Lei n.º 270/2009 de 30 de setembro:

art.º 5.º, 2 c)

tem o professor o «[...] direito à autonomia técnica e científica e à liberdade de escolha dos métodos de ensino, das tecnologias e técnicas de educação e dos tipos de meios auxiliares de ensino mais adequados, no respeito pelo currículo nacional, pelos programas e pelas orientações programáticas curriculares ou pedagógicas em vigor; [...]»

Pode, então, ser colocada a seguinte questão: se o professor, no exercício do seu direito, manifestar desacordo com o projeto curricular no que respeita à sua disciplina, deve ser obrigado a exercer aquilo que considera ser má orientação pedagógica, ou inadequado método de avaliação, para obedecer a um critério colegial—de especialistas noutras áreas? Ou mesmo, se tal se oferecer, a qualquer critério colegial? Violando os seus critérios pessoais, de especialista creditado? Desresponsabilizando-se pelo próprio ato de ensino?

Temos, portanto, de conciliar à força os inconciliáveis? A orientação da escola, ou do grupo, anulam a autonomia do professor?

Teremos, certamente, de repensar a articulação dos diplomas contraditórios; uma primeira possibilidade consiste em deixar à gestão e administração o que é da gestão e administração, e à pedagogia o que cabe à pedagogia.

Ora isto, que parece simples, não o é tanto: as direções têm, de facto, as mãos na massa quando a legislação em vigor põe à sua disposição conselhos pedagógicos que não são constituídos pelo número necessário de pedagogos (os professores diretamente provindos dos departamentos são apenas 4), mas por «comissários políticos» que não representam os docentes (o quadro legal prevê a nomeação, não a eleição, desses mesmos 4). (Isto tem, no entanto, a virtude de dar coerência ao sistema, e força à direção, o que convém que seja de leitura clara para todos.)

Assim sendo, o que inibe uma direção de forçar orientações ideológicas? Apenas o cuidado na interpretação da História… Em Portugal abundam os locais de divulgação das chamadas «novas pedagogias», identificados com vários institutos de formação de professores, algumas universidades, etc.; igualmente abundam os locais de exercício, que invadiram estruturas educativas, institutos de investigação na área educativa, sucessivos ministérios e que, no entretempo—para o melhor e para o pior—produziram legislação. No reverso da medalha, em contracorrente, outras manifestações: as neurociências, as ciências da cognição, a alcunha do «eduquês», de dedo apontado (o «pédagol» dos franceses… não esqueçamos, o fenómeno é mundial), a teimosia em manter métodos mais testados pela acumulação da experiência do que pela vontade de tudo mudar, num gesto rasgado, durante uma legislatura: o ensino, a natureza humana, o universo. Esta contracorrente parece ter feito agora uma aproximação ao poder, com o novo ministro.

É, então, o quê, o cuidado na interpretação da História? É o bom senso prevalecente numa área em que as cobaias de todas as experiências são seres humanos com cujo futuro estamos a jogar. Gregos e Troianos querem a inclusão, ou seja—o sucesso educativo junto de uma população escolar alargada, em que fatores pessoais, económicos, sociais, possam ser minimizados, e em que os alunos tenham ao seu dispor fontes de conhecimento efetivas, concorrendo em igualdade de circunstâncias a empregos, ao casamento, à paternidade, à vida. Muito bem.

Mas qual tem sido o resultado das ditas «novas pedagogias» (vão a caminho dos 100 anos, nalguns países)?: vários icebergs, e outros tantos casos de naufrágio. Os EUA, para começar; o Reino Unido, solidário com a antiga colónia; a Europa do Sul; a França (a melhor educação europeia, no dizer de alguns, no despontar do século 20), etc.

E também Portugal, colocado como está nas aferições da OCDE alargada—vulgo PISA.

Dirão: os rankings são os rankings. Não ligamos a essas coisas.

Seja. Mas ligamos, então, a quê? Àquilo a que se chama, esperançosamente, num deslize de objetividade, outras coisas? Quais coisas, senhores? Os nossos alunos estão, tipicamente, mais ignorantes das disciplinas curriculares, menos bem educados, nada incomodados com o linguajar (deixemos a Língua: isso é já do domínio da Metafísica), igualmente ignorantes do que de mais interessante a humanidade fez em música, em arte, em literatura, em ciência, no exercício da curiosidade inteligente e na compreensão do Mundo. Em termos sonoros domina, nos nossos corredores e pátios, o grito histérico, o palavrão, a agressão e o insulto. O bom selvagem anda por aí, e só é moderado pela Geografia do território: Portugal não é, felizmente, um coio de marginais. Os miúdos não foram completamente ignorados até chegarem à escola.

Estamos a gerar inclusão? Os nossos projetos educativos, curriculares de escola, e curriculares de turma, e toda essa sinfonia de projetos conluiados, estão a segregar cidadania, futuros férteis de possibilidades, amanhãs que cantam?

Não: estamos a usar meninas e meninos como cobaias de ideologias que estão por demonstrar. Que, quase passados 100 anos, nalguns sítios da Terra, produziram ignorância, exclusão, sujeição. Estamos a ser agentes de uma ideologia que não sabemos se não tem aspetos tenebrosos.

Estamos a brincar às «Ciências Pedagógicas». Com—repito—meninas e meninos.

O que nos diz o bom senso? Que devemos governar a escola com equilíbrio, com economia, em ordem ao conhecimento dos conteúdos das disciplinas, reguladas por programas nacionais, em nome do maior número possível de alunos.

Isto necessita de uma estrutura, administrada por uma direção. A direção trata do equilíbrio e da economia; a estrutura trata da pedagogia e da avaliação. A estrutura é constituída por professores, organizados em grupos disciplinares para os consensos desejáveis, mas centrados nas suas praticas pessoais e respeitando os programas. É isso que lhes cabe. É por isso que podem ser responsabilizados. A direção, reforçada pela legislação existente, dirige. Tem melhores condições que nunca para fazer o que já se fez bastante bem, se não me falha a memória. Não tem é condições para adotar ideologias peregrinas, pondo-se a experimentar: falta-lhe a capacidade científica; falta-lhe fôlego; falta-lhe estatura; falta-lhe o direito.

Sobra-lhe, no entanto, espaço para deixar boas memórias nos professores que dirija: proporcionando-lhes boas condições de trabalho (a organização e equipamento das salas de professores e dos gabinetes deixam por vezes muito a desejar), travando as guerras com o recente senhorio (sim, a Parque Escolar) para que os edifícios vejam todas as más soluções anuladas, ou minimizadas (coisas estragadas e partidas, ou que funcionam mal, ou mesmo não funcionam, rotinas de trabalho e de serviços que não são as desejáveis, etc.), e pondo em prática medidas de gestão que tornem a escola num espaço de educação cívica e de atenção às tarefas do quotidiano (vulgo, estudo e trabalho) que todos pretendemos: quer docentes quer, muito naturalmente, discentes.

Qual é, então, a conclusão de todo este arrazoado?: que, no próximo projeto educativo, as direções se preocupem com dirigir a escola. Não com explicar aos professores como é que se ensina e avalia.

Não sabem tanto como isso.

E que o ministério se reduza à gestão dos grandes processos: o currículo nacional; os programas das disciplinas; os passos da progressão e os processos gerais de avaliação e certificação; a seleção de docentes e a carreira do ensino público; o espaço das escolas públicas.

Uma pequena fração da atual estrutura é amplamente suficiente para isto.

António Mouzinho

3 comentários:

cs disse...

"Até o facto de a doutrinação não funcionar nos poderá servir de guia: se o Estado Novo não conseguiu passar a mensagem doutrinária, com todo o peso do pilão utilizado, como podemos acreditar, em democracia, na efetividade duma Formação Cívica na formação de jovens? Qualquer rapariga ou rapaz de espírito livre vai marimbar-se instantaneamente para a conversa politicamente correta do catecismo! (E cumprir, estrategicamente, as manobras de avaliação que lhe garantam a nota…)"

Por acaso, acho que este texto mostra como a doutrinação do Estado Novo funcionou e ainda se faz sentir.
Uma simples opinião de quem não dá aulas, nem nunca deu, mas sempre recebeu.
Com respeito

José Batista da Ascenção disse...

Pois, Caro António Mouzinho.

Concordo.

Dúvidas, só no balanço. Com que, no entanto,

concordaria se nos obrigássemos a adoptar o

princípio de "antes assim que pior".

Outro aspeto a referir é que na contracorrente

a que (me) sinto pertencer, o único poder que

reclamo é o de rejeitar a prática da tontice e

da batota legalmente impostas.


Nota humorística: (*) pensar também significa

dar ração - "penso" - a cavalgaduras. Os

professores têm-se prestado bastamente a ser

devorados em tais "pensos.

MM disse...

Caro, António Mouzinho,

Só me atrevi a ler o seu texto pelo subtil sorriso que o seu título me conseguiu roubar.

Confesso-me um inqualificado e um inculto para discutir este assunto com o grau de pormenor que o seu texto sugere. Ainda assim, permita-me duas notas:

1. Com sinceridade e sem querer lesá-lo, considero que para dizer o que aqui diz - falo do valor acrescentado deste post para o problema em questão - não precisava de ter gasto tantas linhas.

2. Acho que a educação está a tornar-se buraco negro, por quatro motivos simples:

2.1 Excesso de teóricos sobre educação a regatear o 'seu' quinhão de pedagogia.

2.2 Excesso de políticos a resumir educação a obras públicas e a usar resultados escolares como arma de arremesso.

2.3 Excesso de lixiviação intelectual nos alunos provocada pelo herbicida mental que é a cultura pop.

2.4 Falta de filosofia, da clássica, em todos os intervenientes desta grande roda.


Assim resumo o que a leitura do seu texto me despoletou.

Não me tome a ousadia a mal, por favor, que eu prezo é discutir ideias.

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