terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Peter Mitchell da Teoria Quimiosmótica? Sim e também de algumas excentricidades...


Post convidado de Alexandra Nobre:

“A mente humana é como um jardim onde são plantados factos e ideias e que passamos o tempo a rearranjar...
” Peter Mitchell

Andando para trás no tempo duas décadas e uns pozinhos, vejo-me sentada num anfiteatro a estrear mas já padecendo de alguns problemas genéticos, num edifício com C baptizado e hoje a precisar de cuidados geriátricos, ali para os lados do Campo Grande de uma grande cidade. Coordenadas - Curso de Biologia, ramo de Investigação, cadeira de Bioenergética, Professor Daniel Arrabaça, pessoa que se por um lado me intimidava com o seu modo ríspido de (inter)agir, por outro me encantava com estórias e histórias tão fluidas quanto as membranas ao longo das quais electrões saltitam os degraus de uma escada energética, permitindo, deste modo, que protões, atravessando-as num único sentido, se acumulem de um só lado e, sendo muitos, unam forças e energia e, com elas, fazem “luz”, que neste caso é como quem diz, ATP. Grandes exemplos estas membranas! Adiante. E quando já o tinha colocado no topo de um altar com velinhas acesas tal era a minha adoração por tais momentos, eis que um dia tem a ousadia de contar que trabalhara com o Prémio Nobel Peter Mitchell, pai da Teoria Quimiosmótica, aquela teoria fascinante dos saltinhos e atravessamentos de que falei ali em cima. Pronto! Não se faz! Uma coisa é privarmos com alguém que olhamos de baixo porque o colocamos num plano onde a terra acaba, outra, muito diferente, será termos que distender o pescoço porque ascendeu ao nível onde começa o céu. Ora vamos lá mudar de assunto que desse dia em que me vejo não quero falar.

Peter Mitchell nasceu em 1920 em Surrey, Inglaterra e sempre estudou em colégios como convém a famílias endinheiradas. Em Queens College caiu na graça do Director C. J. Wiseman, (há nomes premonitórios...) reconhecido professor de matemática e talentoso músico amador, cuja credibilidade muito lhe valeu mais tarde quando quis entrar na universidade em Cambridge e o resultado do seu exame de admissão se revelou um episódio para esquecer. Enquanto a guerra acontece por essa Europa fora, fecha-se no local de estudo e trabalho, onde chega todos os dias extravagante no seu Rolls Royce, com o cabelo pelos ombros, jaqueta roxa e camisa aberta até ao umbigo. Depois de ver a sua primeira dissertação rejeitada por “demasiada originalidade”, em 1951 termina o doutoramento com J. F. Danielli (aquele senhor do modelo da membrana com as proteínas espalmadas entre duas paredes de lípidos), no qual estudou os mecanismos de acção da penicilina descoberta vinte anos antes, uns 100 km a sul. Transita, por convite, de monitor no Department of Biochemistry em Cambridge para director da Chemical Biology Unit na Universidade de Edinburgh onde continua o seu percurso académico.

Pessoa de visão abrangente, tem para além da ciência muitos interesses que vão desde a família à arquitectura e restauro, à música, à filosofia e à história do pensamento. É natural que. por isto mesmo, Mitchell esteja interessado não só na ciência em si, mas em todo o mecanismo da descoberta científica como um processo criativo e de triagem de informação. Nas suas próprias palavras “o problema da maioria dos cientistas não é tanto a falta de boas memórias, mas sim o não terem bons esquecimentos”.
Em 1961, num fabuloso exercício de abstracção e mudança do paradigma, que defendia com unhas e dentes a existência de um composto intermédio altamente energético não fosforilado, põe a hipótese do acoplamento energético (o fluxo de electrões através de uma cadeia transportadora de moléculas localizada numa membrana, bombeia, de modo unidireccional, protões através da mesma gerando um potencial electroquímico -força protomotriz- e é o desfazer deste gradiente que permite a síntese de ATP) alicerçada numa série de postulados a validar. Esta abordagem holística da Biologia é controversa, envolve conceitos teóricos muito à frente das evidências experimentais possíveis na altura e abala o modo de pensar instituído em relação a tópicos como: conservação de energia, transporte de metabolitos, estrutura e função das membranas, homeostasia, evolução da célula eucariota, entre outros, bem como todos os aspectos da vida em que estes processos têm lugar. Segundo o seu antigo colega em Cambridge, Leslie Orgel, “...desde Darwin e Wallace que a Biologia não apresentava uma ideia tão contra-intuitiva como as de Einstein, Heisenberg e Schroedinger.” E é por isso natural que a sua visão tenha sido completamente negligenciada pelos seus pares durante anos, o que o levou a alimentar as suas convicções com bastante angústia, recursos financeiros pessoais, noitadas frequentes e uns copos para além da conta. Consta, de fonte fidedigna que eu cá sei, que entre as tarefas dos seus colaboradores mais jovens, estava incluída uma ronda aos pubs da área sempre que o seu atraso passava o limiar estipulado. Mas não há almoços grátis, e entre 1963 e 1965 problemas gástricos agudos afastam-no por completo da investigação. Quis o destino que, quando por conselho médico procurava uma casa a sul onde pudesse recuperar, tivesse tropeçado em Cornwell numa mansão em ruínas pela qual fez uma oferta ridícula. E é assim que, quase sem saber como, se vê mestre das obras de recuperação e nasce a Glynn House, onde adapta a ala oeste para investigação juntamente com a antiga colega Jennifer Moyle, com quem cria um grupo muito restrito de quatro elementos, já a contar com a secretária. E é também assim que é fundado o Glynn Research Institute dedicado à investigação fundamental em Biologia, o famoso local de concepção da Teoria Quimiosmótica que lhe valeu o prémio Nobel da Química em 1978 pela “contribuição para o esclarecimento da transferência de energia biológica”, para muitos a segunda maior descoberta da Biologia do século XX, logo após da estrutura do DNA.

Após a sua morte em 1992, Helen Mitchell, sua segunda mulher, inspirada na entrevista que deu à BBC e que denominou “Gardens of the Mind”, criou um jardim em Glynn em sua homenagem onde se pode ler “Remembering Peter Mitchell in whose gardens of the mind we wonder in joy and gratitude“ .

Quando, nas minhas aulas, conto esta história aos alunos e digo que o meu professor de Bioenergética trabalhou com o laureado Nobel Peter Mitchell também tenho o meu impacto. É certo que não me olham de baixo nem começam a hiper-ventilar, mas fixam-me de olhinhos mais abertos e quer-me cá parecer que até esboçam um sorriso. Se calhar para a próxima sou capaz que completar o ramalhete com “e consegui 19 a Bioenergética que tive que defender numa oral”. É. Vou pensar nisso...

Alexandra Nobre

1 comentário:

Cláudia Amorim disse...

Pois deveria completar o ramalhete!
Recordo-me bem dessa aula, da estória e da história. E tal, como aqui, foi um prazer ouvir/ler.

Obrigado

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