quinta-feira, 6 de setembro de 2007

“THE MEASURE OF A MAN”


Sidney Poitier, o jovem sedutor que eu conheci em Adivinhem quem vem para Jantar, esse belíssimo filme de Stanley Kramer, datado de 1967, publicou, aos oitenta anos, um livro de memórias, cujo título é The Measure of A Man: A Spiritual Autobiography (New York: Simon & Schuster, 2007)

Como não podia deixar de ser, aí conta como se tornou actor. É uma história magnífica em que a educação e a determinação de a conseguir ocupam o lugar central. Vale a pena pensar nela.

Sidney nasceu em 1924 em Miami e cresceu numa pequena aldeia das Bahamas, os seus pais eram agricultores e ele era o sétimo filho. Começou a trabalhar por volta dos doze ou treze anos para ajudar a família e passados uns três anos foi sozinho para a grande Nova Iorque. Depois de um ano no exército – para sobreviver ao duro Inverno da cidade, conseguiu alistar-se, usando o velho estratagema de declarar uma idade que ainda não tinha –, arranjou emprego a lavar pratos.

Um dia, teve conhecimento duma audição para actores de teatro e pensou que representar não deveria ser mais difícil do que o trabalho que fazia, e lá foi ao local indicado. Passaram-lhe o guião da peça para as mãos mas ele, que quase não sabia ler, só a custo soletrou as primeiras palavras. De imediato e com maus modos, o responsável pela selecção escorraçou-o.

Poitier refere que este acontecimento foi crucial na sua vida: contra todas as possibilidades, decidiu mesmo ser actor, percebendo, desde logo, que tinha de fazer qualquer coisa para isso. E o que fez? Juntou todo o dinheiro que pôde e comprou um rádio pequeno para ouvir e treinar a língua bem falada: escutava com particular atenção um certo locutor com pronúncia inglesa e repetia as suas palavras e frases. Um empregado judeu, muito mais velho, ao ver o seu interesse por aprender, ensinou-o a ler fluentemente e a escrever com correcção.

E foi assim que Sidney Poitier pôde começar a nascer para a arte de representar e para as aprendizagens que ela requer. Arte que assumiu com "dignidade, estilo e inteligência" e, por isso, lhe foi concedido um Óscar honorário, entre muitos outros prémios importantes que recebeu durante a sua carreira.
Este reconhecimento não significa, no entanto, que a figura de Poitier seja pacífica. Efectivamente, em alguns círculos, a sua pose de cavalheiro, no seu inglês perfeito, aceitando papéis não “engagés” e convivendo com diferentes tipos de gente, tem deixado perplexos aqueles que preferem dividir a humanidade em grupos estereotipados, fixos, fechados em si próprios – seja essa divisão feita em função de critérios, sociais, étnicos, culturais, anatómicos, etc. –, esperando que as pessoas desses grupos se comportem exactamente como se espera, ou se dita. Em concreto, têm-no acusado por diversas vezes, e algumas de forma violenta, de se afastar das suas origens – supostamente africanas, apesar de ter nascido nos Estados Unidos da América – e de se aproximar do modo de falar e de se comportar dos ocidentais, numa tentativa de conquistar o público branco.

Poitier, pelo seu exemplo de vida, e neste livro, pela sua escrita, dá a entender que se considera, antes de mais, como um homem, ou, melhor, uma pessoa que, com toda a legitimidade, faz parte desse vasto grupo que é a humanidade, e isto sem renegar a pertença a outros grupos mais restritos com os quais também se identifica. Ou seja, dá a entender que, independentemente das características com que nascemos e do contexto em que nascemos, temos o direito fundamental de aprender. Dá a entender também que aquilo que aprendemos nos abre possibilidades de escolha, para sermos e fazermos aquilo que desejamos, ou seja, para sermos livres.

Para os leitores que desejarem aprofundar esta ideia, recomendo vivamente o livro do filósofo espanhol Fernando Savater, O valor de ensinar, que está publicado em Portugal pela editora Presença, em especial, o tópico Educar é universalizar (páginas, 102-116).

Imagens retiradas de:
http://www.lovefilm.com/lovefilm/images/products/4/6904-large.jpg
http://www.madisonpubliclibrary.org/madreads/wp-content/uploads/2007/03/sydney.gif

2 comentários:

Anónimo disse...

Pela sua perseverança relembra a figura de Demóstenes que se tornou um orador exímio depois de passar por uma via crucis dada a dificuldade em articular as palavras e por alguma gaguês. Venceu a barreira treinando-se espartanamente frente ao mar, a boca cheia de seixos, declamando discursos para plateias inexistentes.
Na minha carreira de professor do secundário dei-me ao prazenteiro trabalho de ensaiar peças de Gil Vicente com os alunos que se oferecessem voluntariamente para participar ns festas de final do ano. Um deles era gago o que me deixou entre a espada e a parede, mas aceitei-o. Qual não foi o meu espanto ao verificar durante os ensaios que nunca gaguejava. Fiquei a saber que um gago que decore os papéis se torna totalmente desinibido. Fiquei igualmente a saber então porque é que o político Demóstenes deixava de gaguejar: ensaiava os discursos na praia. O que não lhe retira o mérito

Fátima André disse...

Informação adicional para quem pretenda adquirir o livro "O valor de ensinar" de Fernando Savater, também está publicado pela Editora Dom Quixote, edição de 2006.

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