A crítica certeira do historiador Rui Ramos, publicada hoje no Público, tanto se aplica a algumas posições contrárias ao acordo como à posição favorável.
Já venho tarde, mas não queria deixar de saudar a boa nova. Não me refiro à baixa do IVA, anunciada pelo ministro das Finanças, mas à nossa "expansão", prevista pelo ministro da Cultura. É verdade: vamos expandir-nos. Está para chegar um Portugal maior. Talvez a sua população e riqueza até venham a diminuir, mas que importa? Temos uma arma secreta para conquistar o mundo: aquela que Fernando Pessoa insinuou maliciosamente ser a "pátria" dele -- a língua portuguesa. É o que nos prometem os crentes do Acordo Ortográfico: um Reich na ponta da língua.
Não vou discutir ortografia, mas os termos curiosos em que a temos debatido nas últimas semanas. De um lado, falaram-nos do "c" de "facto" com a intransigência possessiva que os sérvios dedicam ao Kosovo, e avaliou-se o Acordo "estrategicamente", como se estivéssemos perante uma nova partilha de África, com o Brasil no papel oitocentista da Inglaterra. Do outro lado, recomendaram-nos a nova grafia como a oportunidade de não "ficar aqui como uma espécie de dialecto" (horror), e podermos desfilar ao lado do Brasil na "afirmação de um poder à escala mundial" (segundo o nosso entusiasmado embaixador em Brasília).
Acho comovedor este uso despudorado da linguagem típica do imperialismo ("expansão", "estratégia", "afirmação do poder à escala mundial", etc.) para nos referirmos à língua que partilhamos com mais umas dezenas de milhões de pessoas de outras origens e nacionalidades. Quando nos puxam pela língua, acontece-nos isto: de repente, este país pachorrento e decadente revela-se uma potência beligerante, ciosa das suas aquisições e decidida a novas conquistas. Sim, porque através da "pátria" de Pessoa, nós somos grandes. Tal como a casa da velha canção brasileira, o nosso "império" não tem soldados, nem dinheiro, mas é feito com muito esmero -- da língua que outros usam na América, na África e (segundo gostamos de acreditar) na Ásia. E assim prosseguimos a nossa expansão ultramarina, por mais que ninguém dê por isso.
Definitivamente, continuamos a não ser um país pequeno. No tempo do Estado Novo, isso provava-se com os mapas das colónias; agora, pacífica e correctamente instalados em democracia, evocamos a "quarta língua a nível mundial", e os seus "200 milhões" de súbditos. É compreensível. No fundo, há algo de deprimente nas nações reduzidas. George Simenon dizia que ser belga é como não ter país. E talvez por isso, muita gente está preparada para lhe atribuir a ele ou a Hergé, tal como aos suíços Rousseau e Constant, uma pátria (a França) mais consentânea com a sua grandeza individual. As elites portuguesas, que durante a Monarquia sonharam fazer aqui um país tão próspero como a Bélgica e durante a I República tão democrático como a Suíça, nunca se conformaram com o estatuto de pequeno país que era o dessas nações, apesar de liberais e ricas. E depois de perdida a soberania com que nos ampliámos em África, agarrámo-nos à língua, a ver se por aí continuávamos a fazer uma sombra grande no mundo.
Não nos fica mal desejarmos ser muito mais do que aquilo que somos. O que talvez seja menos recomendável é o modo como usamos esta grandeza imaginária para nos pouparmos ao reflexo da nossa realidade. A Europa pesa cada vez menos no mundo, e Portugal pesa cada vez menos na Europa. A língua é a balança avariada com que nos atribuímos robustez. Infelizmente, tudo o que assim sobe acaba por descer: eis que a Venezuela proíbe às suas crianças os Simpson e quer (como compensação?) ensinar-lhes português -- e logo o nosso Governo tem de confessar que nos falta dinheiro e pessoal para acompanhar o último capricho de Chávez.
O Brasil, muito citado acerca do Acordo Ortográfico, forma outro capítulo pungente do nosso irrealismo. Nunca percebemos que a ignorância mútua, ritualmente lamentada, não está à mercê de um "acordo". Fingimos desconhecer o fenómeno do "nativismo" no Brasil, que faz com que por cada Gilberto Freyre haja dez Sérgio Buarque de Holanda, ardendo em fervor antilusitano. Imaginamos que a incapacidade dos livros portugueses para hoje chegarem onde chegou Cabral em 1500 se deve simplesmente ao "c" de "facto". Nem sequer admitimos que o Brasil, no fundo, não nos importa demasiado. Vamos lá de férias: quantos aproveitam para ir ao teatro ou às livrarias? E quantos conhecem a política ou os escritores mais recentes do Brasil? A verdade é que o Brasil ainda não é suficientemente interessante para nós, e nós já não somos suficientemente interessantes para o Brasil. O resto é conversa de um império de conversa.
Rui Ramos
quarta-feira, 16 de abril de 2008
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18 comentários:
Ena, que nível tão alto de alheamento e desconhecimento da realidade linguística nacional e internacional.
Este artigo faz um raciocínio forçado e rebuscado para tentar deitar abaxo portugal pelo seu ego grande em oposição à sua relevância deteriorada.
Não é de todo válido, assume que sabe o que os portugueses sentem e pensam e que, pior do que isso, que sabe o que deviam pensar.
Para apimentar atira umas referencias ríduclas ao ponto de serem cómicas a coisas como a descoberta do brasil ou ao microsoft word.
Uma das coisas que não me orgulho em portugal é a imprensa que tem um nível médio muito baixo no que à sua qualidade concerne. Este texto é um bom exemplo da altivez intelectual com que a imprensa é praticada em portugal. Depois resulta em chalaça, dada a ignorancia do autor no assunto em questão.
Reescreva isto, diga o que quiser dizer e apresente argumentos técnicos válidos. Com este texto só tira credebilidade ao seu ponto de vista.
Ah... e se quer um exemplo de uma coisa que vai realmente mal em Portugal, olhe para o que escreveu e compare com a forma séria e sem rodeios como este assunto seria abordado noutros países.
Desidério faz agora psicanálise, uma espécie de psicanálise cultural. O acordo ou desacordo ortográfico não tem, parece-me, o alcance que lhe quer dar. Mas serve de pano de fundo à necessidade, que também eu tenho, de verbalizar algumas das sinapses que vão acontecendo.
Gostei do texto e estou de acordo com todas as palavras que foram ditas. Sou portugues e a mim ninguem me perguntou se estava de acordo com a mudança da lingua.
Este autor não tem credebilidade!
Eu gostei do texto e subscrevo na totalidade.
De fato sinto-me úmido!!!
Já agora decifrem lá esta expressão brasileira:
"Liga os pisca-alerta e baixa os pino!"
TRADUÇÃO:
"Liga os 4 piscas e fecha o carro!!"
Não posso estar mais em desacordo.
"A Europa pesa cada vez menos no mundo, e Portugal pesa cada vez menos na Europa."
Isso é o que "vocês" querem. "Vocês" (Desidério Murcho incluído), os opositores à Constituição Europeia, os defensores da invasão do Iraque, os "atlânticos", os defensores da "liberdade" em geral (é como a direita se apresenta presentemente: como defensora da "liberdade").
"Vamos lá de férias: quantos aproveitam para ir ao teatro ou às livrarias? E quantos conhecem a política ou os escritores mais recentes do Brasil?"
Eu interesso-me muito pela cultura e política brasileiras e nunca lá estive. O Rui Ramos fala da "burguesia", a mesma que "quer ir a Nova Iorque fazer compras" (mas não entra num museu), como falava o Cazuza.
Repito: não posso estar mais em desacordo.
Subscrevo inteiramente o texto.
Vou escrever como bem entender, como sempre fiz. Quem decide como a língua evolui são as pessoas.
" Portugal é um país que fala uma
língua que a gente (do Brasil) até entende"
Orlandelli
Ao contrário do que diz o leitor Filipe Moura, não só não sou de direita, como sempre me opus à invasão do Iraque — e, além disso, nem sequer sou o autor do artigo de Rui Ramos, que obviamente acerta onde dói a muita gente. É verdade que legislar sobre a língua é uma medida defensável pela esquerda — mas apenas pela esquerda totalitária, contra a qual qualquer pessoa genuinamente de esquerda tem de se posicionar.
já então eu, modesto português que nunca foi ao brasil, assumidamente de esquerda, sou absolutamente contra o acordo.
subscrevo não só este artigo, como as posições de gente cm o vasco graça moura, eminente português e assumidamente de direita.
e não entendo o que é que a guerra do iraque tem a ver com a nossa língua.
por mim era avançar já para os idiomas português, brasileiro, angolano, moçambicano e pouco mais (que os restantes irmãos de áfrica e, vá lá 'tá bem, ásia, faz tempo que não ligam nenhuma à nossa língua), em vez de acordos que pretendem manter o português como 'língua viva' decretando-lhe a morte, às mãos de 'elefantes que querem esmagar minhocas'. mas isso é a minha opinião de português, não a de eminência, nem a de esquerdista (seja lá o que isso queira dizer), nem a de jornalista.
bom e esclarecedor post sr desidério murcho.
Desculpe Rui Ramos, o artigo é seu e apesar de discordar das ideias quero felicitá-lo pelo estilo. Quando o li a primeira vez senti uma estranheza que não consegui decifrar: a sensação de que Desidério Murcho estava a escrever muito melhor. Pensei até pedir-lhe o filtro mágico que tinha permitido essa evolução. Mas afinal não há milagres, Desidério continuará, há aqui alguma justiça divina, a ter o estilo arruaceiro que lhe é próprio.
Obrigado pela atenção esmerada que dispensa ao meu estilo, Dioniso, e no qual obviamente se nota a minha origem operária. Vou tentar não sair da rua.
Sinto cada vez mais vergonha em ser português. Sinto que não tenho nacionalidade
777ALFAÓMEGA88
O tempo que se perde e que andamos entretidos com leis de "TRETA".
É o aspecto sublime de todos os politiqueiros.
Enquanto andamos entretidos com umas "cenas", eles politiqueiros riem-se, divertem-se e não tratam daquilo que realmente é importante.
Que aliás eles não estão interessados em resolver e meter-se em trabalhos.
Deixem a língua viver e o que dá vida à língua é exactamente a diferença ou as variantes como eles dizem.
Que os politiqueiros se entretenham com outras coisas e se querem continuar a fazer nada então há um apendice bem localizado que pode ser utilizado para fins de puro prazer.
Assim como assim não estão lá para outra coisa.
Desidério não me leve a mal, como sou funcionário público também frequento a rua.
Aprecio ver um filme no Original, sem legendas. Como só falo quatro idiomas, e no Francês domino pouco vocabulário fico-me pelos filmes Portuguêses, Espanhois e Anglo-Saxonicos. Com os livros é a mesma coisa, nunca me passaria pela cabeça ler jorge Amado em tradução para Portugal.
Claro que para quem lê a "Lux" ou a "Caretas" o acordo vai ser de uma útilidade indiscutivel.
Vá lá Desidério ... TEM MUITO NÍVEL O TEU BLOG ( E DOS OUTROS SENHORES TB) POR NÃO TEREM COMENTÁRIOS MODERADOS! PARABÉNS À INTELIGÊNCIA!!!
MAS AQUI VAI:
Se a questão é política para quê falar do "c" e "p" e etc??
Não percebo!
A questão é mesmo o que ganha PORTUGAL em CEDER ao Brasil que, por sua vez, IMPÔS estas mudanças? Qual a LEGITIMIDADE POLÍTICA do Brasil (em termos da sua HEGEMONIA Internacional) para Exigir ACATO de PORTUGAL ao que lhe parece conveniente convencionar? Pelo representante do SIM ao Acordo ( Carlos Reis) verificamos que não existia SERIEDADE Linguística ( exemplificado em directo na RTP! P.Ex.: Como é que um Açoriano tem a desfaçatez de dizer que é para aproximar a grafia da fala! Para nos facilitar a vida!! Ele está redondamente a brincar. Porque como Açoriano sabe perfeitamente que isso é uma Bizarria!!). Nós estamos somente e repito somente a aproximar a grafia PORTUGUESA da do Brasil! É só isso! Os “c” e “p” é mesmo só para nos distrair, fazer de conta que o assunto é sério! Foi Seriamente tratado! Quando pelo que assistimos na praça pública(!) país que se preze fá-lo (!) Não consultamos NENHUM FILÓSOFO! … Pois! É uma comunidade Invisível! mas não perguntem ao Barata Moura ( P.F.V). O que esta questão nos demonstrou também é que temos mais uma série de medíocres que se fazem passar por escritores e poetas … e n escrevo mais … vale
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