sexta-feira, 9 de maio de 2008

O filósofo proibido

Republico aqui a minha recensão do mais recente livro de Peter Singer publicado em Portugal: Ensaios sobre uma Vida Ética, que publiquei no jornal Público. A edição é da Dom Quixote, e tem tradução de Pedro Galvão, Maria Teresa Castanheira e Diogo Fernandes. Um excerto do livro pode ser lido aqui.

O mais recente livro de Peter Singer publicado em Portugal é uma recolha de diversos trabalhos seus que procuram apresentar a totalidade do seu pensamento. O livro foi publicado em resposta aos protestos que se seguiram aquando da sua contratação pela Universidade de Princeton. Efectivamente, a imensidão de pessoas que protestava contra a contratação de Singer tinha uma ideia errada das suas posições, assim como o público austríaco e alemão, cujos manifestantes nunca permitiram que Singer discursasse e onde chegou a ser agredido fisicamente. O relato assustador do seu processo de silenciamento na Áustria e na Alemanha é feito por Singer num dos capítulos deste livro.

É comum Singer provocar reacções adversas muito violentas, mas isso não deveria ser surpreendente. Qualquer pessoa que ponha ideias feitas em causa gera anticorpos e a filosofia tipicamente põe ideias feitas em causa porque é em grande parte a análise cuidadosa dos nossos preconceitos mais queridos. Quando tais preconceitos dizem respeito a problemas esotéricos de epistemologia, metafísica ou filosofia da linguagem, ninguém se incomoda. Mas quando dizem respeito à eutanásia, à ajuda aos mais pobres, ao aborto ou ao modo como tratamos os animais não humanos, é natural que as reacções adversas se façam sentir.

O livro tem cinco partes, antecedidas por uma lúcida introdução na qual Singer explica quais são os quatro princípios éticos fundamentais nos quais baseia todas as suas posições. Como é típico na filosofia, estes princípios parecem aceitáveis, e num inquérito talvez a maior parte das pessoas os aceitasse. Contudo, conduzem Singer a conclusões que muitas pessoas não só se recusam a aceitar como acham ofensivas e intoleráveis, dignas de ser proibidas ou ignoradas. O primeiro princípio é que o sofrimento é intrinsecamente mau, "seja quem for aquele que sofre" (pág. 13), sendo igualmente mau independentemente de quem sofre. Por exemplo, o sofrimento dos brancos não pode valer menos ou mais do que o dos índios. O segundo princípio é que a maior parte dos animais não humanos — como os cães, cavalos, galinhas, porcos, vacas, etc. — pode sentir dor e sofrimento. O terceiro é que devemos unicamente ter em consideração cada ser, e não a espécie, raça ou sexo a que pertence, quando consideramos o mal de o matar. O quarto é que não somos responsáveis "só por aquilo que fazemos, mas também por aquilo que poderíamos ter impedido" (p. 13). Destes princípios seguem-se algumas das suas teses que mais irritam os críticos: que o sofrimento que provocamos nos animais não humanos para os comer é imoral; que a eutanásia e o aborto são morais, em certas circunstâncias, assim como o infanticídio; que o modo de vida europeu e americano é imoral, porque a generalidade das pessoas prefere comprar mais um par de calças de cem euros quando poderia dar esse dinheiro para ajudar a impedir uma criança em África de morrer à fome.

Uma parte importante da irritação que as pessoas sentem resulta de antropocentrismo. A distinção crucial entre pessoa e ser humano, estabelecida classicamente por John Locke, parece difícil de entender para muitas pessoas. Ser um ser humano é pertencer a uma dada espécie biológica, e isso só por si é moralmente irrelevante. Mas ser uma pessoa é ter determinadas características — consciência de si, projecção no futuro, autonomia — que são moralmente relevantes. Se um dia descobrirmos extraterrestres que falem connosco não podemos matá-los só por não serem seres humanos, tal como os europeus não tinham o direito de explorar e matar os índios e os negros só por não serem brancos.

A primeira parte do livro é uma breve introdução à ética, na qual Singer explica alguns mal entendidos em relação a esta disciplina. A segunda parte é dedicada à discussão da relevância moral dos animais não humanos. A generalidade do público pensa que só se fazem experiências dolorosas com animais não humanos para salvar vidas humanas, mas isto é falso. Outra ideia falsa que as pessoas têm é quanto ao modo como os animais para a alimentação são tratados pela indústria alimentar — as pessoas têm em mente as quintas tradicionais, mas isso não existe hoje em dia. A terceira parte é dedicada à pobreza mundial, ao aborto e à eutanásia. Singer apresenta aqui os seus cinco novos mandamentos, em substituição de cinco dos mandamentos tradicionais, assim como dados muito interessantes acerca da perspicaz fantasia inventada pelos médicos de Harvard — a morte cerebral — que é na verdade uma maneira de sancionar a eutanásia involuntária sem termos de passar pelo incómodo lhe chamar tal coisa. A quarta parte contém algumas das ideias de Singer mais atraentes para o grande público: ideias sobre o sentido da vida e sobre o que significa ser de esquerda hoje. Finalmente, na última parte Singer apresenta algumas notas pessoais: a referida nota sobre o seu silenciamento na Alemanha, o seu distanciamento relativamente ao activismo exacerbado em prol da libertação animal e finalmente uma entrevista.

Este é um livro de leitura contagiante, defendendo cuidadosamente ideias importantes, e servido por uma prosa elegante, clara e despretensiosa. Será irritante para muitas pessoas, mas quando a filosofia cumpre o seu papel de pôr em causa os nossos preconceitos mais queridos não pode evitar ser irritante.

13 comentários:

alf disse...

Num comentário ao post sobre o acaso eu disse que raramente os grandes problemas são realmente problemas dificeis; o que os torna dificeis é um conjunto de pressupostos e presunções admitidos como verdadeiros e que o não são.

A nossa cabeça está cheia de presunções erradas, umas aprendidas dos outros, outras adquiridas empiricamente.

Os enormes problemas da Física dos últimos 100 anos são apenas o resultado da total incapacidade da Física de questionar os seus pressupostos. Na realidade, os modelos cosmologicos e atómico não são mais que um sucessivo empilhar de hipóteses disparatadas, que resultam de pressupostos errados.

A revolução de Copernico e Galileu foi exactamente esse questionar de conceitos admitidos como indiscutiveis pela ciencia de então.

Mas a Ciência nem aprendeu nem adquiriu essa capacidade, o método científico de hoje é, na realidade, o seguido por Ptolomeu e não por Galileu - realização de modelos matemáticos dos resultados da observação tal qual são obtidos. E, pior do que tudo, total incapacidade de questionar os seus pressupostos.


E é aqui que a Filosofia bate estrondosamente a Ciência, na capacidade de questionar continuamente os pressupostos. Trabalho arduo e dificil, totalmente incompreensivel para a cabeça de muitos cientistas. Assustador mesmo.

Lembro que Poincaré o fez detalhadamente, o que fez dele muito mais do que um cientista, fez dele um filósofo. O filósofo que foi a principal fonte de inspiração de Einstein.

A dificudade de questionar os pressupostos não é só um problema da Física, é um problema do ser humano. Os pressupostos são "invisiveis", apenas os detetamos indirectamente analisando o pensamento.

Um comentador disse do meu comentário que não tinha adiantado nada. Engano. Aprender a identificar e questionar os pressupostos que regem o nosso pensamento inconsciente é a chave para a sabedoria. Um dia será ensinado na escola.

Rui leprechaun disse...

O primeiro princípio é que o sofrimento é intrinsecamente mau, "seja quem for aquele que sofre" (pág. 13), sendo igualmente mau independentemente de quem sofre.


Ora este 1º princípio, sendo basilar e aquele onde os outros assentam, necessita de ser bem mais clarificado.

Por certo Singer fá-lo na sua obra, mas a 1ª interrogação é logo saber de que sofrimento se fala?! Apenas o físico, que é comum aos homens e outros animais, ou também o dito moral ou anímico que será mais próprio da espécie humana?! Talvez não exclusivo desta, sim, mas por certo bem mais pronunciado e autoconsciente entre os seres humanos.

Suponho que Singer se refere àquilo que o Budismo considera como o único erro ou pecado, que é o de causar voluntariamente e de forma consciente dor a qualquer ser senciente. Nesta formulação, a minha concordância é completa.

Há, contudo, uma subtil nuance quando nos referimos à nossa própria espécie, e que está expressa na conhecida frase: "a dor pode ser inevitável, mas o sofrimento é opcional". Bem, esta formulação é por certo bem mais discutível e difícil do que esse 1º princípio de Singer, mas creio ser muitíssimo importante compreendê-la de modo a ter outra visão mais abrangente daquilo que significa o sofrimento a nível humano. Obviamente, aí faz-se a separação entre dor ou trauma físico ou psicológico e o consequente sofrimento psíquico ou moral, o qual se pode prolongar enormemente para além das causas iniciais que o originaram.

Por outro lado, é óbvio que tais princípios apenas podem ser seguidos pelo próprio Homem, pelo menos enquanto o tal Paraíso terrestre não for reencontrado. Ou seja, no reino animal sempre haverá a dor e o sofrimento próprios dessa luta contínua pela existência entre presas e predadores.

Mas a questão central é mesmo a do correcto significado dessa afirmação de que o sofrimento é intrinsecamente mau, o que dito de modo absoluto é inaceitável por obviamente incorrecto. O chamado sofrimento moral ou interior, por exemplo, pode ser benéfico e purificador, trazendo em si o gérmen da transformação positiva de toda uma vida.

Logo, sem penetrar correctamente no sentido desse postulado de Singer não é possível dizer se estes princípios parecem aceitáveis, já que é justamente esse 1º que determina a validade dos restantes.

Seja como for, de um modo geral eles parecem-me correctos e desejáveis, sim.

Por último, e até porque falei do Budismo atrás, há inegáveis semelhanças entre a filosofia budista e estes princípios éticos de Peter Singer. Só que por certo a exigência da "via do meio" é bem mais funda na sua meta última da cessação de todo o sofrimento. E nunca será possível transformação alguma que não comece pela mudança primordial da consciência de cada indivíduo - Homem, Mulher e Criança.

Há ainda mais considerações a fazer, mas esta é mesmo a fundamental. De que sofrimento fala Singer, afinal?!

Unknown disse...

Primo: o excerto que o Desidério pôs na crítica confirma que, para além do mais, o Singer é insuportavelmente arrogante e presunçoso! Afirmações como Passei quase trinta anos a trabalhar em ética prática, o que significa que quando comecei esta disciplina não existia

são de uma presunção indescritível, mas todo o texto é do género. A cereja em cima do bolo é a vitimização. Presunção e vitimização é uma combinação que me irrita solenemente.

Fico logo com comichões em relação aos que se apresentam como detentores da verdade absoluta mas carpem vitimização e que há uns maus da fita que se obstinam em não ver a Luz.

Depois, eu não percebo nada de filosofia mas percebo alguma coisa da área em que trabalho. E quando apanho o Singer a arrotar postas de pescada que eu sei serem postas de pescada completamente erradas fico com muitas dúvidas se todas as coisas que ele escreve não serão mesmo só postas de pescadas.

E não só eu que apanha as inconsistências e pensamento shallow do Singer: aparentemente o senhor considera-se mesmo um Messias que veio ao mundo para nos mostrar o caminho. Mas como aponta quem sabe em relação a um dos livros do senhor:

"Indeed, the reader gets the impression that Singer is pontificating from on high to lesser mortals, certainly lesser intellects"

Como ele diz:

His arguments, however, have not improved with time. A potentially fine wine has definitely become vinegar. The blurbs to his books advertise: Singer is influential. Singer is smart. Singer is honest. Singer is infuriating. Singer makes his reader think. In One World, Singer is only infuriating.

Apesar de toda a auto-propaganda e as recensões laudatórias do seu bando de seguidores, para mim o Singer é apenas irritante. Pela arrogância, pela presunção, pela superficialidade e falsidade com que aborda temas de que não pesca nada (biologia, por exemplo, e pelos vistos economia também).

O Singer pode desenvolver um raciocínio lógico brilhante que pelos vistos ofusca mesmo quem acha que o Tratactus Logico-Philosophicus do Wittgenstein é uma fantasia.

Se seguirmos os conselhos do Desidério e introduzirmos clareza e honestidade nas premissas de que Singer parte, os seus "likes and dislikes" completamente subjectivos, fica um formalismo que pode ser brilhante mas que encobre apenas "a infeliz tendência da humanidade para dar voz aos seus desejos mais infantis".

Helena Serrão disse...

Penso que a proposta de Singer, no que diz respeito à possibilidade de uma vida Ética para minimizar o sofrimento faz todo o sentido e é suficientemente clara para gerar adesão.

alf disse...

A discussão dos conceitos em que se baseiam os nossos modelos de realidades é uma discussão muito complexa. A Filosofia não é simples. O que é simples é escolher um conjunto de ideias "simplórias" e em cima delas chegar a conclusões "claras".

O que é simples é construir uma lógica que suporte as conclusões pretendidas a priori. O que é complexo é tentar caminhar um pouco em direcção à verdade.

Uma lógica como a de Singer assemelha-se perigosamente ao primeiro caso. Mas as ideias contrárias, em muitos casos, também.

A "arrogancia" dele pode ser apenas consequência de considerar que há falta de respeito pelas suas ideias. É uma reacção típica. Irrelevante para a apreciação racional do seu pensamento.

Victor Gonçalves disse...

"Este é um livro de leitura contagiante, defendendo cuidadosamente ideias importantes, e servido por uma prosa elegante, clara e despretensiosa. Será irritante para muitas pessoas, mas quando a filosofia cumpre o seu papel de pôr em causa os nossos preconceitos mais queridos não pode evitar ser irritante."

O último parágrafo da hagiografia de Desidério é extraordinária:

a) Que quer dizer "leitura contagiante"? Lemos e outros potenciais leitores ficarão contagiados? Como, por explosão?

b) O que é uma "defesa cuidadosa de ideias"?

c) E estes novos critérios estéticos: "elegante, clara e despretensiosa"? Como se escreve sem pretensão?

d) Finalmente, aqueles que se irritarem com o logos de Singer são uns estúpidos preconceituosos.

Já sabem, vamos lar gostar de Peter Singer! E já agora, dos que o traduzem e recenseiam em Portugal.

Abobrinha disse...

Alf

Fiquei confusa e tenho duas dúvidas muito simples:

1. Quais são os enormes problemas da Física dos últimos 100 anos?

2. Quais são os pressupostos da Física e porque estão errados?

Rui leprechaun disse...

Ah! Só agora vi esse link no texto para o excerto de Uma Vida Ética, e que tem as tais 4 teses ou princípios éticos que são pois o cerne da filosofia de Singer.

Deste modo, a pergunta que fiz atrás - "De que sofrimento fala Singer, afinal?!" - está respondida assim:

A dor é má e quantidades similares de dor são igualmente más, seja quem for aquele que sofre. Incluo aqui no termo "dor" todos os géneros de sofrimento e de angústia. Isto não significa que a dor seja o único mal ou que seja sempre errado infligir dor. Por vezes, pode ser necessário infligir dor e sofrimento a nós próprios ou aos outros. Fazemo-lo a nós próprios quando vamos ao dentista e fazemo-lo aos outros quando repreendemos uma criança ou prendemos um criminoso. Mas isso justifica-se porque a longo prazo conduzirá a menos sofrimento; a dor em si não deixa de ser um mal. Inversamente, o prazer e a felicidade são bons, seja quem for aquele que os possui, mas pode ser errado fazer certas coisas, como maltratar os outros, de modo a conseguir prazer ou felicidade.

Sim, para mim nihil obstat ao que acima se diz. Gostaria de ver esse princípio ainda mais elaborado, segundo aquilo que explanei no comentário anterior, mas não vejo nada a opor nisto que Singer diz.

Por outro lado, reparo agora que a leitura atenta do 3º princípio mostra ser ele que pode dar origem às tais interpretações muito controversas, sim. No resumo do artigo, isso não era aparente, mas a formulação original é sem dúvida mais problemática:

Quando consideramos a gravidade de tirar uma vida, não devemos olhar para a raça, sexo ou espécie do ser em questão, mas para as características do ser individual que pode ser morto, como, por exemplo, os seus próprios desejos a respeito de continuar a viver ou o género de vida que ele poderá vir a ter.

Ora são estas palavras finais que por certo Singer utiliza para justificar o infanticídio, uma prática que é legalmente interdita, ainda que na prática algumas penas sejam pouco mais do que simbólicas, isto pelo menos em vários casos noticiados em Portugal. E aqui não falamos daquilo que Singer considera eticamente defensável, claro, ou seja, a morte de nados vivos que sejam deficientes profundos.

Aliás, ele próprio reconhece que esta 3ª premissa é mesmo a mais problemática, dizendo:

A terceira premissa é provavelmente a mais controversa, já que estamos muito habituados a pensar que matar um membro da nossa própria espécie é invariavelmente muito mais grave do que matar um membro de qualquer outra espécie.

E mais adiante refere explicitamente o dilema do infanticídio:

Por exemplo, se um bebé nascer com deficiências graves incompatíveis com uma qualidade de vida aceitável e desenvolver depois uma infecção, muitos médicos e teólogos dirão que é permissível não lhe dar antibióticos. Porém, estas mesmas pessoas pensam que seria errado permitir que o médico desse uma injecção letal ao bebé. Porquê? Os motivos, a intenção e o resultado podem ser iguais em ambos os casos. Se por vezes é permissível permitir deliberadamente que um bebé morra quando uma intervenção médica simples poderia salvar a sua vida, então por vezes também tem de ser permissível matar o bebé.

Porém, a exposição que ele faz nesse curto resumo não é de forma alguma monolítica ou fundamentalista, já que os princípios teóricos gerais devem ser sempre aplicadas segundo uma ética prática em circunstâncias bem concretas.

Em suma, aquilo que Singer diz parece-me perfeitamente equilibrado e aceitável, em princípio. Por isso, acho algo surpreendente a forte contestação que o pensador australiano suscita. Por certo, são reacções bem mais emocionais que racionais. Mesmo nos 2 artigos que lhe foram dedicados neste blog, as classificações dos leitores são extremamente baixas, entre o Aborrecido e o Mau, ou menos de 2 estrelas! E, no total, eles foram avaliados por 245 pessoas, o que ainda é muita gente! No mínimo, pelo menos uma centena deu a classificação mais baixa, e por certo isso não reflecte o valor intrínseco dos artigos mas sim a opinião particular sobre as obras e o seu autor.

Será até de suspeitar que Singer seja demasiado íntegro, por assim dizer, e só isso pode já despertar uma animosidade aberta. Enfim, não será por muito tempo assim...

Oh well... time will tell...

Rui leprechaun

(...a vida é breve e a morte é certa! :))

Rui leprechaun disse...

Agora mesmo, terminei uma longa conversa aqui na Net com uma bióloga que está a concluir o mestrado em Madrid.

Para já, fiquei muitíssimo surpreendido por não haver nenhuma cadeira de Ética no curso. Ela é aluna da Un. Coimbra e está agora na Autónoma de Madrid pelo Erasmus.

Grande parte da conversa recaiu no controverso filósofo italiano, mas a jovem é de facto bem mais liberal do que eu ou menos presa a antigas concepções religiosas e morais. Ou seja, mesmo sem ter uma grande conhecimento prévio de Singer, a leitura destes textos e respectivos links proporcionou-lhe um apoio para a sua própria concepção utilitária sobre a vida. Her words:

Se alguém não produz nada, não tem qualquer utilidade à sociedade ou ao mundo e se só dá trabalho e despesa, não vejo porque seria anti-ético fazê-lo. Sim, exactamente, seria tanto crime ou menos ainda que matar um animal.

And she is not an atheist, mind you!

Falamos aqui do infanticídio, que creio ser mesmo aquilo que há de mais perturbante na ética prática de Singer. Mas para mim há pelo menos 2 pontos, um mais filosófico mas outros mais biológico, para contestar esta visão algo desassombrada mas também impiedosa, ainda que correctamente baseada na maximização da felicidade para todos.

Anyway... para além do que se possa por vezes ler ou dar a entender, Peter Singer não é de modo algum nenhum fundamentalista. As suas ideias estão bem articuladas e o seu raciocínio é coerente, mas não vejo qualquer extremismo nessas posições e na sua aplicação concreta como "ética prática".

Bem, sendo vegetariano como ele, claro que partilho naturalmente das mesmas convicções em relação ao tratamento dos animais usados para a alimentação humana. Aqui, isto que ele refere é uma posição eticamente moderada e que eu diria ser bastante consensual:

Em nenhum momento disse que não devemos comer carne porque é errado matar animais. O alvo de minhas críticas é a maneira antiética como os animais são criados e abatidos para consumo.

Estas são contudo sempre questões delicadas quando as tratamos directamente com as pessoas. Ou seja, da mesma forma que as acções extremistas de grupos como a ALF (Animal Liberation Front) provocam uma natural reacção de repúdio que objectivamente prejudica a causas dos "direitos animais", da mesma forma abordagens muito cruas e ofensivas não só nos podem fazer perder a simpatia e estima dos outros como contribuem também para o seu possível alheamento das causas que defendemos.

Simples psicologia humana, na de transcendente nem surpreendente.

Mas acerca do infanticídio, que me parece ser o ponto mais frágil da argumentação do filósofo, eis o que ele diz:

Considero o feto uma vida humana, mas não uma vida que tenha sensações e sentimentos, pelo menos na fase de gestação em que ocorre a maioria dos abortos.

Esta afirmação é de facto estranha, não me parece que a biologia possa de modo algum sustentar essa ausência de sensações e sentimentos. Por outro lado, põe-se então a questão a partir de que idade terá o recém-nascido essa tal capacidade de sentir e ser consciente de si que, segundo Singer, o tornam pessoa e não apenas ser humano pertencente à espécie homo sapiens, como ele mesmo afirma.

Por outro lado, é claro que temos também o argumento metafísico ou teológico de Deus e a alma humana. Aqui é óbvio que Singer parte de uma perspectiva ateísta ao propor os seus 4 princípios éticos... olha, como as 4 verdades do Budismo, eu bem digo que eles andam bem afins! ;)

Eu não vejo qualquer justificação para a crença numa alma imortal, para não falar da ideia de que esse género de alma é propriedade exclusiva da nossa espécie.

Ora estas posições metafísicas já vêm sendo debatidas sei lá eu desde quando! Será assim? não será assim? há alma? não há alma? é a morte o fim?

Numa síntese mais geral, e deixando de parte a problemática animal, incluindo a algo "exótica" zoofilia, a enorme dificuldade nas 3 questões chave - aborto, infanticídio e eutanásia - é que elas dizem respeito a seres que não podem decidir por si próprios, salvo os casos de eutanásia voluntária e consciente, claro. Aliás, na prática aborto e eutanásia são agora até os dois pólos já mais aceitáveis, a ideia do infanticídio activo - que, no fundo, nem é tão diferente do aborto médico legal já em fase adiantada da gravidez - é que gera sem dúvida maior polémica e uma certa natural repulsa.

Por fim, claro que mesmo a oposição ou discordância frontal com as ideias de Singer não justificam comportamentos e atitudes infelizes e indignas por parte de alguns dos seus detractores. E não me refiro aqui sequer às manifestações de força física ou obstrução activa, que me parecem simples resquícios de imaturidade, mas à mais insidiosa deturpação do pensamento do filósofo. Ou à sua tentativa de responsabilização moral por acções de outrem, mesmo que estes até possam justificá-las com o pensar ético do autor.

Não sou talvez tão concordante assim como a minha jovem amiga, mas acho muito positivo que Singer seja ouvido e manifeste aberta e livremente a sua voz, por muito que ela nos possa ser incómoda.

E quem não está de acordo com isto?! I AM!!!

Minha posição é contra a interrupção da vida de um ser, seja humano, seja animal, que deseja continuar a viver e sofrerá com a morte inesperada.

João Carlos disse...

A Rita finalmente admite que não percebe nada de filosofia. Se a ética é filosofia, então também não percebe nada de ética, e devia abster-se de continuar a fazer comentários disparatados sobre este assunto. Depois utiliza a biologia para justificar as suas posições alegando que o faz por perceber de biologia. Começemos já por aqui. Uma coisa é o que a ciência nos diz, outra coisa é o que devemos fazer. Depois, a ciência não nos diz que devemos fazer experiências com animais, essa decisão somos nós que a tomamos, e não é justificação ética nenhuma. A Rita, está constantemente a fazer crer que biologia é igual a experiências com animais e que o contrário não é verdade. Como se a ciência não fosse um mundo suficientemente grande e complexo para não poder escapar a isso. Fica a Rita informada, que dentro do mundo da biologia existem muitos biólogos que defendem posições próximas da de Singer. Quando se diz que os animais sofrem como os humanos, e por isso deviam ter direitos, não se trata de mera filosofia. Trata-se de um facto demonstrado pela própria ciência inclusive pela própria biologia. O que alguns, têm feito crer, incluíndo as opiniões irritantes da Rita, é que os direitos dos animais reduzem-se ao observador que emite esses juízos. No entanto, como disse, o facto, vai muito mais além disso. Não se trata de uma construção somente da mente de alguns indivíduos, de um delírio, trata-se de uma certeza que é independente do observador. Mesmo que o Singer não existisse, o facto é verdadeiro. Se juntarmos a isto sensibilidades como a de Singer, então a causa passa a ter valor, ético e moral. Isto reforça a opinião e a causa dos que defendem os direitos dos animais, o que, ao contrário dos que tentam ridicularizar esse facto, tem cada vez mais bases empíricas sólidas. Não se tratam de delírios, tratam-se de factos que existem. E quem o tenta negar, justifica-se com o injustificável, já o tenho dito. Aqui, não se trata de mera filosofia, sem comprovação empírica, o facto é mesmo verdadeiro e há cada vez mais provas científicas que apontam nesse sentido.
A maneira como o Singer aborda a questão só merece um reparo negativo: ele não contou com a natureza humana, porque a ganância e a vaidade, são por vezes mais fortes que as bases éticas e os factos em que se apoiam. A Rita é apenas um exemplo. O que lhe aconteceu (ao Singer) na Alemanha e na Aústria é outro. Por vezes não basta termos as provas nas mãos para defendermos os nossos juízos, às vezes também é necessário vencer-se a longa batalha do domínio da crença e do dogmatismo humano que distorce a verdade acerca dos factos, mesmo que ela salte à frente dos nossos olhos, preferimos ver só aquilo que queremos. A história humana, está cheia de episódios desses. Este é apenas mais um. A natureza humana, dirá, não quem tem necessariamente razão, mas quem vencerá. É que a verdade ética e dos factos em que se pode sustentar, ainda não é necessariamente sempre igual à verdade que nos é imposta.

Rui leprechaun disse...

Antes de comentar em mais profundidade a questão ética e legal - são dois planos distintos, atenção! - dos direitos dos animais, devo fazer uma correcção óbvia ao meu último post, onde queria dizer "controverso filósofo australiano" e não italiano, como é evidente.

De um modo geral, não posso deixar de concordar com a posição de Singer, por aquilo que tenho lido em excertos dos seus livros e, mais ainda, nas suas entrevistas na Net, nessa questão dos "direitos dos animais". Convém contudo não esquecer que ele se refere à tal ética prática, afinal, não propriamente ao direito jurídico e legal. E, contudo, na legislação de alguns países também já se punem os actos grosseiros de crueldade para com os animais. Nem sei se é o caso português ou não, mas talvez um dia exista ainda uma Carta dos Direitos dos Animais, creio que isso não deve demorar muito.

O ponto aqui é também o da defesa ou não desse conceito legal de "direito dos animais", o qual é contestado amplamente por muitos especialistas na questão. Não faço ideia se têm ou não razão, porque o terreno da ética pessoal e da nossa sensibilidade moral é aqui bem mais simples e eficaz. E aí, é evidente aquilo que foi dito no post acima quanto ao facto objectivo e inegável da capacidade de sentir dor e de sofrer, que é comum ao homem e provavelmente a todos os demais vertebrados, em especial os mamíferos e as aves que são talvez os filogeneticamente mais evoluídos.

A dificuldade maior da posição de Singer a este respeito, ainda que eu não veja fundamentalismo algum nas suas afirmações concretas sobre o tema, é o facto de ele, no fundo, colocar a vida humana ao mesmo nível das outras espécies animais superiores, nesse tal conceito de "especismo". Uma tal posição colide, sem dúvida, com algumas concepções religiosas do Homem como "coroa da criação", embora, como também já salientei antes, possam até estar de acordo com o pensamento metafísico das grandes religiões do Oriente e a noção de reencarnação ou de evolução espiritual, que inclui também o próprio reino animal.

A este respeito, o Jainismo é de facto a religião mais extremista ou exagerada de todas... só visto! :)

Following strict ethics, the laity usually choose professions that revere and protect life and totally avoid violent livelihoods.

Como é evidente, são vegetarianos estritos e não podem ter nenhuma profissão que lide com produtos ou restos animais, mas os ascetas ou monges jainas chegam ao ponto de trazer consigo uma pequena vassoura com a qual limpam cuidadosamente o caminho à sua frente, para não pisar involuntariamente alguma forma animal. Obviamente, não podem andar de carro ou avião... era cá uma mortandade de bicharada com asas que nem te digo! :)

Claro que numa ética mais prática e racional, atendendo ainda ao princípio de que "o óptimo é inimigo do bom", não há sequer necessidade de encarar uma opção vegetariana a nível individual. Isso seria um tipo de imposição absolutamente descabido e irrealista, que ninguém com um mínimo de bom senso jamais de atreveria a propor, muito menos o filósofo australiano. Aquilo que ele pretende apenas apontar é que o tratamento que deve ser dado ao gado utilizado na alimentação humana tem de se reger por princípios minimamente éticos, não produzindo mais sofrimento do que aquele que talvez seja necessário e inevitável. E claro que isto também se refere às experiências laboratoriais, óbvio, as quais não se podem demonizar ou interditar em absoluto, pelo menos enquanto não for mesmo possível substituí-las de outra forma.

Meaning... devemos tomar consciência do que de facto acontece à comida que nos chega ao prato, e nem só à de origem animal até! E igualmente daquilo que também pode estar envolvido, em termos de experimentação em cobaias, em vários dos produtos corriqueiros que utilizamos no quotidiano. Ou ainda, como tanto agora se diz, o consumidor tem o dever de estar informado o mais possível para assim fazer as suas escolhas conscientes. Sejam elas quais forem, cada um deve decidir por si em liberdade e de acordo com a sua própria sensibilidade ou sentido de compaixão pela vida alheia.

Aliás, e só para terminar, basta ver aquilo que o esclarecimento público e a luta activa dos defensores dos direitos animais conseguiram fazer no caso do foie gras, por exemplo, e também na forte diminuição do consumo da carne de vitela, produzida em condições antinaturais e que, na prática, consubstanciam métodos de tortura animal. Idem aspas para os crustáceos - lavagantes e lagostas - cozinhados vivos... and so on!

Por isso, o 4º princípio ético é muitíssimo importante - não somos responsáveis só por aquilo que fazemos, mas também por aquilo que poderíamos ter impedido - e deveras ele até tem tradução prática a nível da lei, como é sabido. Quem não evita um crime, podendo fazê-lo, é afinal um colaborador passivo que também deve ser responsabilizado, da mesma forma que um receptador de objectos roubados ou quem se compraz com material pedófilo ou mesmo pornografia violenta, sabendo que o mesmo é produzido com recurso à perda de liberdade e autonomia ou sofrimento alheio.

Logo, creio que pouco a pouco lá iremos indo e algumas mudanças positivas sempre se vão registando. Depois, o simples facto da discussão pública e desassombrada destes temas é já um significativo avanço, na tentativa de compreensão e conciliação das diversas posições divergentes e igualmente legítimas.

Quem sabe, talvez um dia até se possa alargar tanto mais o célebre aforismo de Terêncio, pois se o homo sapiens também faz parte do reino animal, então se poderá quiçá proclamar:

Animal humano sou, e nada do que é animal me é estranho!

João Carlos disse...

Em relação à Carta dos Direitos dos Animais, que o Leprechaun fala e de que crê que não deve demorar muito, embora não sendo eu crente, é caso para dizer, que Deus o oiça. Infelizmente, como em muitas outras coisas fazemos questão de estarmos sempre na cauda do mundo dito desenvolvido. Em relação a esta questão dos direitos dos animais, não é excepção, e o fosso entre o seu tratamento e reconhecimento deve ser menor entre nós e qualquer país do 3º mundo do que os restantes países desenvolvidos. Aliás, pelo que me consta, isso nem faz parte da agenda política dos partidos deste país, tal como não há praticamente leis que punam seja quem for por massacrar animais (dos humanos sabemos nós como funcionam quanto mais!).
Em todo o caso, devo acrescentar nesta questão que, actualmente estamos a criar uma consciencialização cada vez maior em matéria de protecção do meio ambiente. Mas ainda não percebemos, por exemplo, que devíamos reduzir o consumo de carne, porque simplesmente, ela é responsável por enormes danos no ambiente, porque alimentar uma vaca ou um porco consome níveis elevadíssímos de água. A água é um bem cada vez mais escasso, mas continua-se a promover o consumo de carne, simplesmente porque achamos que temos o direito de comer carne. Depois,são necessários enormes quantidades de terras para as pastagens e, por outro lado, enormes quantidades de rações feitas do cereal, que é essencial à alimentação humana. Sabemos o que se está a passar com a escassez e custo deste bem. O gado desvasta enormes quantidades de terras que se tornam inférteis em muitas zonas devido à intensidade do pastoreio para produzir carne abundantemente em massa desequilibrando ecossistemas naturais e, em muitas zonas, levando ao abate de árvores e florestas. Se passassemos a consumir menos carne resolveríamos dois problemas: A consciência que se provocava menor sofrimento e dor e, por outro lado, um ambiente mais saudável e sustentável, para além de reduzirmos a probabilidade de conflitos por causa por exemplo, da água no futuro. Mas lá diz o velho ditado «cada um deita-se na cama que faz», neste caso, nós´espécie humana, da nossa altives superior arriscamo-nos «a deitarmo-nos na cama que estamos a fazer». Resta-nos apelarmos a Deus nosso senhor e quem não for crente talvez no dogamtismo extremista de que a ciência tem resposta a tudo. Haja milagres.

João Carlos disse...

Corrijo: altivez e dogmatismo

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...