domingo, 15 de junho de 2008

Cor, Controvérsia, ADN e Stephen Jay Gould



Henry Louis Gates Jr., que dirige o departamento de estudos afro-americanos da Universidade Harvard, entrevistou James Watson a propósito das declarações que este prestou ao Sunday Times em Outubro do ano passado. A entrevista pode ser lida na íntegra ou numa versão editada na página da revista de que é editor, «The Root». Esta, entre análises de notícias de uma perspectiva da comunidade negra, oferece aos seus leitores uma secção que lhes permite traçar a sua árvore genealógica através do AfricanDNA.com fundado por Gates, que, como confessa, sempre se sentiu fascinado com as suas raízes.

Gates foi o anfitrião de duas séries da PBS intituladas African American Lives, que analisaram a genealogia de afro-americanos célebres como Morgan Freeman, Chris Tucker, Whoopi Goldberg, Sarah Lawrence-Lightfoot e Oprah Winfrey. A árvore genealógica de Gates foi igualmente traçada e este descobriu atónito não passar de uma lenda familiar a história da origem da contribuição branca para a família. A análise do ADN de Gates, incluindo o ADN mitocondrial, revelou nunca ter ocorrido a violação da bisavó escrava que era contada. Na realidade, Gates descobriu que a sua componente «caucasiana» deriva da parte materna através de uma avó ashkenazim.

Achei interessante que alguém que procura tão afincadamente a «verdade» histórica no ADN, não obstante as consequências, tenha endereçado o que chamou «uma pergunta moral» a Watson, questionando se se deve evitar a investigação sobre uma possível origem genética da inteligência por isso poder confirmar «os piores pesadelos» de algumas pessoas, isto é, pode indicar que algumas comunidades são diferentes geneticamente em termos de inteligência.

Na realidade, «os piores pesadelos» de algumas pessoas já são veiculados há muito. O debate sobre as bases da inteligência é muito anterior ao advento da genética ou mesmo da ciência e tem tomado várias formas ao longo dos séculos como forma de justificação da discriminação das «raças» (ou sexo) inferiores.

Uma dessas formas é o «determinismo» biológico que emergiu nos Estados Unidos como uma resposta aos movimentos sociais dos anos sessenta. Em 1969, Arthur Jensen, professor em Stanford, argumentou que as diferenças de QI entre brancos e negros são geneticamente baseadas e inalteráveis. Dois anos depois, o psicólogo de Harvard Richard Herrnstein afirmou que o estatuto sócio-económico é uma função directa da inteligência herdada e que a «tendência para o desemprego» estaria tão determinada como a «tendência para ter maus dentes».

Em 1975, Edward Wilson publicou o livro «Sociobiology», cujos primeiros 26 capítulos tratam da organização social dos restantes animais e são unanimemente aplaudidos. Mas no 27º - e primeiro e único controverso - capítulo, Wilson estendeu as conclusões que a observação de outros animais lhe permitiram e extrapolou-as para os humanos argumentando que características como a agressão e a xenofobia são geneticamente baseadas. Como nota de curiosidade, num artigo publicado em 12 de Outubro de 1975 na New York Times Magazine, Wilson afirmou que «o preconceito genético é suficientemente intenso para causar uma divisão significativa do trabalho até mesmo nas mais livres e igualitárias sociedades futuras. Assim, até com uma educação idêntica e acesso igual a todas as profissões, é provável que os homens representem um papel desproporcionado na vida política, negócios e ciência».

Uns anos depois, a 10 de Abril de 1978, a revista Business Week apresentava um artigo intitulado «Uma defesa genética do mercado livre» em que se podia ler: «o interesse pessoal é a força motriz da economia porque está inserido nos genes de cada indivíduo. Sociobiologia significa que indivíduos não podem ser moldados para se ajustarem em sociedades socialistas sem uma tremenda perda de eficiência. Os bioeconomistas dizem que estão fadados ao fracasso os programas de governo que forçam os indivíduos a serem menos competitivos e egoístas do que eles são geneticamente programados».

Mas sem dúvida que o mais polémico e conhecido elemento nesta «guerra» de QI's é o livro de 1994 «The Bell Curve:Intelligence and Class Structure in American Life», escrito por Richard Herrnstein e Charles Murray.

O livro, descrito por como Stephen Jay Gould como «um manifesto da ideologia conservadora», foi rebatido noutro livro, «The Bell Curve Wars: Race, Intelligence, and the Future of America» em que participaram, entre outros, Gates e Gould.

Para quem leu «A Falsa Medida do Homem (The mismeasure of Man)» (publicado em 1981), a posição de Gould não é surpresa. De facto, Gould publicou uma edição revista do livro em 1996 de forma a mostrar o livro de Herrnstein e Murray como um livro elitista (no mau sentido) e «vazio em factos sérios ou argumentos novos». Os autores omitiram factos e usaram erroneamente métodos estatísticos para chegar às suas conclusões racistas num texto que pretendia a eliminação dos programas de providência social, nomeadamente dos programas de «welfare» para mães solteiras. Os autores da Curva de Bell consideravam que «os Estados Unidos têm já políticas que, de uma forma inadvertida, fazem engenharia social sobre a procriação, mas andam a escolher as mulheres erradas. Se se incentivasse mulheres com Q.I. elevado a procriar como se faz para as mulheres de Q.I. baixo, tais políticas seriam apropriadamente descritas como uma manipulação descarada da fertilidade».

Para Gould, o livro apresenta uma «visão apocaliptíca de uma sociedade com uma classe baixa em crescimento permanentemente amarrada ao pântano dos seus baixos QI's. Eles tomarão conta do centro das nossas cidades, continuarão a ter filhos ilegítimos (porque muitos são demasiado estúpidos para controlar a sua fertilidade), a cometer crimes e no fim exigirão uma espécie de estado prisão para os controlar (e para os manter fora dos nossos bairros de QI elevado)»

Segundo Gould, «A curva de Bell» é mais uma página na história de cientistas sociais conservadores que pretendem justificar as desigualdades sociais ou seja, pretendem arranjar uma justificativa genética para o status quo e a existência de privilégios de certos grupos de acordo com classe, raça ou sexo. Gould considerava que não havia nenhuma evidência científica para quaisquer destas pretensões e que as mudanças sociais ocorrem demasiado depressa para serem explicadas em termos biológicos.

Em oposição ao determinismo biológico, Gould enfatizou a enorme flexibilidade do comportamento humano:

«A característica central da nossa singularidade biológica também fornece a principal razão para duvidar que os nossos comportamentos são codificados directamente por genes específicos. Esta característica é, com certeza, o nosso grande cérebro... Aumentou marcadamente de tamanho durante a evolução humana... somou conexões neurais suficientes para converter um dispositivo programado, inflexível e bastante rígido, num órgão flexível, dotou-o de lógica suficiente e memória para substituir a aprendizagem não-programada por especificação directa como a base do comportamento social. Flexibilidade pode ser a mais importante característica da consciência humana.»

Para Gould, «Violência, sexismo e crueldades em geral são biológicas se as virmos como um subconjunto de um possível leque de comportamentos. Mas paz, igualdade e generosidade são tão biológicas quanto elas - e nós poderemos ver a sua influência aumentar se conseguirmos criar estruturas sociais que permitam o seu desenvolvimento».

Gould e o «The Mismeasure of Man» são talvez a melhor resposta à questão moral de Gates. E a lição de vida de Gould, o seu compromisso com a ciência, que deve ser uma ferramenta fundamental para a libertação e não para a opressão, deveria inspirar todos os que não só querem entender o mundo mas também contribuir para que este seja melhor.

2 comentários:

alf disse...

E a acrescentar a isto há a referir os muitos documentários da vida animal que foram feitos para mostrar que os animais vivem segundo certas «leis» e que, sendo fruto de muitos anos de evolução, são também as «leis» e a «moral» que devem reger a sociedade humana.

Nomeadamente a famosa «lei da selva», comportamentos territoriais de certos machos, o conceito de «macho alfa», comportamentos sexuais, maternais, etc.

A verdade é que na natureza se pode encontrar quase todo o tipo de comportamentos e soluções; que têm de ser percebidos com uma inteligência que não existe nesses documentários que tanto passam na tv. E que induzem perigosamente em erro.

A conclusão é que nunca fazemos análises isentas - elas reflectem sempre a nossa ideia. E ninguém procura a «verdade» mas a prova daquilo em que já acredita.

Somos assim, os humanos...

Lidador disse...

Excelente timming para este artigo, depois das greves dos patrões camionistas.

Estes senhoras acham que a gasolina está cara e o negócio assim não sobrevive. É que se aumentam os preços aos clientes, estes "vão para a concorrência".Sim, porque a concorrência não usa gasóleo nos seus camiões.

Isto a propósito do "Eles tomarão conta do centro das nossas cidades".

Mas também, o que interessa tudo isto? Portugal joga hoje e nada mais importa...

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