domingo, 27 de dezembro de 2009

Pastas e pacotes - 3

Texto que surge na sequência de outros publicados no De Rerum Natura.

Lembro-me que o meu interesse pelos manuais escolares surgiu quando, há duas décadas, li um livro de divulgação científica escrito por um físico. O livro tem por título Está a brincar Sr. Feynman e o físico é Richard Feynman.

Apesar de haver um oceano e mais de duas décadas a separar a nossa realidade de ensino e aquela a que Feynman se refere, algumas das suas considerações continuam a fazer sentido no sistema educativo português e seria vantajoso que lhe déssemos a atenção que merecem.

Uma dessas considerações remete para os problemas que se levantam quando se faz a escolha dos manuais: Em que critérios assenta essa escolha? Os critérios adoptados são os mais correctos? Quem produz os manuais e quem os deveria produzir? Quem os escolhe e quem os deveria escolher? Em que altura do ano lectivo são escolhidos? Será tal altura a melhor?...

Na verdade, ouço muitas queixas acerca de muitos manuais, sendo que parte dessas queixas vêm dos professores que os usam e que, eventualmente, os escolheram... Podemos perguntar: se os consideram menos bons ou, mesmo, maus porque é que os escolheram?

A resposta não é simples, como acontece com praticamente tudo no nosso sistema educativo. Vejamos... Na verdade, a escolha de manuais com que se irá trabalhar numa determinada escola está a cargo de professores, mas:

1. Essa escolha é feita (ou deverá ser feita) a partir de critérios apresentados pelo Ministério da Educação, não podendo, por princípio, derivar das opções particulares dos professores.
2. Nem todos os professores que usam os manuais participam na sua escolha, em geral, um grupo de docentes encarrega-se desta tarefa.
3. A altura do ano em que a escolha tem de ser feita não é, de todo, a melhor para se fazerem escolhas cuidadas, devido, por um lado, à sobrecarga de tarefas de responsabilidade (nomeadamente de avaliação) que competem com mais esta e, por outro lado, ao tempo limitado que é dado aos professores para apreciar os inúmeros manuais (com os seus inúmeros documentos) disponibilizados pelas editoras.

Deixo o leitor com as palavras de Richard Feynman, que traduzem o seu assombro quando se viu envolvido na complicada tarefa que é a escolha de manuais escolares.

“Nessa altura eu estava a dar uma série de aulas de Iniciação de Física e, depois de uma delas, Tom Harvey, que me ajudava a preparar as demonstrações, disse: «Devia ver o que se passa com a Matemática nos livros escolares! A minha filha chega a casa com uma data de disparates!».

Não prestei muita atenção ao que ele disse. Mas no dia seguinte recebi um telefonema de um advogado bastante famoso de Pasadena, o Sr. Norris, que nessa altura pertencia à Junta Estadual de Educação. Pediu-me que fizesse parte da Comissão Curricular Estadual, que devia escolher os novos manuais para o estado da Califórnia. Sabem, o estado tem uma lei segundo a qual todos os manuais usados por todos os miúdos em todas as escolas oficiais têm de ser escolhidos pela Junta Estadual de Educação, pelo que formam uma comissão para ver os livros e aconselhar que livros eles devem escolher (…). Por esta altura, eu devia ter um sentimento de culpa por não cooperar com o Governo, dado que aceitei fazer parte da Comissão.

Comecei imediatamente a receber cartas e telefonemas dos editores. Diziam coisas como: «Ficámos muito satisfeitos ao saber que o senhor pertence à comissão porque queríamos realmente um homem de ciência...» e «É maravilhoso ter um cientista na comissão, porque os nossos livros têm uma orientação científica...». Mas também diziam coisas como: «Gostaríamos de lhe explicar a intenção do nosso livro...» e «Teremos muito gosto em o ajudar no que pudermos a avaliar os nossos livros...». Aquilo afigurava-se-me um disparate. Sou um cientista objectivo e parecia-me que, como a única coisa que os miúdos iam receber na escola eram os livros (e os professores recebiam o manual do professor, que eu também receberia), qualquer explicação extra seria uma distorção. Por isso não quis falar com nenhum dos editores e respondi sempre: «Não precisam de explicar; estou certo de que os livros falarão por si».

[...] A Sr.ª Whitehouse começou por me falar nas coisas que iam debater na próxima reunião (já tinham tido uma reunião; eu fora nomeado mais tarde). «Vão falar sobre os números de contar». Eu não sabia o que aquilo era, mas afinal era o que eu costumo chamar números inteiros. Tinham nomes diferentes para tudo, pelo que tive imensos problemas logo de início.


Ela contou-me como os membros da Comissão avaliavam os novos livros escolares. Arranjavam um número relativamente grande de exemplares de cada livro e davam-nos a vários professores e administradores do seu distrito. Depois recebiam relatórios do que essas pessoas pensavam sobre os livros. Como não conheço uma data de professores ou administradores, e como achava que, lendo os livros sozinho, podia formar uma opinião sobre o que me pareciam, resolvi ler os livros todos sozinho.

[...] Então fui à primeira reunião. Os outros membros tinham atribuído uma espécie de pontuação a alguns livros e perguntaram-me quais eram as minhas pontuações. Muitas vezes a minha pontuação era diferente da deles e eles perguntavam: «Por que deu uma pontuação tão baixa a esse livro?» Eu dizia que o problema daquele livro era isto e aquilo na página tal — tinha os meus apontamentos.

Descobriram que eu era uma espécie de mina de ouro: dizia-lhes, em detalhe, o que havia de bom e de mau em todos os livros; tinha uma razão para cada pontuação. Perguntava-lhes por que tinham dado uma pontuação tão alta a determinado livro e eles diziam: «Diga-nos o que pensou do livro tal». Eu nunca descobria porque é que eles tinham pontuado uma coisa de determinada maneira. Em vez disso, estavam sempre a perguntar-me o que eu pensava.

Chegámos a um certo livro que fazia parte de um conjunto de três livros suplementares publicados pela mesma editora e perguntaram-me o que pensava dele. Eu disse: «O depósito de livros não me mandou esse livro, mas os outros dois eram bons». Alguém tentou repetir a pergunta: «O que pensa do livro?». «Já disse que não me mandaram esse, pelo que não tenho opinião sobre ele». O homem do depósito de livros estava lá e disse: «Desculpem; posso explicar isso. Não lho mandei porque esse livro ainda não estava completo. Há uma regra segundo a qual as entradas têm de ser todas até uma certa altura e o editor atrasou-se uns dias. Por isso nos foi enviado apenas com as capas e o interior em branco. Da companhia mandaram-me uma nota pedindo desculpa e dizendo esperar que pudessem considerar o conjunto dos três livros, apesar de o terceiro vir atrasado».

Verificou-se que o livro em branco tinha pontuação de alguns dos outros membros! Não acreditavam que estivesse em branco porque tinham uma pontuação. Na realidade, a pontuação para o livro que faltava era um pouco mais alta do que para os outros dois. O facto de não haver nada no livro não tinha nada a ver com a pontuação.


Creio que a razão de tudo isto é o sistema funcionar deste modo: quando enchemos as pessoas de livros, elas ficam ocupadas, ficam descuidadas e pensam: «Bem, há muita gente a ler estes livros, pelo que não faz diferença». E põem um número qualquer — algumas, pelo menos; não todas, mas algumas.

[...] Esta questão de tentar descobrir se um livro é bom ou mau lendo-o cuidadosamente ou recebendo os relatórios de uma quantidade de pessoas que o lêem descuidadamente é como este famoso problema antigo: ninguém podia ver o imperador da China e a pergunta era: qual o comprimento do nariz do imperador da China? Para o descobrir, percorremos todo o país, perguntando às pessoas que comprimento julgam ter o nariz do imperador da China e calculamos a média. E o cálculo seria muito «preciso» porque considerámos muitas pessoas. Mas esta não é a maneira de descobrir seja o que for."

Referência: Feynman, R. (1988). Está a brincar, Sr. Feynman! Retrato de um físico enquanto homem. Tradução de Isabel Neves. Lisboa: Gradiva. Ps. 274-279.

2 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Sobre este assunto poderia escrever resmas de páginas. Tenho participado na escolha de diversos manuais, sendo que nos últimos dez anos apenas o fiz para livros de biologia e/ou geologia do ensino secundário. A altura é normalmente pouco favorável, incidindo muitas vezes em Abril, Maio, quando o cumprimento dos programas aperta e é necessário dar mais atenção aos alunos, especialmente aos que estão preocupados com os exames. De uma forma geral, se me fosse possível não escolhia nenhum dos livros sobre os quais tenho de me pronunciar. Houve um ano que porfiei em lê-los de fio a pavio. Eram vários, ia dando em louco, e não gostei da opção. Mas as restantes não eram melhores. Penso também que os manuais do ensino secundário só deveriam ser feitos por pessoas com largos anos de ensino dos respectivos programas e com connhecimentos sólidos no domínio científico específico. Há uns dias escrevi algures que me agradam manuais com textos como os que o professor Galopim de Carvalho escreveu para o ano propedêutico lá na segunda metade dos anos setenta. Agora, o discurso usado é, na melhor das hipóteses, sofrível e os livros têm páginas e páginas, sobretudo a intercalar capítulos, cheias de belas fotografias, com imensas cores, mas que pouco adiantam em relação ao que os alunos devem aprender. E estão cheias (as páginas) de esquemas com caixinhas e setas, a que um senhor, creio que Novak, chamou mapas de conceitos, e que os entusiastas do eduquês adoptaram afanosamente, lavando o cérebro a gerações de licenciados com a ideia de que aquilo era uma maravilha para os miúdos mapearem mentalmente os conceitos. Um dos resultados que eu suponho real foi mais um contributo para se desvalorizar o texto escrito e para os alunos escreverm o menos possível. Na parte experimental, atacaram-se os protocolos experimentais comparando-os a receitas (como se os bons livros de receitas alguma vez tivessem prejudicado algum bom cozinheiro)e vieram com outra preciosidade chamada "V" de Gowin, e nova lavagem a muito professor, que passou a preocupar-se mais com o esquema, do que com o que é fundamental quando se faz experimentação: os alunos perceberem a razão e o alcance do que se pretende demonstrar (aqui, julgo que os maiorais do eduquês pensaram que poderiam fazer bons "professores" mediante "receitas" que, além de inúteis, ou, nalguns casos, inadequadas, são siplesmente ridículas, além de desviarem a atenção do conteúdo para a mísera embalagem...). Mas falava eu da adopção dos manuais. E os manuais estão feitos do modo que os programas preceituam. E, em minha opinião, os autores dos manuais, pelo menos o de biologia de décimo ano deviam ir presos. Quem não acreditar que vá ler. Assim mal comparado seria como pedir a um bom maestro que regesse uma orquestra por uma partitura feita por alguém que desconhece música. Embora isso não ilibe o facto de qualquer indivíduo fazer um livro, supostamente didactico, e o colocar à disposição das editoras. E se houver nas escolas quem o escolha, o livro sai. E se tiver saída os alunos usam-no... Ora, como é feita concretamente a escolha: as editoras oferecem exemplares aos professores que têm que os analisar num tempo curto e escolher deles o que lhes pareça melhor, ou menos mau... Depois é preciso preencher umas grelhas muito completas, pelos grupos disciplinares, os quais incluem os professores que leccionam aqueles níveis e os que os não leccionam, os que leram os manuais e os que os não leram ou quase não leram, etc. Como há prazos para entrega das ditas grelhas, muitas vezes preenchem-se mais ou menos como um totobola, melhorando um ou outro item no manual sobre o qual recaiu a selecção, porque se sabe que aqueles livros obedecem a programas que obedecem a ideias que são um absurdo pegado. A isto acresce o clima de desânimo e descrença que há muitos anos cresce no ensino que faz com que muita gente preencha papéis e papéis com o mesmo gosto e empenhamento dos funcionários do sistema de justiça ou da segurança social. Foi isto que fizémos do (nosso) ensino...

Fartinho da Silva disse...

Tendo em atenção que os "professores" do sistema de "ensino" público foram transformados em meros burocratas ao serviço do eduquês e que os poucos que ainda conseguem resistir a tanto disparate estão completa e absolutamente fartos de preencher relatórios sobre os assuntos mais tontos que se possa imaginar, grelhas de patetices, formulários de pieguices, reuniões para discutir o óbvio, entre outros disparates tão importantes para justificar o emprego de terceiros, quando chega a altura de ler os "manuais" escolares a paciência já não é propriamente a melhor. De qualquer forma, tenta-se! E ao tentar, percebe-se que se não se obedecer cegamente ao eduquês tem que se preencher tanto papel, tanta grelha, tanto formulário e convocar tanta reunião que se cede! A vida real de "professor" do sistema público de "ensino" é esta...

Já agora, para quem gosta de conhecimento, aconselho vivamente a leitura atenta dos manuais escolares do 3º ciclo e secundário... rapidamente se apercebe porque somos o país mais atrasado da Zona Euro e um dos mais atrasados da União Europeia! A relevância dada à forma é tão grande quando comparada com a relevância ao conteúdo que parece que estamos a ler os "Morangos com Açúcar"!

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...