terça-feira, 5 de março de 2024

HAVERÁ ALGO DE MAIS NOBRE NA PROFISSÃO DOCENTE DO QUE ENSINAR OS ALUNOS?

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins
 
Uma das promessas (falaciosas) em que assenta a tentativa de imposição das antigas, novas e hipernovas tecnologias da informação na educação escolar é a de que elas libertam os professores da tarefa de ensino, podendo estes, por fim, realizar outras tarefas "criativas" e "edificantes". Isto significa, em concreto, que os professores poderão (e deverão) deixar de transmitir conhecimentos escolares e de estimular capacidades que os alunos, como seres humanos que são, têm em potência. Tornar-se-ão guias, orientadores... ou, numa linguagem mais "moderna", líderes, mentores, coachs...

Esta nota é a propósito de uma entrevista publicada no Diário de Notícias com o título “O uso de IA no ensino pode libertar os professores para as tarefas mais nobres da sua profissão”. O entrevistador foi o jornalista Jorge Andrade e o entrevistado um professor catedrático do Instituto Superior Técnico, no Instituto de Telecomunicações; o contexto foi a realização de uma conferência ("IA pode mudar processos de ensinar e de avaliar alunos?”) integrada num ciclo designado por "Da Inteligência Humana à Inteligência Artificial (IA)", realizado recentemente na Academia das Ciências de Lisboa. 

Reproduzimos abaixo algumas passagem da dita entrevista, respeitantes: 1) ao contexto económico que justifica o acolhimento das hipernovas tecnologias na educação escolar; 2) às concepções (muito discutíveis) de aprendizagem; e 3) às concepções (não menos discutíveis) de ensino, que foram aquelas que mais nos chamaram a atenção pela razão que acima enunciámos.

1)
"(...) o desenvolvimento da aprendizagem automática (AA) e da Inteligência Artificial (IA) está intimamente ligado a factores económicos. No final do século XX, o modelo de negócio dominante na Internet era o acesso a conteúdos pagos. Com a generalização explosiva da Internet e dos smartphones, a superabundância desvalorizou o acesso, transferindo enorme importância e valor para a procura e a recomendação. O modelo de negócio associado à procura passou para a publicidade direcionada a cada utilizador e para as redes sociais. Aí, o negócio gira em torno da captura e conversão da atenção humana em valor comercial. Essa competição pela atenção e informação acerca dos utilizadores impulsionou o desenvolvimento de tecnologias de IA/AA, com avultadíssimos investimentos em infraestruturas, recursos humanos e investigação. As empresas líderes nesse campo (...) disponibilizam ferramentas gratuitamente e recursos que antes eram restritos a especialistas. Esta cultura de abertura é-lhes benéfica pois ajuda a formar as grandes quantidades de especialistas, de que precisam, na utilização destes recursos, podendo ser visto como uma forma de soft power (...)"
2)
A IA tem o potencial de personalizar a aprendizagem, fornecer tutoria inteligente e criar uma experiência educacional mais adaptada, eficaz e acessível. Por exemplo, através da análise de dados de desempenho, ou do estilo de aprendizagem e pontos fortes e fracos dos alunos, um sistema de tutoria pode criar planos de aulas individualizados e adaptativos para cada aluno. Na educação, a IA/AA pode ser usada para desenvolver plataformas de aprendizagem online, aplicações de tutoria e ferramentas de avaliação automática. Embora a IA na educação ainda esteja em desenvolvimento, o seu potencial para revolucionar a forma como aprendemos e ensinamos é enorme. Há motivos para pensar que o futuro da educação será mais personalizado e acessível (...). A IA/AA permite levar à educação a personalização e adaptação do ensino às características, interesses e objectivos de cada estudante (...).

3)

Se os alunos se habituarem a recorrer a IA para obter respostas ou gerar conteúdos de modo acrítico, a sua capacidade de pensamento crítico e de formar opiniões independentes podem ser prejudicadas. Os professores precisam de garantir que estas técnicas são usadas para auxiliar a aprendizagem, não para a substituir. Um outro risco é a exacerbação de desigualdades. Nem todas as escolas ou alunos terão acesso igual a ferramentas avançadas de IA. Isso pode aumentar o desnível de desempenho entre alunos de diferentes origens socioculturais, se não se garantir o acesso equitativo a essas tecnologias. Se os dados usados para treinar os sistemas de IA educacionais forem enviesados ou insuficientemente abrangentes, por exemplo, contendo apenas certos subgrupos da população, estes sistemas podem perpetuar esses vieses (...). Finalmente, como em qualquer sistema que adquire grandes quantidades de dados dos utilizadores, há riscos de fugas ou de má utilização desses dados, pelo que é imperativo usar medidas de segurança e privacidade de dados (...).
A utilização de IA/AA no ensino não dispensa os professores, mas permitem-lhes focar naquilo que é o seu papel fundamental: o estímulo da curiosidade e do desejo de aprender. Para além das circunstâncias e revoluções tecnológicas do momento, a essência do ensino e aprendizagem está no estímulo do interesse e curiosidade por um conjunto coerente de matérias e na capacidade de orientar e ajudar a satisfazer essa curiosidade (...). Focando-se no estímulo da curiosidade, os professores incutem o gosto pela aprendizagem ao longo da vida, característica crucial num mundo em constante mudança, pois é fundamental para o crescimento pessoal e profissional (...).
O uso de ferramentas de IA no ensino pode libertar os professores para as tarefas mais nobres da sua profissão: motivação e aconselhamento académico; estabelecimento de relações empáticas com os estudantes, compreendendo as suas necessidades e dando apoio emocional; promoção de interação entre os estudantes e de um ambiente de diálogo e cooperação; ensinar os estudantes a questionar, argumentar e a considerar as implicações éticas do conhecimento. O que se pede aos professores, na minha opinião, é que tentem usar a IA para ganhar espaço e tempo para assumir estes papéis, que são e continuarão a ser fundamentais (...). Mas, mais importante, é o que se pede a quem tutela o ensino: que compreenda que estas são as responsabilidades mais importantes dos professores e que são decisivas, com ou sem IA, para a formação de futuros cidadãos bem formados, esclarecidos, responsáveis, solidários, capazes de aprender e de se desenvolver ao longo da vida. A IA não deve ser usada para simplesmente aumentar a “eficiência” do ensino, mas sim para valorizar o papel dos professores (...).

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