quarta-feira, 13 de junho de 2012

Cinquenta anos depois

Texto amavelmente enviado pelo Professor Galopim de Carvalho:

Completaram-se no passado mês de Maio cinquenta anos sobre a conquista das oito horas de trabalho diário pelos camponeses do Alentejo e do Ribatejo. Foi em 1962, doze anos antes da queda do regime de Salazar e Caetano e representou uma vitória com significado sociológico e político bem destacado na luta que, também noutros sectores, se travava contra a ditadura. Os nossos filhos não a conhecem nem as duras condições de trabalho e de vida que se viveram nos campos destas duas províncias.


Quando, no final dito mês de Maio de há precisamente meio século, fui informado deste feito, eu estava de partida para França, como bolseiro do então Instituto de Alta Cultura, a fim de estagiar no Museu Nacional de História Natural de Paris. Tinha terminado o meu curso no ano anterior e ficara na Faculdade como Assistente da cadeira de Mineralogia e Geologia.

Acontece que, como já tenho escrito, sendo um rapaz urbano pelo nascimento e pela criação, em Évora, convivi e fiz amigos entre os camponeses de uma larga cintura em redor da cidade. Foi durante a minha adolescência, na segunda metade dos anos 40, nas aldeias e nos campos onde, com o meu irmão Mário e dois ou três colegas de liceu, montávamos tenda ao sabor de um campismo rudimentar e selvagem que era possível fazer nesse tempo. Com uma ou duas tendas de tipo canadiana e algum material que requisitávamos na Casa da Mocidade (expressão pela qual designávamos a sede da Ala de Évora, da organização juvenil do Estado Novo, Mocidade Portuguesa) e tudo o mais que a mãe nos emprestava, este contacto com a natureza (ainda muito pouco degradada pelo “progresso”) e o convívio muito estreito com estes meus conterrâneos, vacinaram-me contra um certo elitismo que ainda existe nos meios intelectuais da sociedade portuguesa.

Foi através de um destes meus amigos que tomei conhecimento do feito que marcou o fim de uma das fases mais dolorosas da vida de um povo em luta por melhores dias. Filho de gente pobre, porqueiro em criança e adolescente, assalariado rural para todo o serviço, em homem pai de filhos, o Ludgero, que eu desconhecia ser militante comunista na clandestinidade, relatou-me o essencial desta luta vitoriosa, despontada no litoral alentejano.
- No princípio deste mês, - começou ele por dizer – os trabalhadores agrícolas, entre homens e mulheres de Grândola, de Alcácer e da Herdade da Palma conquistaram o direito às 8 horas de trabalho. Esta conquista estendeu-se, num foguete, a todo o Alentejo e a todo o Ribatejo.

- E tu estiveste nessa luta, claro?


- Está-se mesmo a ver que estive! Nem podia deixar de estar. Eu e muitos milhares de trabalhadores. As oito horas de trabalho já tinham sido conquistadas nas fábricas. – Continuou ele. - Foi em 1919, durante a Primeira República. Essa conquista só agora chegou aos trabalhadores do campo. Foi a recompensa de uma luta organizada do nosso povo contra os agrários. Uma luta que vinha desde os anos em que a gente, os dois, se conheceu, lá no monte, andava eu mais o Faísca a correr atrás dos bácoros.


Francamente interessado naquela conversa, adiantei: - Eu sei que o horário dos assalariados rurais era de “sol a sol”.


- Diz-se do nascer ao pôr-do-sol, mas era mais do que isso. Era escravatura. – Acrescentou o Ludgero. - Para muitos destes homens e mulheres, os dias começavam mais cedo, bem antes do nascer do sol, e acabavam mais tarde, já noite cerrada. Tinham de andar a pé, uma ou duas horas, até chegarem ao trabalho e fazer a mesma caminhada, de volta a casa. Para a ceia, as mais das vezes, comiam e há muitos que ainda comem uma açorda de poejos ou um gaspacho envinagrado tão magrinhos de azeite e sem conduto, quase só pão e água.


- E quando não havia trabalho, não havia pão. - Retomei a palavra, com o propósito de dar continuidade àquele desabafo do meu amigo.


- Quando não havia e quando não há! Ainda hoje há ocasiões em que não temos trabalho. Foram e, às vezes, ainda são “barrigadas de fome” que só a gente é que sabe. Os fiados na venda da aldeia são muitos e o pessoal nem sempre tem dinheiro para os pagar. Conheço alguns que chegam ao ponto de ir à cidade pedir com que dar de comer à família. Outros caçam coelhos ou lebres, o que calha, mesmo no defeso. Não importa. A gente arrisca-se. E quem não tem espingarda, caça à má fila, com cajado. Fazemos o que for preciso para arranjar pão para os filhos. Tudo menos roubar! – Frisou. - Os salários são de miséria e é quando os há. Somos mão-de-obra barata e sem direitos, sujeitos à exploração dos grandes senhores da terra. E os governantes estão do lado deles. Todos! - Reforçou – E não são só os de Lisboa. Os Governadores Civis e os Presidentes das Câmara estão do mesmo lado. São escolhidos a dedo.


- Esses são homens da confiança do Governo de Lisboa. – Disse eu, que bem conhecia a repressão do sistema. - Se pisarem o risco, o melhor que lhes pode acontecer é perderem o tacho.


- A mais pequena palavra ou atitude reivindicativa – continuou o Ludgero - é logo atalhada pela GNR ou pela PIDE. Os bufos andam por todo o lado. Muitos camaradas são presos, espancados, torturados e alguns deles assassinados.


- Lembro-me perfeitamente da morte do Germano Vidigal. – Acrescentei. – Falava-se nisso à boca pequena, era eu rapaz. Foi em 1945, no posto da GNR de Montemor-o-Novo, e lembro me da morte de um outro, já me esqueci do nome, de Vila Viçosa, pouco tempo depois.


- Era o Patuleia. – Disse, de imediato, o meu interlocutor. - Foi assassinado em 1947, na sede da PIDE, em Lisboa. Mas houve mais. E foram muitos os que passaram e ainda passam pelas prisões destes malvados, em Caxias, no Aljube e em Peniche.


Pela boca deste e de outros meus amigos do mundo rural alentejano eu tinha conhecimento, ainda que em linhas gerais, da luta deste povo, durante as cerca de duas décadas que antecederam aquele Maio de 1962. Privados de direitos sindicais, desenvolveram uma organização unitária clandestina abrangendo, em especial, o Ribatejo e o Alentejo e que aparecia à luz do dia por ocasião das ceifas e debulhas, tiradas de cortiça, fabrico do carvão, mondas, apanha da azeitona e outros trabalhos mais importantes.

Por duas ou três vezes que acampei numa das herdades dos arredores, deram-me a ler textos do Avante e de O Camponês. Eram folhinhas de circulação clandestina, dobradas, com sinais evidentes de passarem de mão em mão. Não as traziam no bolso, escondiam-nas em locais combinados que tanto podia ser entre duas pedras de um muro em ruínas ou um buraco no tronco de uma velha oliveira, e passavam palavra. Ouvi-os falar de “comissões de rancho”, “comissões de herdade” e da chamada “praça de jorna”, locais das aldeias ou dos montes onde se reuniam para tratarem colectivamente dos salários e de outras reivindicações e das respostas a dar aos patrões, algumas vezes, na presença intimidatória da Guarda Republicana.

- A última vez que falámos com o patrão – continuou o Ludgero - para pedir mais dez tostões por jorna, dizendo que mal ganhávamos para comer, a resposta do malvado sem coração foi: «Comam palha!». O Ti’ Cristóvão, que estava ao meu lado, repentista já idoso e respeitado por todos, não se conteve e respondeu, na hora: «Quando a gente comer palha, vossemecê come navalha!». No outro dia, manhãzinha cedo, foi levado para o posto da Guarda e dali para a cidade. Depois foi aquilo que a gente sabe: interrogatórios e maus-tratos, até que o mandaram embora. Mas não denunciou ninguém.

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