quarta-feira, 18 de junho de 2008

Ensaio sobre a cegueira acordista

Um artigo imperdível do tradutor João Roque Dias, "Afinal, Ensaio Sobre a Cegueira não é apenas um romance".

Mas faltou dizer o seguinte: o que provoca as imensas diferenças linguísticas entre Portugal e o Brasil (os restantes países de língua portuguesa seguem a norma portuguesa), diferenças que não são principalmente ortográficas, é o isolacionismo dos dois países. Portugal está-se nas tintas (uma expressão desconhecida no Brasil) para o Brasil, e vice-versa. Os livros não circulam, as ideias não circulam, os intelectuais não publicam nos dois países, os jornais não são lidos por uns e outros apesar de estarem disponíveis na Internet. Portugal não quer saber do Brasil e o Brasil não quer saber de Portugal. Esta é uma realidade má para ambos os países, mas nada há que os governantes possam fazer, e sobretudo não vão conseguir mudar isso com tolices ortográficas. Faz parte da mentalidade isolacionista dos dois povos.

O Brasil é um mercado imenso quase completamente fechado ao exterior. Às vezes dá-me a impressão que o mundo poderia acabar e nós no Brasil só saberíamos disso umas semanas depois, o que até é agradável (a imensa crise do petróleo, depois da crise prolongada provocada pela guerra do Iraque, que afecta os EUA e a União Europeia não afecta o Brasil, que se alimenta da sua produção petrolífera autónoma). O isolacionismo brasileiro até faz sentido: aqui, estamos entregues a nós mesmos e o resto do mundo não nos diz realmente respeito.

Mas no caso português o isolacionismo é pura e simplesmente risível. Mas está entranhado na mentalidade nacional. E é isso que explica as derivas linguísticas mais tolas, e nada poderá inverter esse estado de coisas excepto uma maior abertura de ambos os países à produção linguística uns dos outros. No caso da filosofia, estamos numa boa posição: como não se usa terminologia modernaça (mouse para rato, tela para monitor, etc.), não se notam muitas diferenças. E como a maior parte das diferenças estão no linguarejar informal, também não se nota em textos académicos de alta qualidade. Ao ler um texto brasileiro de filosofia de alta qualidade, só depois de alguns parágrafos nos apercebemos de que se trata da variante brasileira; e o mesmo acontece aos brasileiros quando lêem boa prosa filosófica portuguesa. O problema está na linguagem corrente, avacalhada até mais não no Brasil e em Portugal.

4 comentários:

Miguel RM disse...

Caro Desidério Murcho,
Concordo inteiramente com tudo o que diz sobre o ridículo isolacionismo português (e brasileiro). Pelo contrário, Roque Dias, meu colega de profissão, não tem razão nenhuma, como aliás tinha ficado claro na intervenção que fez no programa de TV "Prós e Contras" sobre o acordo ortográfico. Os tradutores portugueses só se prejudicam quando se fecham numa atitude defensiva perante os outros falantes de português. Ao contrário do que diz Roque Dias, é facílimo para um linguista português "converter-se" temporaria e parcialmente à norma brasileira. Veja-se os autores portugueses que escrevem em jornais brasileiros.

joão viegas disse...

Caro Desidério,

Concordo completamente com o seu comentário. Quanto ao artigo, penso que põe o dedo na ferida e insiste num aspecto essencial da questão (a língua deriva da prática social e, por conseguinte, não pode manter-se se não corresponder a nada ; a não ser assim, falaríamos todos Esperanto), mas é muitíssimo exagerado. Afinal, muito do que é dito no artigo poderia ser aplicado aos regionalismos, e ninguém pensa que eles estejam sériamente ameaçados pela existência de uma norma ortográfica...

O facto é que aquilo a que chamamos "uma língua nacional" é já uma simplificação, que se aplica abusivamente a dezenas ou centenas de línguas (as línguas técnicas, os calões, etc. exemplo : todos concordarão que a língua administrativa do Diário da República soa muitas vezes como chinês para o camponês da Beira interior!).

Penso que podemos concordar pelo menos num aspecto : o acordo não faz qualquer sentido se se tratar de uma medida isolada e se não fôr acompanhado por uma verdadeira política destinada a quebrar o isolacionimo que o Desidério critica justamente.

Aposto que concordaremos ainda com o seguinte : pensar modificar a língua por decreto, é pôr o carro à frente dos bois (lá está o francesismo...).

Mas precisamente, não é o que se pretende com o acordo. O que se pretende é apenas uma medida (que deveria ser acompanhada por muitas outras, talvez mais eficazes e mais importantes) para inverter a situação que descreve. Trata-se de fazer com que os cidadãos de ambos os lados do Atlântico, que falam línguas muito próximas, cuja historia é a mesma (Camões é um clássico português e um clássico brasileiro), e que até se entendem na perfeição quando falam e escrevem com rigor, como o próprio Desidério renconhece no campo da filosofia, passem a utilizar uma norma ortografica comum, precisamente para que os livros escritos por uns passem a ser mais sistematicamente lidos pelos outros, etc.

Mas, mais uma vez, quanto ao essencial, concordo inteiramente consigo : o que é preciso, acima de tudo, é acabar com o isolacionismo provinciano em que vivemos. E, nesse aspecto, o artigo que cita até diz uma coisa muito acertada. Esse isolacionismo, na prática, não faz com que falemos um português de melhor qualidade (ou duas variantes do português com maior qualidade). Antes tem como consequência falarmos cada vez mais francês em Portugal e Anglo-americano no Brasil...

Um abraço

Vitor Guerreiro disse...

Estamos sempre a regressar à mesma tónica.
Se as diferenças ortográficas fossem a causa de não haver passagem de livros de um lado para o outro, então teríamos um problema de isolamento entre as publicaçoes americanas e inglesas. Isto nao acontece porque as diferenças ortograficas nada têm a ver com a circulação de livros. O que está em causa é a mentalidade portuguesa parva de que se fizermos uma lei acerca de x, automaticamente resolvemos todas as coisas indesejáveis que associamos a x. Depois são os tiques colonialistas que não se perdem, as divisões e separações arbitrárias entre o que é central e o que é periférico. A constante mania de confundir as causas com os efeitos e as palavras com as coisas que elas referem.

O mais recente argumento que ouvi de um amigo a favor do acordo é que isto "pode ser o começo de algo". Este é outro problema de que sofremos: as ideias místicas que se tentássemos afirmar claramente perderiam todo o sentido (daí que não as consigamos tornar explícitas: nada dizem).
Estou aqui sentado a pensar no exercício que vou fazer numa aula. O tipo de coisas que posso fazer para me ajudar é restringido pela necessidade, quer dizer, pela realidade. Nem todos os disparates que me ocorram fazer vão ser "o começo de algo" só porque tenho muita vontade de fazer algo. Mas nós sofremos deste pensamento mágico: fazer x pode ter tanto valor como um peido, mas ao menos estamos a "fazer alguma coisa"... nem que sejam só peidos sem qualquer relevância para resolver seja o que for. Quem sabe? Talvez se continuarmos a acumular flatulências venha a "ocorrer algo" no futuro, talvez se dê... sei lá, um milagre, ou pelo menos "algo"! Não?

O acordo ortográfico não passa disto mesmo: uma flatulência. Um testemunho do nosso paroquialismo e ausência de pensamento. Consequência directa de continuarmos a ter professores universitários de filosofia que passam a vida a investigar... o quinto império, as dores de alma, o saudosismo, e outros fados.

joão viegas disse...

Caro Vitor,

Eu acho exactamente o contrario, acho que um dos males derivado do nosso provincialismo, é precisamente a facilidade com que cedemos ao tipo de argumentos preguiçosos que desenvolve no seu comentario. Não temos excesso de lunaticos, temos é excesso de filosofos de café para quem tudo esta sempre errado e que consideram vão tentar fazer o que quer que seja.

Ninguém diz que as diferenças ortograficas são "a causa" de não circularem livros entre os dois paises. O que dizemos é que a situação é essa (os livros não circulam, nem os projectos, nem as ideais, etc), que isso é prejudicial para ambas as culturas (e para ambas as variantes da lingua), de maneira que ha que procurar invertê-la. Se conseguir pensar noutras medidas, mais urgentes, mais eficazes, mais uteis, não hesite em dizê-lo que todos os partidarios do acordo assinam por baixo.

O acordo é uma pequena medida, que não é nenhuma panaceia, nem nenhum fim do mundo e, como tal, não agrada, nem sequer interessa muito, aos nossos filosofos de café que apenas juram por esse tipo de quimeras...

Eu não posso falar pelos outros, mas constato que cresci em Portugal, estudei em Portugal e so quando fui para o estrangeiro é que descobri um bocado da cultura brasileira. Não muito, mas o suficiente para constatar que a cultura brasileira tem tudo a ver comigo, com a minha historia, com o meu povo (pois, é , repare que foram muitos mais os Portugueses que emigraram para o Brasil do que aqueles que emigraram para os cafés de Coimbra, onde so raramente conseguiram superar, mesmo do ponto de vista intelectual, a obra de um Lucio de Azevedo...).

E depois explique-me uma coisa : estar apegado a uma norma que tem tanto de arbitrario, de simplificador e de convencional como a norma proposta pelo acordo, não sera também uma forma de bairrismo saudosista ?

Ah, e ia-me esquecendo : não desgosto de fado...

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