domingo, 8 de junho de 2008

EINSTEIN- A CURIOSIDADE, A ESCOLA E A CULTURA CIENTÍFICA - 2


Segunda parte da minha intervenção no Porto em 2005 a convite da Casa-Museu Abel Salazar (a imagem é do cartaz da exposição que a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra fez nesse ano):

Einstein chegou bem longe movido pela sua curiosidade. O que ficou para a cultura científica? A cultura científica é a apropriação que a sociedade faz dos conhecimentos e dos métodos da ciência. Não há dúvida que Einstein estendeu a cultura científica ao estender as fronteiras da ciência. E participou pessoalmente nessa extensão, ao procurar comunicar de uma forma simples e acessível tanto as novas como as velhas ideias.

A sua primeira contribuição para a cultura científica terá sido ele próprio, quer dizer a personagem que ele soube construir e mostrar ao mundo através dos “media”. Einstein foi sempre um brilhante actor no palco social, assumindo a figura de cientista, a ponto de hoje nos servirmos da sua figura para simbolizar a ciência. O velho Einstein, com a sua cabeleira farta, roupa informal e as sandálias sem meias, tornou-se um ícone moderno da ciência.

Foi um actor que foi escrevendo o seu próprio papel. Além de um cientista profissional, o descobridor do espaço, do tempo, da massa e da energia, foi um divulgador da cultura científica ao ser capaz de explicar aos cidadãos o que é a ciência e qual é o seu valor (“comparada com a realidade, a nossa ciência pode parecer primitiva e infantil, mas é a coisa mais preciosa que temos” [10]): não apenas uma descrição do mundo, sempre passível de escrutínio e revisão, mas também o método necessário para se chegar a essa descrição, o método fundado na curiosidade e que permite sempre ir mais longe.

O sábio soube também explicar para que serve a ciência. Em particular, soube separar a ciência da tecnologia, o conjunto de aplicações da ciência que nos permitem viver melhor no mundo e que, por vezes, aos olhos do público, surgem de uma forma difusa identificadas com a ciência. Num texto de 1930, Einstein descreveu de modo resumido mas esclarecedor os efeitos da ciência [7]:

“A ciência afecta os assuntos humanos de duas maneiras. A primeira é bem conhecida de toda a gente. Directamente, e mais ainda de forma indirecta, a ciência produz benefícios que transformam por completo a vida humana. A segunda maneira é de carácter educacional – age sobre a mente. Embora pareça menos óbvia, esta segunda não é menos pertinente que a primeira.”

O primeiro efeito da ciência – e primeiro apenas por ser mais “bem conhecido” – reside no conforto material que é conferido por um melhor conhecimento do mundo. Vive-se melhor num mundo que se conhece melhor. Mas a tecnologia é muitas vezes sobrevalorizada, esquecendo-se que a maior parte das aplicações são apenas efeitos laterais da curiosidade que alimenta a ciência. Por exemplo, no caso da relatividade geral de Einstein, é bem claro que ela não foi concebida para fazer melhores sistemas de posicionamento global, mas permitiu esse desenvolvimento.

O segundo efeito da ciência - “agir sobre a mente”- é de “carácter educacional” e remete-nos, por isso, para o papel da escola, o meio mais poderoso que a sociedade criou até hoje para formar a mente. Claro que a escola detém ainda hoje um papel insubstituível na transmissão dos conteúdos da ciência e da atitude científica que permite adquiri-los. Escreve Einstein, a respeito da escola e contrariando algumas ideias feitas sobre a aversão dele a ela [7]:

“A escola sempre foi o mais importante veículo para a transmissão da riqueza da tradição de uma geração para a seguinte. (...) Às vezes vemos na escola apenas o instrumento para transferir uma certa quantidade de conhecimentos à geração seguinte. Mas é errada essa concepção. O conhecimento é algo de morto, ao passo que a escola está ao serviço dos vivos. A sua missão é desenvolver nos jovens capacidades e qualidades que contribuam para o bem-estar da comunidade.”

Vale a pena explicar alguns problemas que Einstein teve com a escola. Em primeiro lugar, não é verdade que Einstein não tenha tido, em geral, boas notas. Essas notas foram até muito boas no caso da Física e da Matemática. Acontece simplesmente que não se deu bem com o sistema autoritário da escola prussiana (para ele alguns professores comportavam-se como sargentos). E, a certa altura, quando a família emigrou para Itália, deixando o jovem Einstein sozinho num liceu de Munique, ele arranjou maneira de se ir reunir a ela. Mais tarde, na Escola Politécnica de Zurique, é certo que teve problemas de aversão pessoal a alguns docentes, mas não é menos certo que concluiu o seu curso no prazo normal estabelecido. Foi mais por razões de más relações pessoais do que por menor capacidade científica que não ficou, como aconteceu com alguns dos seus colegas, assistente na referida escola superior.

Einstein sempre gostou do estudo independente. Fê-lo muito jovem com “Os Elementos” de Euclides e continuou depois disso. Enquanto adolescente, foi influenciado por uma série de livros de divulgação científica, como os “Livros Populares sobre Ciências Naturais”, do escritor alemão de origem judaica Aaron Bernstein, “Cosmos”, do naturalista alemão Alexander von Humboldt, que relatava viagens de exploração científica na América do Sul, etc. Embora nos anos de formação de Einstein (as duas décadas finais do século XIX, já que ele concluiu o seu curso em 1900) não houvesse a quantidade e a variedade de obras de divulgação científica de hoje, já havia algumas, com grande circulação, que Einstein leu e que terão tido um considerável impacte na formação da sua personalidade e na escolha da sua vocação.

A dívida de Einstein para com a literatura de divulgação científica foi mais tarde largamente compensada com a redacção do livro “A Evolução da Física” [11], um livro de divulgação, publicado originalmente em 1938 e traduzido em português só em finais dos anos 50 [12], que foi escrito físico polaco Leopold Infeld, que com ele colaborou não só como co-autor mas também como assistente no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos EUA, na fase de exílio da sua vida. Trata-se de um dos clássicos da literatura de divulgação científica, que pode ainda hoje ser lido com proveito por professores e por alunos do ensino secundário ou mesmo do básico. Conta, como o título indica, a história da física até chegar à teoria dos “quanta” e à teoria da relatividade. O astrofísico português João Magueijo confessou no seu livro “Mais Rápido do que a Luz” [13], no qual critica os fundamentos da teoria da relatividade, a influência que recebeu deste livro quando era jovem. Para se ir mais longe, é indispensável saber até onde se foi antes…

Einstein já antes tinha apresentado sob a forma de livro as ideias fundamentais da teoria da relatividade, no livro de 1917 intitulado “A teoria da relatividade restrita e geral” [14]. Em “A Evolução da Física” conseguia, num esforço acrescido, chegar a mais gente.

De resto, Einstein não se limitou a ser autor de artigos de investigação: foi em diversas ocasiões autor de artigos de divulgação científica, escritos não só com conhecimento de causa mas também com clareza e simplicidade e, por isso, acessíveis a um público não especializado. Em 1914, logo que chegou a Berlim para ocupar um lugar na Universidade foi convidado a expor a sua teoria da relatividade, o que fez num artigo intitulado “Sobre o princípio da relatividade”, publicado no jornal berlinense de maior tiragem “Die Vossische Zeitung”.

Na introdução a um outro artigo de divulgação saído num jornal diário berlinense, desta vez o “Berliner Tageblatt”, Einstein escreveu em 1924 uma das mais belas defesas da cultura científica [15]:

“É necessário que cada homem que pensa tenha a possibilidade de participar com toda a lucidez dos grandes problemas científicos da sua época e, por isso, mesmo se a sua posição social não lhe permite consagrar uma parte importante do seu tempo e da sua energia à reflexão científica. É somente quando cumpre essa importante missão que a ciência adquire, do ponto de vista social, o direito de existir”.

Em conclusão, que lições podemos hoje, quando se comemora o centenário do “ano milagroso” de Einstein (1905), extrair da vida e obra de Einstein com o fito de ampliar a curiosidade, a escola e a cultura científica?

Em primeiro lugar que a curiosidade é o princípio de todo o saber e que um cientista não é mais do que uma criança que cresceu levando a sua curiosidade às últimas consequências. A curiosidade revela-se cedo e cedo deve ser aproveitada para a descoberta do mundo, nomeadamente por meio de experiências simples. Depois que a escola é o sítio por excelência onde a curiosidade das crianças e jovens deve ser satisfeita e desenvolvida. A experimentação informada e a formalização matemática devem seguir-se às primeiras formas de aprendizagem informal (Einstein explicita: “no que diz respeito à física, as primeiras lições só devem conter o que é experimental e interessante de ver”). E, por último, que, paralelamente e complementarmente à escola, há formas eficientes de fazer chegar a ciência ao grande público. Entre estas, os livros de divulgação ocupam um lugar do maior relevo.

REFERÊNCIAS:

[10] Carlos Fiolhais, “A C|oisa Mais Preciosa que Temos”, Gradiva, 2003.
[11] Albert Einstein e Leopold Infeld, “A Evolução da Física”, Livros do Brasil, Lisboa, sem data.
[12] Carlos Fiolhais (ccordenação), “Einstein entre nós”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2005.
[13] João Magueijo, “Mais Rápido do que a Luz”, Gradiva, 1ª edição, Lisboa, 2003.
[14] Albert Einstein, “A| teoria da relatividade especial e geral”, Contraponto, Rio de Janeiro, 1999.
[15] Ildeu de Castro Moreira e Nelson Studard, “Einstein e a divulgação científica”, “Ciência e Ambiente”, nº 30, Janeiro/Junho de 2005, p. 126.

Sem comentários:

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...