quarta-feira, 16 de abril de 2008

O nosso império é a língua portuguesa

A crítica certeira do historiador Rui Ramos, publicada hoje no Público, tanto se aplica a algumas posições contrárias ao acordo como à posição favorável.

Já venho tarde, mas não queria deixar de saudar a boa nova. Não me refiro à baixa do IVA, anunciada pelo ministro das Finanças, mas à nossa "expansão", prevista pelo ministro da Cultura. É verdade: vamos expandir-nos. Está para chegar um Portugal maior. Talvez a sua população e riqueza até venham a diminuir, mas que importa? Temos uma arma secreta para conquistar o mundo: aquela que Fernando Pessoa insinuou maliciosamente ser a "pátria" dele -- a língua portuguesa. É o que nos prometem os crentes do Acordo Ortográfico: um Reich na ponta da língua.

Não vou discutir ortografia, mas os termos curiosos em que a temos debatido nas últimas semanas. De um lado, falaram-nos do "c" de "facto" com a intransigência possessiva que os sérvios dedicam ao Kosovo, e avaliou-se o Acordo "estrategicamente", como se estivéssemos perante uma nova partilha de África, com o Brasil no papel oitocentista da Inglaterra. Do outro lado, recomendaram-nos a nova grafia como a oportunidade de não "ficar aqui como uma espécie de dialecto" (horror), e podermos desfilar ao lado do Brasil na "afirmação de um poder à escala mundial" (segundo o nosso entusiasmado embaixador em Brasília).

Acho comovedor este uso despudorado da linguagem típica do imperialismo ("expansão", "estratégia", "afirmação do poder à escala mundial", etc.) para nos referirmos à língua que partilhamos com mais umas dezenas de milhões de pessoas de outras origens e nacionalidades. Quando nos puxam pela língua, acontece-nos isto: de repente, este país pachorrento e decadente revela-se uma potência beligerante, ciosa das suas aquisições e decidida a novas conquistas. Sim, porque através da "pátria" de Pessoa, nós somos grandes. Tal como a casa da velha canção brasileira, o nosso "império" não tem soldados, nem dinheiro, mas é feito com muito esmero -- da língua que outros usam na América, na África e (segundo gostamos de acreditar) na Ásia. E assim prosseguimos a nossa expansão ultramarina, por mais que ninguém dê por isso.

Definitivamente, continuamos a não ser um país pequeno. No tempo do Estado Novo, isso provava-se com os mapas das colónias; agora, pacífica e correctamente instalados em democracia, evocamos a "quarta língua a nível mundial", e os seus "200 milhões" de súbditos. É compreensível. No fundo, há algo de deprimente nas nações reduzidas. George Simenon dizia que ser belga é como não ter país. E talvez por isso, muita gente está preparada para lhe atribuir a ele ou a Hergé, tal como aos suíços Rousseau e Constant, uma pátria (a França) mais consentânea com a sua grandeza individual. As elites portuguesas, que durante a Monarquia sonharam fazer aqui um país tão próspero como a Bélgica e durante a I República tão democrático como a Suíça, nunca se conformaram com o estatuto de pequeno país que era o dessas nações, apesar de liberais e ricas. E depois de perdida a soberania com que nos ampliámos em África, agarrámo-nos à língua, a ver se por aí continuávamos a fazer uma sombra grande no mundo.

Não nos fica mal desejarmos ser muito mais do que aquilo que somos. O que talvez seja menos recomendável é o modo como usamos esta grandeza imaginária para nos pouparmos ao reflexo da nossa realidade. A Europa pesa cada vez menos no mundo, e Portugal pesa cada vez menos na Europa. A língua é a balança avariada com que nos atribuímos robustez. Infelizmente, tudo o que assim sobe acaba por descer: eis que a Venezuela proíbe às suas crianças os Simpson e quer (como compensação?) ensinar-lhes português -- e logo o nosso Governo tem de confessar que nos falta dinheiro e pessoal para acompanhar o último capricho de Chávez.

O Brasil, muito citado acerca do Acordo Ortográfico, forma outro capítulo pungente do nosso irrealismo. Nunca percebemos que a ignorância mútua, ritualmente lamentada, não está à mercê de um "acordo". Fingimos desconhecer o fenómeno do "nativismo" no Brasil, que faz com que por cada Gilberto Freyre haja dez Sérgio Buarque de Holanda, ardendo em fervor antilusitano. Imaginamos que a incapacidade dos livros portugueses para hoje chegarem onde chegou Cabral em 1500 se deve simplesmente ao "c" de "facto". Nem sequer admitimos que o Brasil, no fundo, não nos importa demasiado. Vamos lá de férias: quantos aproveitam para ir ao teatro ou às livrarias? E quantos conhecem a política ou os escritores mais recentes do Brasil? A verdade é que o Brasil ainda não é suficientemente interessante para nós, e nós já não somos suficientemente interessantes para o Brasil. O resto é conversa de um império de conversa.

Rui Ramos

18 comentários:

Anónimo disse...

Ena, que nível tão alto de alheamento e desconhecimento da realidade linguística nacional e internacional.

Este artigo faz um raciocínio forçado e rebuscado para tentar deitar abaxo portugal pelo seu ego grande em oposição à sua relevância deteriorada.
Não é de todo válido, assume que sabe o que os portugueses sentem e pensam e que, pior do que isso, que sabe o que deviam pensar.
Para apimentar atira umas referencias ríduclas ao ponto de serem cómicas a coisas como a descoberta do brasil ou ao microsoft word.

Uma das coisas que não me orgulho em portugal é a imprensa que tem um nível médio muito baixo no que à sua qualidade concerne. Este texto é um bom exemplo da altivez intelectual com que a imprensa é praticada em portugal. Depois resulta em chalaça, dada a ignorancia do autor no assunto em questão.

Reescreva isto, diga o que quiser dizer e apresente argumentos técnicos válidos. Com este texto só tira credebilidade ao seu ponto de vista.
Ah... e se quer um exemplo de uma coisa que vai realmente mal em Portugal, olhe para o que escreveu e compare com a forma séria e sem rodeios como este assunto seria abordado noutros países.

Victor Gonçalves disse...

Desidério faz agora psicanálise, uma espécie de psicanálise cultural. O acordo ou desacordo ortográfico não tem, parece-me, o alcance que lhe quer dar. Mas serve de pano de fundo à necessidade, que também eu tenho, de verbalizar algumas das sinapses que vão acontecendo.

Anónimo disse...

Gostei do texto e estou de acordo com todas as palavras que foram ditas. Sou portugues e a mim ninguem me perguntou se estava de acordo com a mudança da lingua.

Anónimo disse...

Este autor não tem credebilidade!

Anónimo disse...

Eu gostei do texto e subscrevo na totalidade.

Anónimo disse...

De fato sinto-me úmido!!!

Já agora decifrem lá esta expressão brasileira:

"Liga os pisca-alerta e baixa os pino!"

TRADUÇÃO:
"Liga os 4 piscas e fecha o carro!!"

Filipe Moura disse...

Não posso estar mais em desacordo.

"A Europa pesa cada vez menos no mundo, e Portugal pesa cada vez menos na Europa."

Isso é o que "vocês" querem. "Vocês" (Desidério Murcho incluído), os opositores à Constituição Europeia, os defensores da invasão do Iraque, os "atlânticos", os defensores da "liberdade" em geral (é como a direita se apresenta presentemente: como defensora da "liberdade").

"Vamos lá de férias: quantos aproveitam para ir ao teatro ou às livrarias? E quantos conhecem a política ou os escritores mais recentes do Brasil?"

Eu interesso-me muito pela cultura e política brasileiras e nunca lá estive. O Rui Ramos fala da "burguesia", a mesma que "quer ir a Nova Iorque fazer compras" (mas não entra num museu), como falava o Cazuza.
Repito: não posso estar mais em desacordo.

Orlando disse...

Subscrevo inteiramente o texto.
Vou escrever como bem entender, como sempre fiz. Quem decide como a língua evolui são as pessoas.

Anónimo disse...

" Portugal é um país que fala uma
língua que a gente (do Brasil) até entende"

Orlandelli

Desidério Murcho disse...

Ao contrário do que diz o leitor Filipe Moura, não só não sou de direita, como sempre me opus à invasão do Iraque — e, além disso, nem sequer sou o autor do artigo de Rui Ramos, que obviamente acerta onde dói a muita gente. É verdade que legislar sobre a língua é uma medida defensável pela esquerda — mas apenas pela esquerda totalitária, contra a qual qualquer pessoa genuinamente de esquerda tem de se posicionar.

Luís Bugalhão disse...

já então eu, modesto português que nunca foi ao brasil, assumidamente de esquerda, sou absolutamente contra o acordo.

subscrevo não só este artigo, como as posições de gente cm o vasco graça moura, eminente português e assumidamente de direita.

e não entendo o que é que a guerra do iraque tem a ver com a nossa língua.

por mim era avançar já para os idiomas português, brasileiro, angolano, moçambicano e pouco mais (que os restantes irmãos de áfrica e, vá lá 'tá bem, ásia, faz tempo que não ligam nenhuma à nossa língua), em vez de acordos que pretendem manter o português como 'língua viva' decretando-lhe a morte, às mãos de 'elefantes que querem esmagar minhocas'. mas isso é a minha opinião de português, não a de eminência, nem a de esquerdista (seja lá o que isso queira dizer), nem a de jornalista.

bom e esclarecedor post sr desidério murcho.

Victor Gonçalves disse...

Desculpe Rui Ramos, o artigo é seu e apesar de discordar das ideias quero felicitá-lo pelo estilo. Quando o li a primeira vez senti uma estranheza que não consegui decifrar: a sensação de que Desidério Murcho estava a escrever muito melhor. Pensei até pedir-lhe o filtro mágico que tinha permitido essa evolução. Mas afinal não há milagres, Desidério continuará, há aqui alguma justiça divina, a ter o estilo arruaceiro que lhe é próprio.

Desidério Murcho disse...

Obrigado pela atenção esmerada que dispensa ao meu estilo, Dioniso, e no qual obviamente se nota a minha origem operária. Vou tentar não sair da rua.

Anónimo disse...

Sinto cada vez mais vergonha em ser português. Sinto que não tenho nacionalidade

Anónimo disse...

777ALFAÓMEGA88

O tempo que se perde e que andamos entretidos com leis de "TRETA".

É o aspecto sublime de todos os politiqueiros.

Enquanto andamos entretidos com umas "cenas", eles politiqueiros riem-se, divertem-se e não tratam daquilo que realmente é importante.
Que aliás eles não estão interessados em resolver e meter-se em trabalhos.

Deixem a língua viver e o que dá vida à língua é exactamente a diferença ou as variantes como eles dizem.

Que os politiqueiros se entretenham com outras coisas e se querem continuar a fazer nada então há um apendice bem localizado que pode ser utilizado para fins de puro prazer.

Assim como assim não estão lá para outra coisa.

Victor Gonçalves disse...

Desidério não me leve a mal, como sou funcionário público também frequento a rua.

Anónimo disse...

Aprecio ver um filme no Original, sem legendas. Como só falo quatro idiomas, e no Francês domino pouco vocabulário fico-me pelos filmes Portuguêses, Espanhois e Anglo-Saxonicos. Com os livros é a mesma coisa, nunca me passaria pela cabeça ler jorge Amado em tradução para Portugal.
Claro que para quem lê a "Lux" ou a "Caretas" o acordo vai ser de uma útilidade indiscutivel.

de.puta.madre disse...

Vá lá Desidério ... TEM MUITO NÍVEL O TEU BLOG ( E DOS OUTROS SENHORES TB) POR NÃO TEREM COMENTÁRIOS MODERADOS! PARABÉNS À INTELIGÊNCIA!!!
MAS AQUI VAI:

Se a questão é política para quê falar do "c" e "p" e etc??
Não percebo!
A questão é mesmo o que ganha PORTUGAL em CEDER ao Brasil que, por sua vez, IMPÔS estas mudanças? Qual a LEGITIMIDADE POLÍTICA do Brasil (em termos da sua HEGEMONIA Internacional) para Exigir ACATO de PORTUGAL ao que lhe parece conveniente convencionar? Pelo representante do SIM ao Acordo ( Carlos Reis) verificamos que não existia SERIEDADE Linguística ( exemplificado em directo na RTP! P.Ex.: Como é que um Açoriano tem a desfaçatez de dizer que é para aproximar a grafia da fala! Para nos facilitar a vida!! Ele está redondamente a brincar. Porque como Açoriano sabe perfeitamente que isso é uma Bizarria!!). Nós estamos somente e repito somente a aproximar a grafia PORTUGUESA da do Brasil! É só isso! Os “c” e “p” é mesmo só para nos distrair, fazer de conta que o assunto é sério! Foi Seriamente tratado! Quando pelo que assistimos na praça pública(!) país que se preze fá-lo (!) Não consultamos NENHUM FILÓSOFO! … Pois! É uma comunidade Invisível! mas não perguntem ao Barata Moura ( P.F.V). O que esta questão nos demonstrou também é que temos mais uma série de medíocres que se fazem passar por escritores e poetas … e n escrevo mais … vale

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