segunda-feira, 16 de junho de 2008
A CIÊNCIA DOS SUPERHERÓIS
Está nas telas do cinema outra adaptação de "The Incredible Hulk" (de Louis Leterrier, 2008). Ainda não vi, mas é uma boa ocasião para reproduzir a minha crítica à versão anterior (de Ang Lee, 2003), que se encontra no meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, 2005). Lembro, a propósito de superheróis, que o Superhomem fez há pouco 70 anos, não parecendo ter envelhecido...
Esteve nos cinemas “Hulk”, ou melhor “The Incredible Hulk”, um filme de um superherói que se seguiu a um filme de um outro superherói, “SpiderMan”, ou melhor “The Amazing Spiderman”. Tanto um filme como outro iniciaram-se nas histórias aos quadradinhos norte-americanas, os “comic-books”. Tanto “Hulk” como “Spiderman” aparecerem em 1962: o segundo, talvez mais conhecido, foi criado por Stan Lee, tendo aparecido no nº 15 da revista “Amazing Fantasy”. Em 1977 estrearam-se os dois como séries de televisão na cadeia CBS (tinha havido um pouco antes a estreia do “Spiderman” na televisão embora em em desenhos animados). Em 2003, quando os dois superheróis já tinham 42 anos, chegaram finalmente ao cinema. As películas não são muito diferentes. Nas duas há um herói capaz de fazer coisas incríveis. E nas duas essas capacidades têm a ver com a ciência, ou melhor, com alguns “desvios” da ciência. Vale a pena por isso abordar a ciência dos superheróis.
“Hulk” e “Spiderman” têm um antepassado comum que de certo modo imitam: o “Superman”, criado em 1938 (o Superhomem é quase contemporâneo da primeira observação da cisão nuclear, que é de 1939), passado ao cinema em 1948 e à televisão em 1952. O Superhomem, famoso pelo seu fato azul com um S no peito e pela sua capa vermelha, veio de Krypton, um planeta maior do que a Terra e cuja gravidade é muito maior do que a da Terra. O pai lançou-o no espaço já que o seu planeta-natal ia explodir (devido ao desequilíbrio do seu núcleo de urânio). Adoptado por uma família terrestre, o Superhomem arranjou emprego num jornal e, quando é necessário, mostra os seus superpoderes: é mais rápido do que uma bala, tem uma força sobrehumana e uma penetrante visão de raios X. Recolhe directamente energia solar. Tem apenas uma debilidade: a criptonite, material radioactivo que resultou do seu planeta e que diminui os seus superpoderes. Como se vê, a história é de ficção científica, com mais ficção do que científica: a explosão de planetas, a radioactividade, a energia solar.
Na história original do “Hulk”, Bruce Banner trabalha num projecto de bomba nuclear numa base secreta de um deserto americano. Um dia, para salvar uma pessoa, é submetido a radioactividade intensa, e sofre uma tremenda transformação: fica verde, enorme e com uma força desmedida (os sportinguistas bem gostariam de ter um jogador desses...). Mas fica também com a mente um pouco débil, como é próprio de um monstro. Os temas científicos da história são, portanto, as mutações provocadas por radiação e a capacidade de mudar de cor, tal como o camaleão. É curioso que a versão cinematográfica tenha actualizado a matéria científica. A acção moderna passa-se em laboratórios de biologia – informando-nos que os perigos da ciência moderna têm porventura mais a ver com a biologia do que com a física– e a nanotecnologia surge como vedeta. A nanotecnologia, que consiste na manipulação à escala atómica e molecular, é um domínio onde a física, a química e a biologia se cruzam. Tem conhecido desenvolvimentos tão espectaculares que a palavra saltou já para os títulos de jornais. E até já há um conjunto organizado de inimigos da investigação e das aplicações nessa área: muitos deles passaram da oposição às manipulações genéticas e aos alimentos geneticamente modificados para a oposição à nanotecnologia. Em “Hulk” há pois uma mistura de física nuclear (radiação gama), biologia genética (mutações) e nanotecnologia (novas moléculas) que pode atemorizar...
Também no filme “Spiderman” é transmitido o medo da ciência. Um adolescente, Peter Parker, estava a assistir a uma demonstração no liceu quando é picado por uma aranha, exposta à radiação. O rapaz ganha poderes de aracnídeo, incluindo a capacidade de tecer teias, subir paredes e dar saltos entre os prédios. Tal como o Superhomem, o Homem-Aranha trabalha para um jornal (como fotógrafo), mas interrompe o seu trabalho quando é preciso combater o crime nas ruas de Nova Iorque. A ciência agora reside no fantástico cruzamento do homem com a aranha, que ocorre mais uma vez através de uma mistura da física nuclear com a biologia. De facto, a realidade tem-se aproximado da ficção e já se realizaram experiências de manipulação genética nas quais se conseguiu que cabras produzissem, com o seu leite, seda muito parecida com a que é tecida pelas aranhas.
Haverá razões, como estas histórias de superheróis insinuam, para se ter medo da ciência? Deve-se obviamente ter bastante cuidado... Mas tal não quer dizer que a ciência seja em si uma actividade perigosa. Tem perigos, que se devem obviamente prevenir e evitar, para o que é necessária uma permanente atenção por parte não só dos cientistas como da sociedade em geral. De resto, há perigos por todo o lado. Perigos há também na literatura, que muitos julgam inofensiva: só para dar um exemplo, o romântico alemão Johann Wolfgang Goethe pôs o seu jovem Werther a suicidar-se devido a um desgosto de amor. Tal acto teve consequências absolutamente imprevisíveis, nomeadamente o aumento em flecha do número de suicídios. Alguém pensará que Goethe era um perigoso assassino?
O leitor ou o espectador, nos livros aos quadradinhos ou na televisão e no cinema, das aventuras de “Superman”, “Hulk” ou “Spiderman” fará bem em não ter medo e em divertir-se com as histórias. Mas há talvez uma moral que pode tirar: Esses superheróis expressam o eterno desejo do homem de quebrar as barreiras que o tolhem. No mundo real, é a ciência, prolongada pela tecnologia, que permite que o homem se supere. No caso do “Superman” e do “Spiderman”, é bom não esquecer, os heróis, com os seus superpoderes, combatem o “mal”. E, na maioria das vezes, no mundo real, a ciência e a tecnologia também servem para diminuir o “mal”...
Roger Highfields, jornalista de ciência do “Daily Telegraph” e autor de um livro intitulado “A Ciência de Harry Potter” (Harry Potter é outro superherói moderno), apontou a relação profunda entre tecnologia e magia:
“A tecnologia criada pelos feiticeiros de hoje faz os aviões voar, os computadores perceberem a fala, e mandar uma mensagem de um ponto para o outro do planeta. Mas ela é tão imperscrutável para a maior parte das pessoas que estas poderão pensar que se trata de produtos de magia. A bioquímica que está presente num teste doméstico de gravidez, o movimento dos electrões num chip de silício num computador caseiro e mesmo as instruções para manipular um gravador vídeo podem parecer magia”.
Algo semelhante disse o físico e autor de ficção científica Sir Arthur Clarke: “A tecnologia suficientemente desenvolvida é indistinguível de magia”. É verdade. Mas não esqueçamos que a magia moderna resulta da ciência e não de uma varinha de condão.
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2 comentários:
Uma correcção: é Bruce Banner e não David Banner.
Fora isso, convém lembrar, antes de mais, que estas histórias de super-heróis devem mais à tradição das histórias de terror que às de ficção científica. É verdade que bebem elementos da ciência (vão lá buscar referências), mas não é esse o seu objectivo último.
O essencial nas histórias de terror é o seu enquadramento na sociedade moderna. Os filmes de zombies de George Romero são um exemplo perfeito. A histórias reflecte frequentemente as inquitações da sociedade moderna e é por isso que se torna bem sucedida.
O facto de tantos heróis da Marvel (especialmente estes) terem algo a ver com a radiação (o Quarteto Fantástico sofre mutações genéticas devido a radiação cósmica, Hulk devido à explosão da bomba gama, Homem Aranha devido à mordidela de uma aranha radioactiva, etc) está directamente ligado à época em que surgiram, pós-guerra e com o surgimento em força da energia nuclear.
Muitas explicações foram tentadas ao longo dos anos para ir explicando a origem destes poderes (as explicações vão sendo refinadas de autor para autor), sendo que um houve que apontou o "Hulk" como sendo uma espécie de cancro (resultado de exposição à radiação), mas um cancro muito específico. Claro que não existem explicações completamente coerentes, mas isso não é importante. Bem pelo contrário. A ciência está presente apenas para adensar a história, não para a caucionar. Repita-se: isto não é ficção científica, longe disso.
Já emendei David por Bruce, obrigado.
Carlos Fiolhais
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