domingo, 8 de junho de 2008

EINSTEIN - A CURIOSIDADE, A ESCOLA E A CULTURA CIENTÍFICA 1



Minha intervenção no Porto em 2005, Ano Internacional da Física, a convite da Casa Museu Abel Salazar da Universidade do Porto (por ser um pouco longa vai em duas partes):

A revista “Time” ao escolher, no final do século passado, o físico Albert Einstein para “Pessoa do Século” prestou homenagem a uma das pessoas que mais contribuíram para a compreensão do Universo em que vivemos.

Para além de ter dado várias outros contribuições importantes relativos à matéria e à luz (alicerçando a teoria atómica e a teoria quântica), foi Einstein quem até hoje mais avançou na compreensão do que é o espaço e o tempo, reconhecendo que esses dois conceitos não são absolutos e estão ligados [1]. Tal compreensão teve profundas implicações não só científicas como filosóficas. Foi também ele quem descobriu a relação de identidade entre outros dois conceitos físicos – não só diferentes como até aparentemente antagónicos - a energia e a massa. Mais ainda: foi ainda ele quem descobriu que o espaço-tempo era alterado pela presença da matéria-energia e que nessa alteração residia a origem da velha força gravitacional de Newton. A revolução realizada por uma única pessoa entre os anos de 1905 (teoria da relatividade restrita, que revê as ideias de espaço, tempo, massa e energia) a 1916 (teoria da relatividade geral, que une todas essas ideias e decifra a força gravitacional) foi uma das mais marcantes da história da Física.

Depois de Galileu e Newton nunca ninguém, na história da física, tinha alcançado tanto sozinho. É por isso compreensível que o cérebro de Einstein (elevado à categoria de mito pelo ensaísta francês Roland Barthes, num belo texto incluído no livro “Mitologias” [2]) simbolize hoje o poder humano de compreender a Natureza. Quando Einstein um dia afirmou que “Deus é subtil, mas não malicioso” [3], não estava a fazer nenhuma afirmação teológica, mas apenas a dizer que a tarefa de compreender o Universo, apesar de difícil, não é impossível (no sentido de Espinosa, Einstein via Deus como a harmonia subjacente ao mundo natural [4]).

Como ultrapassou Einstein a dificuldade humana de compreensão do Universo? O grande sábio foi um dia foi interrogado sobre a origem das suas extraordinárias capacidades. Respondeu com modéstia: “Não penso que tenha quaisquer talentos particulares. Sou apenas uma pessoa apaixonadamente curiosa” [5]. A curiosidade, a necessidade quase genética que cada ser humano tem de conhecer o mundo, era, portanto, para Einstein a chave para entrar na ciência. Noutra ocasião afirmou: “Nunca percam a curiosidade, a sagrada curiosidade”.

A curiosidade, que está na raiz do empreendimento científico (antes de saber, é, de facto, preciso querer saber!), cedo se revelou em Albert. É bem conhecida a memória que ele conservou e divulgou nos seus anos tardios sobre uma bússola que lhe foi oferecida, quando ele tinha cinco anos, por seu pai, um comerciante de material eléctrico e fornecedor de serviços nessa área (a família Einstein efectuava instalações eléctricas, acompanhando as transformações que a electricidade estava a provocar na sociedade europeia em finais do século XIX) [6]:

“Senti-me profundamente maravilhado, aos quatro ou cinco anos, quando o meu pai me mostrou uma agulha de uma bússola (…) ainda me lembro (…) que essa experiência provocou em mim uma impressão profunda e duradoura. Tinha de haver algo muito bem escondido por trás das coisas”..

Pois o pequeno Einstein ficou maravilhado com a persistência da agulha ao apontar, quando desviada, repetidamente para Norte. Parecia que uma mão invisível a remetia sempre para a mesma direcção. Sabemos hoje que é uma força magnética com origem no interior da Terra a responsável pelo referido fenómeno, mas não deixa de ser curioso notar que a origem daquela força (o dínamo no interior do nosso planeta) permanece ainda hoje em larga medida por esclarecer. Por detrás da força que maravilhou Einstein persiste ainda hoje um mistério…

Depois da física veio a matemática. Quando tinha 12 anos, a curiosidade de Einstein foi alimentada pela leitura dos “Elementos de Geometria”, o livro clássico de Euclides, que lhe foi dado por um estudante judeu que a sua família hospedava. Se a bússola tinha servido para a iniciação nos mistérios do mundo físico, a geometria euclidiana proporcionou a entrada nos mundos da matemática, que, apesar de abstractos, tão admiravelmente descrevem o mundo concreto. Einstein escreveu retrospectivamente [6]:

“Aos 12 anos de idade experimentei uma segunda maravilha, de uma natureza completamente diferente, num pequeno livro sobre a geometria plana de Euclides.”

Em 1930, viria a escrever a respeito da geometria euclidiana [7]:

“Surgiu na Grécia, pela primeira vez, aquela maravilha do pensamento que é um sistema lógico – a geometria de Euclides – cujos enunciados se deduziam com tão grande nitidez que cada uma das proposições demonstradas não deixava qualquer motivo para dúvida.

Dez anos antes já tinha feito a seguinte elegia da matemática [7]:

“A matemática goza perante as outras ciências de consideração especial por um só motivo: as suas proposições são absolutamente seguras e indiscutíveis, enquanto as de outras ciências são, até certo ponto, discutíveis e encontram-se sempre em perigo de serem derrubadas por novos factos.“ (…) “Como é possível que a matemática que é, no fundo, um produto do pensamento humano, independente de toda a experiência, se adapte tão perfeitamente à realidade dos objectos? Poderá pois a razão humana, sem experiência, só por meio do pensamento puro, investigar as qualidades das coisas reais?” “A Natureza é a realização de tudo quanto é matematicamente mais simples. (...) A experiência, claro, continua a ser o único critério de utilização de uma construção matemática da física. O princípio verdadeiramente criador reside, porém, na matemática”.

A matemática, essa companheira inseparável da Física, acompanhou Einstein pela vida fora. Na idade adulta, ele viria a concluir que é necessária uma geometria não-euclidiana para descrever a distorção do espaço-tempo nas vizinhanças de uma certa quantidade de matéria-energia. A teoria da relatividade restrita não envolve matemática muito sofisticada – basta a matemática dos estudos básicos e secundários, não surgindo nada mais difícil do que a raiz quadrada – mas a teoria da relatividade geral já exige matemática de nível superior – nomeadamente a geometria diferencial e o cálculo tensorial. Einstein tinha aprendido a matemática da relatividade geral na Escola Politécnica de Zurique onde tinha concluído o seu curso universitário de Física e Matemática, mas a sua falta de assiduidade às aulas levou a que tivesse de recuperar mais tarde alguma da matemática perdida, para o que teve de pedir ajuda ao seu colega e amigo Marcel Grossman. Ficou famosa a asserção do velho Einstein, quando uma criança lhe expôs as suas dificuldades em matemática: “Não te preocupes com as tuas dificuldades em matemática: As minhas são muito maiores”.

A curiosidade, que Einstein desenvolveu com o seu primeiro objecto científico – a bússola - e depois com a leitura de livros científicos – “Os Elementos - , encontrou campo fértil nas questões que a física do século XIX tinha deixado em aberto. Houve nessa época quem pensasse que a física estaria fechada (essa sensação de fecho deve ser um mal de “fin de siècle” pois também se manifestou no final do século XX, nomeadamente quando o astrofísico Stephen Hawking se interrogou sobre se estaria à vista o “fim da física” [8]). Contudo, a teoria dos “quanta”, com a hipótese quântica avançada por Max Planck em 1900 e aprofundada por Einstein cinco anos mais tarde (a luz não apenas é emitida e absorvida em “quanta” como existe na forma de “quanta”!), e a teoria da relatividade foram duas pedradas que perturbaram as águas tranquilas da física.

É interessante analisar o modo como Einstein chegou à sua teoria da relatividade. Os postulados básicos de partida foram a invariância de todas leis da física para todos os observadores em movimento uniforme uns em relação aos outros (Galileu já tinha advogado, séculos antes, a invariância das leis da mecânica, mas tratava-se agora de alargar essa suposição ao electromagnetismo, óptica, etc.) e a constância da velocidade da luz para os mesmos observadores (esta última suposição é decerto bastante estranha, mas a teoria electromagnética de Maxwell, resumida em quatro equações, sugeria-a fortemente).

Para facilitar o raciocínio, Einstein colocou questões mentais, as suas famosas “Gedankenexperimente”, na expressão alemã. A teoria da relatividade restrita partiu da questão de saber o que vê uma pessoa que vá à velocidade da luz (ou quase) e se olha a si própria num espelho [7]. Será que a velocidade da luz é mesmo a mesma para quem se desloque à velocidade da luz (ou quase)?

Einstein admitiu que sim e as consequências foram notáveis. Uma delas é que o espaço e o tempo não são absolutos, como julgavam Galileu e Newton e, antes deles, implicitamente, todos os autores antigos. O espaço e o tempo dependem do movimento de cada observador. Réguas em movimento encolhem e relógios em movimento atrasam. Com Einstein, cada observador passou a ter o seu espaço e o seu tempo. E passou a ser reconhecida na física uma nova entidade a quatro dimensões, o espaço-tempo, que reúne o espaço e o tempo, onde se podem definir intervalos sobre os quais todos os observadores concordam. O espaço e o tempo, em separado, não têm intervalos reconhecidos como iguais por todos os observadores, mas o espaço-tempo já tem.

Vem também de um modo simples e natural, a partir dos postulados de partida, que energia e massa são sinónimos: a energia contida num objecto é proporcional à massa, sendo a constante de proporcionalidade simplesmente o quadrado da velocidade da luz (E=mc^2 tornou-se a mais conhecida das fórmulas da física). Esta conclusão, de enormes repercussões (uma delas foi, como é sabido, o fim da Segunda Guerra Mundial), não deixa de ser inesperada, pois, se a energia está associada ao movimento, a massa está associada à resistência ao movimento. Mas, de facto, é preciso que a massa de um corpo aumente à medida que a sua velocidade cresce para que a velocidade da luz constitua um limite inultrapassável.

Por outro lado, na relatividade geral, Einstein partiu da imagem mental do que lhe aconteceria se caísse em queda em livre (“Um dos pensamentos mais felizes da minha vida…”) [7]:

“Estava sentado numa cadeira da Repartição de Patentes, em Berna [em 1907] quando de repente me ocorreu uma ideia: se uma pessoa cair em queda livre, não sentirá o seu próprio peso. Fiquei espantado. Esta ideia simples provocou-me uma profunda impressão. Impeliu-me para uma teoria da gravitação”.

Se Newton viu a maçã cair, Einstein imaginou-se ele próprio a cair: ele era a maçã! Pensou e bem que ao cair ficava num estado de imponderabilidade, isto é, que todos os objectos que caíam com ele estavam em repouso relativamente a ele, nomeadamente uma balança a seus pés (essa situação de imponderabilidade é afinal a mesma de um astronauta a bordo da Estação Espacial Internacional). A questão seguinte é: Se tudo cai será que a luz também cai? Por outras palavras: será que a luz pesa? Einstein considerou que a queda de um objecto dentro de uma nave imóvel na Terra é, para todos os efeitos, equivalente ao movimento desse objecto dentro dessa nave agora não em repouso mas em movimento acelerado (impulsionada por um foguete) no espaço vazio, isto é, muito afastada de qualquer astro. A força é equivalente a uma aceleração, como já se sabia desde Newton. De resto, todos nós temos consciência disso porque, quando um carro acelera, tendemos a ficar para trás, sentindo uma força que nos empurra para trás; e, quando trava, tendemos a ir para a frente, sentindo uma força que nos empurra para a frente. Se admitirmos que a luz fica para trás a bordo de uma nave acelerada, seremos forçados a concluir que a luz cai quando sujeita à força de atracção de um planeta, ou, em linguagem mais técnica, quando sujeita a um campo gravítico. Mas a luz, segundo Einstein, não encurva; vai pelo caminho mais directo num espaço-tempo que encurva perto de um corpo com massa (ou, o que é o mesmo, um corpo com energia). As observações de um eclipse solar feitas pelo astrónomo inglês Arthur Eddington em 1919, na ilha então portuguesa do Príncipe, confirmaram o fenómeno do encurvamento dos raios de luz na presença de um corpo com grande massa, no caso os raios luminosos provenientes de estrelas por trás do Sol.

Na relatividade restrita, o espaço tinha antes sido unido ao tempo e a massa tinha sido unida à energia. Na relatividade geral, o espaço-tempo é deformado pela massa-energia. E a velha força gravitacional de Newton não é nada mais nada menos do que essa deformação (para cuja descrição são necessárias as geometrias não-euclidianas). Portanto, uma vez decifrados os mistérios do espaço-tempo e da massa-energia, a força de atracção universal fica explicada. Os relógios batem mais lentamente e as réguas mostram um comprimento menor perto de um astro com grande massa. Se a massa for muito grande, como a de uma estrela de grandes proporções, tem-se o fim do espaço-tempo, através de uma deformação extrema da respectiva geometria.

As consequências da teoria da relatividade geral foram enormes para a cosmologia: o Universo passou a ser dinâmico (está em expansão, conforme a teoria do “Big Bang”), os buracos negros passaram a ser possíveis (existem com certeza; Stephen Hawking, o autor do “best-seller” “Uma Breve História do Tempo”, é um dos grandes especialistas do assunto [9]) assim como as ondas gravitacionais (que devem existir muito provavelmente, sendo hoje intensamente procuradas: são, por exemplo, emitidas na colisão de dois buracos negros. O Universo deixou, a nossos olhos, de ser o mesmo. Deixou de ser um cenário calmo, onde pouco se passava, para ser um lugar de permanente mudança e surpresa. E nós deixámos de ser os mesmos nesse Universo diferente…

REFERÊNCIAS:

[1] Abraham Pais, “O Senhor é Subtil. Vida e Pensamento de Albert Einstein”, 1ª edição, Gradiva, Lisboa, 1991,
[2] Roland Barthes, “Mitologias”, Edições 70, Lisboa, 1987.
[3] Alice Calaprice (coordenação e edição), “The New Quotable Einstein”, Princeton University Press, Princeton, 2005, prefácio de Freeman Dyson.
[4] Max Jammer, “Einstein e a Religião”, Contraponto, Rio de Janeiro, 2000.
[5] Carlos Fiolhais, “Curiosidade Apaixonada”, Gradiva, Lisboa, 2005.
[6] Michio Kaku, “O Cosmos de Einstein. Como a visão de Einstein transformou a nossa concepção do espaço e do tempo”, Gradiva, Lisboa, 2005.
[7] Albert Einstein, Como Vejo o Mundo, a Ciência e a Religião”, Relógio d’Água, Lisboa, 2004.
[8] Stephen Hawking, “O Fim da Física”, Gradiva, Lisboa, 1994, prefácio de Carlos Fiolhais.
[9] Stephen Hawking, “Uma Breve História do Tempo”, edição actualizada e aumentada, Gradiva, Lisboa, 2000, prefácio de Carl Sagan.

2 comentários:

vieiradospneus disse...

Muito bom texto. Só falta corrigir a data ("Minha intervenção no Porto em 1905...") para ninguém ficar a pensar que o Carlos Fiolhais é um Matusalém com dotes de adivinho.

De Rerum Natura disse...

Já emendei a data de 1905 para 2005, peço desculpa pelo lapso...
Carlos Fiolhais

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