domingo, 1 de junho de 2008

As cores da água - visão

Numa das aulas em que se falava das propriedades anómalas da água um aluno perguntou-me se afinal a água era ou não azul e se a designação colorida do nosso planeta se deve não à cor intrínseca da água mas a um qualquer fenómeno físico como reflexão ou a dispersão que torna azul o céu.

Respondi-lhe na altura que nunca tinha pensado nisso e portanto não lhe sabia responder, só tinha a certeza que a água não tinha nenhuma transição electrónica no vísivel mas que ia procurar e logo lhe diria.

O que encontrei, para além de uma explicação científica para o fenómeno na revista de Educação Química (J. Chem. Edu.), foi deveras interessante. Achei conveniente um pequeno preâmbulo para que não persistam dúvidas nos nossos leitores a propósito de (mais) pseudo-ciências que encontrei na pesquisa das «cores» da água, aparentemente a espécie química de eleição para banhas da cobra New Age.

Há uns tempos escrevi sobre o fascínio do ser humano pela cor, um arquétipo que nos acompanha desde os primórdios da História. Embora este fascínio humano tenha associado luz e cor muito cedo- nomeadamente Epicuro atribuía a percepção da cor aos átomos que emanariam dos vários objectos -, foi necessário esperar pela Renascença e pelo trabalho pioneiro de Andreas Vesalius, que começou a quebrar a proibição da dissecação de cadáveres, para o estudo da anatomia do olho começar a lançar alguma luz sobre a nossa compreensão dos mecanismos da visão. De facto, durante toda a Idade Média perdurou a ideia bizarra, inspirada em Aristóteles que pensava que um objecto olhado alterava o meio entre ele e os olhos, de que seriam uma espécie de emissões oculares que ao incidirem nos objectos os revelariam.

Assim, depois de estudada a anatomia do olho, no século XVII descobriu-se que era a retina e não a córnea a responsável pela detecção da luz, em grande parte devido ao trabalho de Johannes Kepler e René Descartes. A figura que inicia o post, retirada do livro de 1644 Principles of Philosophy, ilustra a teoria da visão de Descartes, que propunha que os raios de luz impressionavam partículas «subtis» nos olhos, e que depois de impressa o que Kepler chamou «pictura», esta seria enviado à glândula pineal, que para Descrates servia de ligação entre mente e corpo, res cogitans e res extensa.

Embora muitos cientistas se tenham debruçado sobre a visão e a história da evolução do nosso conhecimento sobre este fenómeno seja fascinante, vou apenas referir os pontos relacionados com as «partículas subtis» de Descartes, espécies impressionáveis pela luz, ou seja, a descoberta da (foto)química da visão.

A estrutura anatómica da retina foi descrita em meados do século XVIII por Antony van Leeuwenhoek que em 1742 descobriu junto ao epitélio pigmentado os bastonetes e cones, assim chamados devido ao seu formato quando vistos ao microscópio que os identificou.

Mais de um século depois, em 1851, Heinrich Müller publica na revista Zeitschrift für Wissenschaftliche Zoologie o artigo Zur Histologie der Netzhaut em que descreve a pigmentação vermelha dos bastonetes, cor que é então atribuída à hemoglobina. Uns anos depois, Max Schultze no artigo Zur Anatomic and Physiologic der Retina (1866), escreve que os cones são os receptores de cor nos olhos e os bastonetes não são sensíveis à cor, mas são muito sensíveis a baixos níveis de luminosidade.

É a Franz Christian Boll que se atribui a descoberta do «pigmento»da visão, que concluiu ser único aos bastonetes da retina. Boll chegou a esta conclusão após estudos exaustivos com retinas de rãs e descreveu as suas conclusões num artigo histórico (Boll F. «Zur Anatomie und Physiologie der Retina», Arch. Anat. Physiol, 1877).

No artigo, Boll escreveu que «A cor básica da retina é consumida constantemente in vivo pela luz que incide nos olhos. Um tempo de acção mais longo da luz branqueia completamente a retina. No escuro, in vivo, a cor é regenerada. Esta alteração nos segmentos mais exteriores dos bastonetes fazem indisputavelmente parte do processo de visão». Boll sugeriu que estes segmentos continham uma substância especial que transmitia a impressão da luz ao cérebro por um processo fotoquímico. Expondo rãs a luz monocromática obtida através de prismas, Boll descobriu que a cor vermelha das retinas se mantinha quando irradiada com luz vermelha, «desbotava» banhada em luz amarela e desaparecia rapidamente em luz verde.

Infelizmente pouco depois de publicado o artigo referido, pioraram os problemas de saúde que ditaram a sua saída da Alemanha para climas mais amenos e em 1879 Boll morreu com 30 anos em Davos, na Suiça, muito provavelmente de tuberculose.

Entretanto, o artigo de Boll inspirara Willy Kühne, professor de fisiologia na universidade de Heidelberg, que produziu um trabalho verdadeiramente prodigioso traduzido na publicação de 22 artigos sobre a retina no Untersuchungen aus dem physiologischen Institute der Universität Heidelberg entre 1878 e1882. Kühne chamou ao pigmento, que identificou correctamente como sendo uma proteína, Sehpurpur, púrpura visual ou rodopsina. O seu trabalho permitiu-lhe concluir que a função da rodopsina era ser decomposta pela luz (e regenerada de volta à forma corada) e que os produtos desta reacção fotoquímica estimulavam um impulso nervoso para o cérebro, ou seja, identificou uma alteração química iniciada pela luz que despoletava todo o mecanismo da visão.

Kühne investigou a retina de animais sem bastonetes, como reptéis, e descobriu que os cones apresentavam pigmentos que não eram descorados pela luz pelo que chamou a este processo «ver sem púrpura visual». Só muitos anos depois se descobriu que a púrpura visual é um complexo de uma apoproteína trasmembranar, a opsina, complexada com um pigmento amarelado (de estrutura muito semelhante ao β-caroteno das cenouras) o cis-retinal. Pequenas variações na sequência das opsinas traduzem-se na alteração da gama de comprimentos de onda a que a rodopsina correspondente é fotossensível.

No Homem existem três tipos de cones, com sensibilidade (máxima) aos comprimentos de onda 410 (azul), 531 (verde) nm e 558 (amarelo) nm, designados cones S, M, L. Outras espécies animais têm diferentes rodopsinas e assim são sensíveis a outras gamas de comprimentos de onda. Por exemplo, os mamíferos são normalmente dicromáticos e muitas espécies nem sequer possuem visão de cor.
Quando o cis-retinal é excitado por um fotão, isomeriza para a forma (all)trans. A proteína complexada com a forma trans do cromóforo é designada por batorodopsina. Esta forma trans do retinal não se encaixa bem na proteína de forma que adopta uma conformação torcida e, ao fim de uma série de passos muito rápidos, é «expulso» da proteína ( explicando a perda de cor descoberta por Boll).

Assim, Epicuro estava de certa forma certo ao pensar que a nossa percepção de cor tem a ver com «choques» de partículas com os olhos. A luz vísivel é a radiação electromagnética que os nossos olhos são capazes de detectar, com comprimentos de onda entre 400 (azul) e 700 nm (vermelho), e o mecanismo da visão despoleta-se com a absorção pelo retinal de fotões visíveis que são emanados ou reflectidos por um determinado objecto.

Por seu lado, a absorção de radiação na gama do ultra-violeta/vísivel tem a ver com a «estrutura» electrónica de uma determinada espécie química, isto é, uma espécie só absorve radiação quando esta está em ressonância com a molécula ( tem a mesma energia que a diferença de energia entre dois níveis próprios da espécie em questão) e a diferença entre estados electrónicos das espécies químicas cai na zona do UV/vísivel. As espécies coradas absorvem no vísivel e reflectem (as opacas) ou deixam passar (as transparentes) o resto do espectro vísivel. Falta assim à radiação que chega aos nossos cones quando olhamos para um objecto corado a gama de comprimentos de onda por ele absorvida. A cor desse objecto é a cor complementar da que foi absorvida, por exemplo, uma substância que absorva no azul (por volta de 400 nm) é amarela e uma substância que absorva no verde (por volta de 500 nm) é vermelha.

A água não apresenta transições electrónicas no vísivel pelo que é (normalmente) incolor. A razão porque grandes massas de água, com vários metros de profundidade, apresentam várias tonalidades de azul é muito interessante mas mais interessante, pela negativa agora, foi o que encontrei enquanto pesquisava o tema, nomeadamente um negócio florescente (ou fluorescente?) de venda de acessórios para produção de água «holística» colorida.

2 comentários:

Daniel Marinha disse...

Sempre achei que grandes massas de água reflectem a cor do céu: azul quando o céu está azul, cinzento quando cinzento, etc. Não é assim? Obrigado pelo post e pelo trabalho que de certo tem para os compor.

alf disse...

Muito interessante! Nunca me tinha ocorrido que é muito mais eficiente detectar a côr não por selecção mas por elimação, obtendo primeiro o "negativo".

Eu é que já me deixei de electrónicas, senão ainda me atrevia a testar a aplicação deste princípio nos detectores de imagem.

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