“E, uma vez que algo foi escrito, a composição, seja qual for, espalha-se por toda a parte, caindo em mãos não só dos que a compreendem mas também dos que não têm relação alguma com ela; não sabe como se dirigir às pessoas certas e não se dirigir às erradas” (Platão, 428 a.C. – 348 a.C.).
Seja qual for o prisma com que se encare as grandes crises educativas, sociais ou económicas que se apresentam ao país, Portugal parece perpetuar-se na triste sina de nada querer aprender com os erros do passado, aplicando "vacinas" de que desconhece os efeitos assim como a dose certa a utilizar, provocando, com isso, a disseminação endémica da própria doença.
Vem a propósito recordar que o Estatuto da Carreira Docente (Decreto-lei 409/89), promulgado no tempo do ministro da Educação Roberto Carneiro, num clima de intensa pressão sindical, foi a causa da criação da Associação Nacional dos Professores Licenciados (ANPL), em Janeiro de 1991, génese do actual Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL), que conheceu a luz do dia no ano seguinte em defesa, entre outros, do seguinte princípio doutrinário: “O SNPL representa a ruptura com as orientações sindicais então existentes, em oposição frontal à instituição de uma carreira única de professores, pois pretende revalorizar a profissão em todo o seu percurso, em consonância com os valores e as necessidades dos professores dos nossos dias”.
Perante a estranha passividade de quem parecia ingenuamente acreditar ter como bastante a justiça pelo seu lado na defesa dos seus lídimos direitos, promoveu a ANPL uma conferência de imprensa a alertar a opinião pública, em geral, e os professores licenciados por universidades, em particular, para o perigo de se tornarem coniventes, ou meros agentes passivos, deste iníquo “statu quo”. Da referida conferência, com a presença de diversos órgãos de informação, transcrevo um pequeno excerto:
“O Decreto-lei 409 provocou muitas injustiças. Não teve em conta as habilitações académicas. Permite que tanto um licenciado como uma pessoa que dispõe apenas da quarta classe e de um ano de magistério (os antigos regentes) atinjam o topo da carreira. Por outro lado, professores licenciados que à data da entrada em vigor do decreto (Dezembro de 1989) tinham atingido o topo da antiga carreira ficam agora colocados três escalões abaixo e só podem ascender ao escalão máximo se se sujeitarem à feitura de um trabalho de índole pedagógica” (“Docentes com ‘canudo’ querem tratamento diferenciado”, Correio da Manhã, 22/10/91).
Entretanto, as Escolas Superiores de Educação continuaram a formar, ad libitum, simultaneamente, professores para os 1.º e 2.º ciclos do ensino básico, respectivamente, a níveis de bacharelato e licenciatura, em que a preparação dos professores do 2.º ciclo constava dos três anos iniciais de um bacharelato comum e de mais um único ano de preparação para a docência do 2.º ciclo com professores habilitados (?) para ministrarem, simultaneamente, Matemática e Ciências da Natureza enquanto para os licenciados universitários leccionarem, apenas, ou Matemática ou Ciências da Natureza desse mesmo 2.º ciclo eram exigidos cursos mais exigentes e de maior duração.
Como é fácil de supor, a esmagadora maioria dos alunos das Escolas Superiores de Educação optaram por mais esse ano de estudo deixando o 1.º ciclo do ensino básico (antigas escolas do ensino primário) carenciado de docentes. Por isso, na altura, não pude deixar de criticar publicamente Ana Maria Bettencourt, membro do corpo docente da Escola Superior de Educação de Setúbal e actual presidente do Conselho Nacional de Educação, quando escreveu "de pena ao vento", como diria Eça, que “em matéria de formação de professores, o pensamento dos reitores é pré-histórico” (Correio da Manhã, 16/06/96).
Respondia Ana Maria Bettencourt, desta forma, a um documento intitulado “Repensar o Ensino Superior”, no qual, em face da promiscuidade entre os ensinos universitário e politécnico, era defendida a necessidade de “proceder rapidamente à análise das funções das Escolas Superiores de Educação, considerando-se a oportunidade da sua reconversão, por exemplo, em centros de formação contínua dos docentes do ensino não superior ou em escolas com outra vocação”. Havia nesta proposta uma certa ingenuidade que residia no desconhecimento da feroz oposição dos sindicatos de professores em abdicarem desta rendosa fonte de receita.
Perante esta herança recebida por Isabel Alçada, ex-docente da Escola Superior de Educação de Lisboa e antiga dirigente da Fenprof, embora sem querer fazer juízos de valor precipitados, dado o meu desconhecimento das linhas programáticas que irão presidir à sua acção no ministério da Educação, cada vez se radica mais em mim a ideia que as futuras modificações no Estatuto da Carreira Docente se destinam a simples alterações pontuais (e nem sempre no melhor sentido) de uma legislação a necessitar de uma reformulação de raiz por um estado de saúde patológico que não se cura em fazer mais do mesmo ou com mezinhas sindicais. Não se cura agora como não se curou no passado, com os nefastos resultados bem à vista de um ensino que não ensina.
Isto porque um país que desrespeita, ou subalterniza, diplomas oficiais universitários está gravemente enfermo, necessitando com urgência de um “Serviço Nacional de Leis” para estudar a etiologia das suas mazelas jurídicas, para debelar os efeitos de uma avulsa legislação mal feita, mal escrita e mal interpretada, e, se for caso disso, para atribuir um subsídio de funeral a maleitas legislativas sem cura possível. Assim haja a necessária coragem, por parte de todos os intervenientes bem intencionados, para melhorar o nosso sistema educativo, não comungando do desalento do poeta de ”Orpheu”: “Já não me importo / Com o que amo ou creio amar. / Sou um navio que chegou a um porto / E cujo movimento é ali estar”.
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8 comentários:
Muito bem. Depois de dizer, pela enésima vez, o que já foi dito e redito desde, pelo menos, o século XIX, diga-nos, em detalhe: quais são as suas propostas?
Carlos Santos
Eu deduzo que a proposta de Rui Baptista é a de pôr as peças do xadrez no seu devido lugar para se poder jogar o jogo limpo, porque os miniministérios educativos e os bolonheses vieram implantar a nanotecnia curricular no ensino básico, misturar o que não pode ser misturado, inverter a escala de valores, formatar licenciados no ensino básico, e transmitir às futuras gerações de alunos que as licenciaturas universitárias são parras que já deram uva.
Tudo somado, o panorama actual é: licenciatura minimal para o ensino básico ou licenciatura universitária, tanto dá como deu, equivalem-se politica, social e economicamente, porque quem não é doutor morre mouro.
Caro João Boaventura:
O que faz o jogo de xadrez ser limpo não é a colocação das peças, mas as regras do jogo. Estas últimas determinam, aliás, o conjunto de disposições possíveis das peças. Portanto, o que se tem de aclarar são as regras e a razão pela qual se joga com estas e não com outras. Seria Não-Bolonha possivel? Como? A que custo? Com que fim? Estas são algumas das questões que têm de ser atacadas a fundo. Por que uma vez arbritadas as regras do jogo, dizer, em palavras de arco-íris, que não se gosta da posição das peças, é um lamento tão pobre como estéril. Aliás, em boa verdade, é um lamento imbecil e velho.
Caro João Boaventura:
Parafraseando Platão, atrevo-me a pensar que, no seu caso, a minha mensagem caíu em mãos que compreenderam a minha principal intenção: fazer o diagnóstico da má situação do nosso ensino e de algumas das suas possíveis causas. Aliás, esse diagnóstico está plenamente confirmado pelos resultados do PISA, resultados pouco lisonjeiros para Portugal.E contra factos não há (ou não deve haver) argumentos, na sabedoria popular.
Entre essas causas, julgar-se que a qualidade do ensino está na razão inversa da formação académica dos seus docentes, como tenho escrito várias vezes.
Foi um prazer abordar, ainda que a voo de pássaro, estas questões consigo.
Caro Rui Baptista,
Apenas um reparo: pelas conversas que tenho tido com muitos professores do "ensino" básico e secundário público, julgo que o que estes "docentes" esperariam é que a sua formação contínua fosse leccionada nas Universidades e nas suas áreas científicas!
Naturalmente que nos restantes ciclos de "ensino" público (1º e 2º) a esmagadora maioria dos "professores" professam a doutrina das "ciências" da educação e como tal estão convencidos que a importância dos conhecimentos científicos é quase irrelevante quando comparados com o estudo da Bíblia Sagrada das "ciências" da educação. Sendo assim, e pelo que tenho ouvido de suas bocas, consideram que a sua formação contínua se deve centrar nas "boas práticas" pedagógicas e formas "inovadoras" de fazer com que crianças de 8 anos consigam compor sinfonias de Beethoven sem ter que memorizar e treinar partituras!! Não os censuro, uma vez que foi isto que ouviram durante todo o seu percurso no "ensino" "superior" nas famosas "escolas" "superiores" de educação!
Carlos Santos
Quando diz que
"Estas são algumas das questões que têm que ser atacadas a fundo"
deduz-se que afinal sabe quais as questões que devem ser atacadas a fundo, e tenho pena que não as tenha desenvolvido como o exigiu a Rui Baptista.
Quanto ao xadrez não há que alterar as regras do jogo porque as regras já provaram que servem, então, se vou alterar as regras do jogo, é porque as pedras não estão como mandam as regras, mas em lugares diferentes, daí eu propor que voltem a um mundo normal, ao devido sítio.
Metaforicamente o Ministério colocou mal as peças.
Se as colocar no devido lugar não há necessidade de mudar as regras.
Caro João Boaventura:
As únicas pedras que existem no xadrez são as da calçada que suporta a mesa com o tabuleiro. No xadrez existem sim, peças. Nem as regras servem ninguém. Os jogadores de xadrez é que se servem delas, mais que não seja para se alhearem, como faziam os jogadores de xadrez na ode de Ricardo Reis. E como já lhe disse, existem diversos tipos de xadrez. Cada qual tem as suas regras. E as regras condicionam a disposição. Não faz sentido então a frase "a correcta colocação das peças". Ou melhor, fará mas em relação a uma ética da colocação das peças. Aquela que distingue a boa, da má colocação. Então, o que é preciso discutir são os critério da boa e da má. O que, por sua vez, nos conduz à discussão sobre as próprias regras. Mais que não seja pela constatação que com estas regras nunca iremos ter as peças colocadas como achamos por bem.
Por fim, não é mim - que apenas comento o que é posto no "post" - que me cabe fazer um "post". Não invertamos a ordem das responsabilidades. A mim cabe-me apontar o que entendo que tenho de apontar ao que foi escrito no "post". E, neste caso, particular, apontar para o nada, o vulgar, o fácil, que emana destes textos do Rui Batista. Mas noto que acaba por concordar comigo que o Rui Batista não desenvolveu, tal como lhe havia exigido. Aliás, o Rui Batista, como é normal, negou-se uma vez mais a aprofundar. Pensar nunca é fazer diagnósticos ligeiros ou confirmar sabedorias populares. Isso é fazer uma opinião. E não há maior inimigo para o pensar que a opinião, como qualquer pessoa que tenha percebido o mínimo de Platão bem o sabe.
Caro Fartinho da Silva:
Agradeço e corroboro o seu comentário. Um docente licenciado por uma universidade aí deve voltar para uma formação contínua na matéria que lecciona e não a uma qualquer duvidosa e nada relacionada acção de (de)formação para ter acesso a um novo escalão do estatuto da carreira docente.
A ciência está em permanente evolução e é essa evolução que deve ser acompanhada pela vida fora. Daí, o eu não compreender, e muito menos aceitar, que um professor de matérias científicas ou humanísticas regrida para formações ministradas por escolas do “eduquês” ou sindicatos como forma de angariarem receitas.
A propósito e a título de exemplo, transcrevo um excerto de um meu artigo de opinião: “Um sindicato de professores [esclareço não ter sido a Fenprof] organizou um curso de especialização em Administração Escolar, com uma carga horária de 430 horas, e um mestrado de 120 horas e uma tese(?), sendo os candidatos seleccionados não em função das respectivas habilitações literárias e nota final de curso, ‘mas ordenados e admitidos por ordem de inscrição com aulas pagas a 350$00 a hora’” (Correio da Manhã, 05/05/1992).
Ou seja, um acesso a um ensino superior sindical ,“avant la lettre”, do actual “acesso ao ensino superior para maiores de 23 anos” em que o simples BI se substitui a um 12.º ano do ensino secundário. Ou até a certas “licenciaturas” obtidas em universidades privadas que só fecharam por a isso serem obrigadas pelo escândalo público. A China teve os seus médicos de pé descalço. Portugal tem licenciados de pé descalço. Aqui chegado, a exemplo de Stanislaw Lec, não posso deixar de me interrogar: “Será progresso um canibal usar garfo e faca?” Ou seja, parafraseando, será progresso um quase analfabeto ostentar um diploma(zinho) de licenciatura?
Julgo que o documento “Repensar o Ensino Superior”, apenas se justificou pela intenção de chamar a atenção do poder político para a despudorado assalto das escolas superiores de educação a graus de docência tradicionalmente da pertença das faculdades, como seja os 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. Para os que têm a memória fraca será conveniente recordar que elas foram criadas com a finalidade de atribuir, apenas, bacharelatos para a docência do ensino infantil e do 1.º ciclo do básico.
Paga a sociedade portuguesa a factura da extinção dos liceus e mesmo escolas técnicas, cuja memória havia que apagar com o crisma de escolas do ensino secundário. É esse corpo docente liceal, ainda em exercício, embora em vias de reforma, herdeiro da dignidade de um ensino não superior oficial que era procurado pela sua qualidade e que hoje vê os seus alunos emigrarem paras escolas privadas de qualidade bem melhor. É esse corpo docente que ainda consegue manter uma certa dignidade em algumas das actuais escolas secundárias.
Sinal de tempos de terra queimada para que das suas cinzas nascesse qualquer coisa sem termo de comparação com o passado!
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