Respondi-lhe na altura que nunca tinha pensado nisso e portanto não lhe sabia responder, só tinha a certeza que a água não tinha nenhuma transição electrónica no vísivel mas que ia procurar e logo lhe diria.
O que encontrei, para além de uma explicação científica para o fenómeno na revista de Educação Química (J. Chem. Edu.), foi deveras interessante. Achei conveniente um pequeno preâmbulo para que não persistam dúvidas nos nossos leitores a propósito de (mais) pseudo-ciências que encontrei na pesquisa das «cores» da água, aparentemente a espécie química de eleição para banhas da cobra New Age.
Há uns tempos escrevi sobre o fascínio do ser humano pela cor, um arquétipo que nos acompanha desde os primórdios da História. Embora este fascínio humano tenha associado luz e cor muito cedo- nomeadamente Epicuro atribuía a percepção da cor aos átomos que emanariam dos vários objectos -, foi necessário esperar pela Renascença e pelo trabalho pioneiro de Andreas Vesalius, que começou a quebrar a proibição da dissecação de cadáveres, para o estudo da anatomia do olho começar a lançar alguma luz sobre a nossa compreensão dos mecanismos da visão. De facto, durante toda a Idade Média perdurou a ideia bizarra, inspirada em Aristóteles que pensava que um objecto olhado alterava o meio entre ele e os olhos, de que seriam uma espécie de emissões oculares que ao incidirem nos objectos os revelariam.
Assim, depois de estudada a anatomia do olho, no século XVII descobriu-se que era a retina e não a córnea a responsável pela detecção da luz, em grande parte devido ao trabalho de Johannes Kepler e René Descartes. A figura que inicia o post, retirada do livro de 1644 Principles of Philosophy, ilustra a teoria da visão de Descartes, que propunha que os raios de luz impressionavam partículas «subtis» nos olhos, e que depois de impressa o que Kepler chamou «pictura», esta seria enviado à glândula pineal, que para Descrates servia de ligação entre mente e corpo, res cogitans e res extensa.
Embora muitos cientistas se tenham debruçado sobre a visão e a história da evolução do nosso conhecimento sobre este fenómeno seja fascinante, vou apenas referir os pontos relacionados com as «partículas subtis» de Descartes, espécies impressionáveis pela luz, ou seja, a descoberta da (foto)química da visão.
A estrutura anatómica da retina foi descrita em meados do século XVIII por Antony van Leeuwenhoek que em 1742 descobriu junto ao epitélio pigmentado os bastonetes e cones, assim chamados devido ao seu formato quando vistos ao microscópio que os identificou.
Mais de um século depois, em 1851, Heinrich Müller publica na revista Zeitschrift für Wissenschaftliche Zoologie o artigo Zur Histologie der Netzhaut em que descreve a pigmentação vermelha dos bastonetes, cor que é então atribuída à hemoglobina. Uns anos depois, Max Schultze no artigo Zur Anatomic and Physiologic der Retina (1866), escreve que os cones são os receptores de cor nos olhos e os bastonetes não são sensíveis à cor, mas são muito sensíveis a baixos níveis de luminosidade.
É a Franz Christian Boll que se atribui a descoberta do «pigmento»da visão, que concluiu ser único aos bastonetes da retina. Boll chegou a esta conclusão após estudos exaustivos com retinas de rãs e descreveu as suas conclusões num artigo histórico (Boll F. «Zur Anatomie und Physiologie der Retina», Arch. Anat. Physiol, 1877).
No artigo, Boll escreveu que «A cor básica da retina é consumida constantemente in vivo pela luz que incide nos olhos. Um tempo de acção mais longo da luz branqueia completamente a retina. No escuro, in vivo, a cor é regenerada. Esta alteração nos segmentos mais exteriores dos bastonetes fazem indisputavelmente parte do processo de visão». Boll sugeriu que estes segmentos continham uma substância especial que transmitia a impressão da luz ao cérebro por um processo fotoquímico. Expondo rãs a luz monocromática obtida através de prismas, Boll descobriu que a cor vermelha das retinas se mantinha quando irradiada com luz vermelha, «desbotava» banhada em luz amarela e desaparecia rapidamente em luz verde.
Infelizmente pouco depois de publicado o artigo referido, pioraram os problemas de saúde que ditaram a sua saída da Alemanha para climas mais amenos e em 1879 Boll morreu com 30 anos em Davos, na Suiça, muito provavelmente de tuberculose.
Entretanto, o artigo de Boll inspirara Willy Kühne, professor de fisiologia na universidade de Heidelberg, que produziu um trabalho verdadeiramente prodigioso traduzido na publicação de 22 artigos sobre a retina no Untersuchungen aus dem physiologischen Institute der Universität Heidelberg entre 1878 e1882. Kühne chamou ao pigmento, que identificou correctamente como sendo uma proteína, Sehpurpur, púrpura visual ou rodopsina. O seu trabalho permitiu-lhe concluir que a função da rodopsina era ser decomposta pela luz (e regenerada de volta à forma corada) e que os produtos desta reacção fotoquímica estimulavam um impulso nervoso para o cérebro, ou seja, identificou uma alteração química iniciada pela luz que despoletava todo o mecanismo da visão.
Kühne investigou a retina de animais sem bastonetes, como reptéis, e descobriu que os cones apresentavam pigmentos que não eram descorados pela luz pelo que chamou a este processo «ver sem púrpura visual». Só muitos anos depois se descobriu que a púrpura visual é um complexo de uma apoproteína trasmembranar, a opsina, complexada com um pigmento amarelado (de estrutura muito semelhante ao β-caroteno das cenouras) o cis-retinal. Pequenas variações na sequência das opsinas traduzem-se na alteração da gama de comprimentos de onda a que a rodopsina correspondente é fotossensível.
No Homem existem três tipos de cones, com sensibilidade (máxima) aos comprimentos de onda 410 (azul), 531 (verde) nm e 558 (amarelo) nm, designados cones S, M, L. Outras espécies animais têm diferentes rodopsinas e assim são sensíveis a outras gamas de comprimentos de onda. Por exemplo, os mamíferos são normalmente dicromáticos e muitas espécies nem sequer possuem visão de cor.
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Assim, Epicuro estava de certa forma certo ao pensar que a nossa percepção de cor tem a ver com «choques» de partículas com os olhos. A luz vísivel é a radiação electromagnética que os nossos olhos são capazes de detectar, com comprimentos de onda entre 400 (azul) e 700 nm (vermelho), e o mecanismo da visão despoleta-se com a absorção pelo retinal de fotões visíveis que são emanados ou reflectidos por um determinado objecto.
Por seu lado, a absorção de radiação na gama do ultra-violeta/vísivel tem a ver com a «estrutura» electrónica de uma determinada espécie química, isto é, uma espécie só absorve radiação quando esta está em ressonância com a molécula ( tem a mesma energia que a diferença de energia entre dois níveis próprios da espécie em questão) e a diferença entre estados electrónicos das espécies químicas cai na zona do UV/vísivel. As espécies coradas absorvem no vísivel e reflectem (as opacas) ou deixam passar (as transparentes) o resto do espectro vísivel. Falta assim à radiação que chega aos nossos cones quando olhamos para um objecto corado a gama de comprimentos de onda por ele absorvida. A cor desse objecto é a cor complementar da que foi absorvida, por exemplo, uma substância que absorva no azul (por volta de 400 nm) é amarela e uma substância que absorva no verde (por volta de 500 nm) é vermelha.
A água não apresenta transições electrónicas no vísivel pelo que é (normalmente) incolor. A razão porque grandes massas de água, com vários metros de profundidade, apresentam várias tonalidades de azul é muito interessante mas mais interessante, pela negativa agora, foi o que encontrei enquanto pesquisava o tema, nomeadamente um negócio florescente (ou fluorescente?) de venda de acessórios para produção de água «holística» colorida.
2 comentários:
Sempre achei que grandes massas de água reflectem a cor do céu: azul quando o céu está azul, cinzento quando cinzento, etc. Não é assim? Obrigado pelo post e pelo trabalho que de certo tem para os compor.
Muito interessante! Nunca me tinha ocorrido que é muito mais eficiente detectar a côr não por selecção mas por elimação, obtendo primeiro o "negativo".
Eu é que já me deixei de electrónicas, senão ainda me atrevia a testar a aplicação deste princípio nos detectores de imagem.
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