segunda-feira, 9 de junho de 2008

A universidade feudal do futuro

No Le Monde Diplomatique de Abril (edição portuguesa) vale a pena ler o artigo «A Universidade feudal do futuro» de Pierre Jourde, escritor e professor na Universidade de Grenoble.

Um pequeno excerto:

«É certo que Valérie Pécresse não ignora a grande tradição da fórmula oca e da palavra de ordem empolada. Mas vai muito mais longe: não satisfeita por não resolver os problemas reais, inventa problemas inexistentes, para proclamar alto e bom som que vai tratar de os resolver. Inversamente, certos males pareceram-lhe de tal modo benignos que, dando apenas ouvidos ao seu próprio entusiasmo, tomou as decisões que se impunham para os agravar.

(...)

A universidade terá mesmo necessidade de professores competentes? Ora aqui está um dos arcaísmos, a competência, que urge varrer com um gesto salutar. Até agora, a contratação de docentes obedecia a regras obsoletas: um grupo de professores, reunidos em comissão, elegia os seus colegas, após terem examinado dossiês e procedido a entrevistas. Só de pensar em tal coisa bocejamos de tédio. Além disso, esse sistema não tinha por base um clientelismo suficiente. Às vezes ainda acontecia que graças a esse sistema se contratassem professores unicamente com base nas suas competências científicas, e não necessariamente por ele ser o protegido de um mandarim local.

(...)

DEMOS AO ALUNO UM CONFORTO FOFINHO
Autonomia, pois sim, mas para os alunos nem pensar! Convém não exagerarmos. Mal põem os pés na universidade, os pobres coitados sentem-se perdidos. A autonomia é uma coisa de que nunca ouviram falar, não sabem o que é, não lha vamos impor. Têm 19 anos, são maiores de idade, votam, sabem conduzir um carro, viajar na Internet, ter relações amorosas, manifestar-se contra a lei Pécresse, mas ainda são muito pequeninos para serem autónomos na universidade. A ministra, na sua maternal sabedoria, decidiu que é necessário haver um adulto, «o professor referente», para proteger cada um desses pequerruchos, limpar-lhe as lágrimas, assoá-lo, mostrar-lhe com dedo amigo onde estão os horários. É uma medida coerente com a profissionalização, porque o bom profissional, como toda a gente sabe, é uma criatura tímida, dependente. E é coerente também com a geral filosofia da reforma. Porque, sabendo o aluno fazer um desenhinho, já se lhe pode dar um bombom, e bem assim a licenciatura.»

Na mesma revista, outro artigo para reflectir, agora uma análise nacional intitulada «O Processo de Bolonha e o futuro da universidade». No mesmo espírito, indica-se «The University in Ruins», o livro de Bill Readings, professor de Literatura Comparada na Universidade de Montréal.

3 comentários:

susskind disse...

O que e' grave e' a progressiva confusao entre duas instituicoes distintas: a
universidade e a escola.


A universidade e' um local onde se deveria fazer investigacao, cultivar os
varios campos do saber pelo seu valor intrinseco sem preocupacoes de aplicacao pratica,
formar novos cientistas/investigadores e proporcionar uma educacao mais vasta para
aqueles que por la' estudam e depois se encaminham para outros percursos. A curto prazo
a mais valia resultante de boas universidades - para alem das suas funcoes de producao
de novo conhecimento - e' a formacao de pessoas capazes de desenvolver um pensamento
critico independente. A longo prazo, o retorno e' impossivel de prever em detalhe, mas a
Historia mostra-nos que as aplicacoes inovadores de hoje resultam da acumulacao de
conhecimento desinteressado produzido em instituicoes universitarias, sem fins de
aplicacao, ao longo de decadas.

Por outro lado, deveriam existir as escolas --- onde a investigacao nao e' a prioridade
--- em que as pessoas podem concentrar-se apenas na aprendizagem dos conhecimentos
tecnicos necessarios para um dado conjunto de profissoes.

O que esta' a acontecer e' uma 'apropriacao' das universidades publicas e dos dinheiros
publicos para formar tecnicos 'a la carte de acordo com as especificacoes produzidas
pelas empresas e corporacoes do sector privado. Os valores academicos, culturais,
sociais, que se traduziam no ideal da formacao integral dos individuos, sao
progressivamente substituidos por um unico nao-valor e objectivo: o dinheiro e a sua
acumulacao.

E' claro que, mesmo que este cenario se concretize, nao vao desaparecer as boas
universidades. Pelo contrario, um numero reduzido de universidades de elite sera'
garantido para o usufruto daqueles que nao apenas entendem o seu papel fundamental para
a formacao de individuos 'completos' , como sabem quao cruciais sao para a manutencao do
seu proprio estatuto social.

MP-S

alvares disse...

"universidades publicas e dos dinheiros
publicos para formar tecnicos 'a la carte de acordo com as especificacoes produzidas
pelas empresas e corporacoes do sector privado."
Caro Miguel... Em Portugal nem isso acontece... As universidades portuguesas estão transformadas em crentros de emprego para doutores, onde o mais importante é manter o "tacho" e manter a concorrência longe...

QC disse...

UAU! Grande reflexão!!
Será que com a idade que tens ( nem imagino) não precisas de humanos com quem falar??? Passaste pela U sem Mestres?? Fizeste o Doutoramento sem orientador??
Nunca consultas-te quem quer que fosse?
Oh! Jovem senhora isso tem um nome presunção. É por essas e outras que muito adultozinho se suicida (percebes agora???)! Essa cartilha da autonomia não fica beliscada se existir uma personalização da Universidade, do seu conceito, partilha e vivência por um “Responsável” mais familiarizado. Aliás da vaga memória que tenho do Jogo das Contas de Vidro do Herman Hesse, o teu comentário sai desfasado daquilo a que a Universidade, acima de tudo, deveria ter a capacidade de transmitir. Eu digo-te: PARTILHA. E se por ti não chegas lá, eu acresço: CONFIANÇA. Pois. Mas isso é coisa rara. A presunção não deixa. A impostura também não. E tratar o conceito de Autonomia de cor, simplesmente: enterra.
Revê o que pensas e como pensas. Não revela saúde reflexiva, apenas bolor conceptual caduco.

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