sexta-feira, 6 de junho de 2008

PENSAR COM OS PÉS


Minha crónica no "Público" de hoje:

Os portugueses têm desde há uns dias um motivo para esquecer a crise. Chama-se Euro 2008, Campeonato Europeu de Futebol, e tem vindo a ocupar progressivamente o espaço mediático que antes era preenchido com a subida dos preços do petróleo e a crise económica a ela associada. No outro dia liguei a televisão e estava a transmitir o autocarro da selecção, visto de um helicóptero. Mudei de canal e estava a dar o mesmo autocarro, mas filmado agora de um outro helicóptero. Se ganharmos, como é o desejo geral, não quero imaginar o choque de helicópteros em disputa para filmar o autocarro no regresso.

Os desejos não são realidades. É pouco provável que ganhemos os jogos todos até à final e mais improvável ainda que ganhemos a final. Apesar de o seleccionador ser o mesmo do quarto lugar num Mundial e do segundo lugar num Europeu muitos jogadores são diferentes e as circunstâncias são também diferentes. Estou, porém, convencido de que vamos ganhar com este Euro na Suíça e na Áustria de qualquer maneira. Se ganharmos a final, vai ser, a avaliar pela enorme euforia que já hoje reina, um completo desatino. Havemos de vir em hordas para a rua em longas caravanas automóveis a berrar e buzinar, por mais elevado que esteja na altura o preço do combustível. Esqueceremos por completo a crise. Mas qual crise? Haverá alguma crise? Veremos deputados e ministros bem mais sorridentes do que temos visto. Por outro lado, se não ganharmos, também ganharemos. Ganharemos de qualquer modo, pois não teremos distracções no confronto com a crise que nos assola, sendo mais fácil tornar-nos um país competitivo noutras áreas e não apenas no futebol. Não vou torcer para que a equipa perca, mas esta hipótese não me parece má de todo.

Parece-me que as expectativas estão altas demais e temo que a ressaca seja dolorosa. De facto, estamos, no futebol, no “top ten” europeu e quase no “top ten” mundial (ocupamos o 11º lugar do “ranking” da FIFA, longe do pódio tomado pela Argentina, Brasil e Itália, mas perto do 10º, que é a Holanda). Mas afinal é em Portugal que existe uma liga relativamente fraca e muito abalada pela crise do “apito dourado” e do “apito final” (o apito pode ter sido final para o Porto na Liga dos Campeões do próximo ano). É onde há clubes da primeira liga com salários em atraso (o Boavista acumulou a suspeita de corrupção com o défice de pagamentos). É onde há casos de indisciplina e violência que incluem tanto jogadores como o seleccionador (um pecado que Scolari fez passar por virtude ao falar da “defesa do menino”). E é onde existem estádios absolutamente megalómanos para os jogos que lá se realizam (pelo menos os estádios de Aveiro, Coimbra, Leiria e Faro, construídos para o Euro 2004, foram grandes investimentos falhados) e é onde ainda há quem não tenha aprendido a lição e queira organizar um Mundial.

Diz-se que a equipa, que inclui numerosos jogadores emigrantes, vale muito dinheiro, que é até a segunda mais cara do Euro. Porém, grande parte dessa verba diz respeito a um único jogador e, mesmo sabendo pouco de tácticas, julgo que um desporto de onze não pode depender demasiado da inspiração de um só. Oxalá o faça, mas não é garantido que São Ronaldo nos valha.

Não estou a ser um velho do Restelo. Por uma razão simples: um campeonato europeu de futebol não é propriamente a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Nem sequer é o caminho para sair da crise. Ficarei feliz se ganharmos os jogos até à final e também esta. Mas há desafios bem mais importantes para nós. Somos bons com os pés, mas não o somos suficientemente com a cabeça. Porque é que não fazemos o mesmo esforço para entrar no “top ten” da educação que fazemos no futebol? Entrar no “top ten” dos “rankings” PISA, isso sim, é que seria uma proeza que nos poderia orgulhar, a nós que estamos em literacia científica num modesto 27º lugar entre os países da OCDE. Porque é que a Galp, a TMN e a Sagres não investem aí os seus chorudos patrocínios? Porque é que só somos bons a pensar com os pés?

5 comentários:

Rui Baptista disse...

Caro Professor: Mudam-se os tempos. Nem sempre se mudam as vontades. Antigamente, durante o Estado Novo, dizia-se que o futebol era o ópio do povo. Na antiga Roma, dizia-se "panem et circenses" (pão e espectáculos de circo). E hoje? Serve para distrair o povo dos graves problemas nacionais:com o preço do pão a aumentar.

Que importa uma melhoria do rendimento escolar dos nossos alunos? Que importa o desemprego que grassa no nosso país? Que importa, que importa...que importa, a não ser saber se o Cristiano Ronaldo vai ou não para Espanha, se o Scollari vai para Inglaterra ou não?

Apesar desta minha rezinguice, fico a torcer para que Portugal ganhe o Campeonatoda Europa. Que raio, nem tudo pode ser mau neste país. Valha-no ao menos isso.

alvares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
alvares disse...

A questão é simples... Onde anda o nosso "Bill Gates"? O nosso "Steve Jobs"? Onde estão os nossos Prémios Nobel da Fisica, Quimica ou Medicina?
É que Figo, Mourinho, e Cristiano Ronaldo são mesmo portugueses....
Já agora, não esquecer que metade dos jogadores da selecção nacional, jogam em campeonatos estrangeiros, talvez isso diga qualquer coisa da maneira como nós "tratamos" e "gerimos" o nossos talentos...

artur figueiredo disse...

As deficiências do sistema de ensino e a falta de empenhamento dos pais são muitas vezes apontadas como as principais causas para o triste lugar que ocupamos em muitos rankings de desenvolvimento. Dada a importância que a comunicação social tem na nossa sociedade não se percebe como consegue passar tão impune nestas matérias.

Claro que sabemos que existe a estratégia de passar entre os pingos mas ninguém está livre de um dia lhe cair em cima uma tromba de água. A comunicação social há muito que a anda a pedir e, quem sabe, depois não haja justificações de mercado que a salvem.

Paisano disse...

Pois se formos bons com os pés vamos lá para a frente.

Aliás, tal como no futebol, nunca fomos grande coisa a jogar com a cabeça.

E se temos dificuldade em usar a parte exterior da mesma, já a interior nem se fala.

Os casos de sucesso de uso interno da cabeça estão, quase todos, tal como os jogadores de futebol, no estrangeiro.

PORQUE SERÁ ????

Sociedade Civil

Sociedade Civil : Físicos - A Física pode ser divertida... é uma ciência focada no estudo de fenómenos naturais, com base em teorias, atravé...