Minha recensão no último «As Artes entre as Letras»
Os escritos memorialistas não abundam entre nós. Sobre o nosso século XX
ocorre-me logo as Memórias de Rómulo de Carvalho (Fundação Gulbenkian,
2010), endereçado aos tetranetos: «Pois, queridos filhos dos netos dos meus
netos, tão queridos quanto é certo que nunca teremos trato pessoal.» Fátima
Campos Ferreira (FCF), a conhecida jornalista do programa Prós e Contras
da RTP (18 anos no ar!), decidiu em boa hora legar um testemunho, para os seus
«netos e bisnetos, e todos os que virão,» de «mais um episódio da
incomensurável história da aventura humana.» O livro intitula-se O Infinito Está
nos Olhos do Outro e subintitula-se Diz-lhes quem fomos - Uma história
de família (Avenida da Liberdades Editores). A frase do título é de Bento
de Jesus Caraça, tendo chegado à autora através do seu pai, funcionário
superior das Alfândegas, que foi aluno do grande matemático e humanista. Este esclareceu,
num dos seus escritos, o valor em cada geração da árvore humana: «Só figuram de
folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores, cujo ideal de
vida se concentrou egoisticamente em si e que não cuidaram de construir para o futuro
pela resolução, em bases largas, dos problemas que lhes estavam postos, numa
elevada compreensão do seu significado humano.» Num outro, defendeu que a
cultura deve «tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade humana.
Não apenas a solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou
da sua pátria – solidariedade do homem para com todos os homens do mundo.»
O livro de FCF, conforme esclarece o general Ramalho Eanes no prefácio, não
é uma autobiografia, pois a autora interrompe a história na sua adolescência. É
um retrato, naturalmente enternecido pela memória e pela gratidão, da sua família:
os bisavós, avós, pais, tios, etc. Mas é também o retrato do país ao longo do
século XX, visto do prisma da micro-história (a autora, para além do curso de Jornalismo,
tem um de História feito na Universidade do Porto). O dever da memória foi
transmitido pela mãe: «Diz-lhe quem fomos». De facto, é um imperativo deixar um
registo escrito das experiências de vida (que são evidentemente únicas em cada
pessoa) para que a história humana fique mais rica. Deixar memórias não é um
acto de vaidade, mas sim de Humanidade. Graças a FCF ficamos a saber a história
da sua família, das suas dificuldades em tempos de guerras, doenças e crises
económicas, mas também da sua esperança em dias melhores. Acima de tudo, ficamos
a saber da solidariedade – ou melhor, amor - que não só garante a coesão
familiar como é sustentáculo dessa esperança.
Escreve a autora na introdução, com inexcedível afecto: «Recordo coisas
simples. O rol de compras da mercearia, a forma cuidadosa como a minha mãe
contava e guardava o dinheiro-. Os olhos de compaixão da minha avó ao saber que
alguém sofra. Os lábios cerrados só meu pai em ocasiões misteriosas para mim, fui
intuindo, vendo, e mais tarde perguntando.» Na parte I «Os meus mais velhos»,
são retratados os avós paternos, Luís (um nome recorrente na família) e Deolinda,
e maternos, Álvaro e Francisca. Os primeiros são rurais do litoral minhoto,
tendo o avô abandonado o seminário para casar ao arrepio da família. Os
segundos, provenientes de Salvaterra de Magos e de Porto de Mós, tiveram em
Lisboa uma vida mais urbana. Destaca-se como protagonista a avó Chica, que aos
doze anos ficou, no pico da pneumónica, sem os pais e dois irmãos. «Alta,
charmosa, vaidosa», fez-se à vida, com uma força inquebrantável. A lembrança da
sua casa na Baixa Pombalina em Lisboa está bem expressa no livro. A parte II é
dedicada aos pais. O pai de FCF (o mais novo de seis irmãos, que estudou Economia),
conheceu a mãe (filha única, que fez o quinto ano e trabalhou na CGD) em
Lisboa. FCF nasceu no Hospital do Ultramar em Lisboa, quando o seu pai já
estava colocado na distante fronteira de Valença como aduaneiro. FCF foi com
meses para lá, tendo no caminho sido baptizada em Fátima (onde os seus pais
tinham casado). O pai era um bibliófilo que transmitiu aos seus dois filhos o
amor pelos livros (é comovente o relato da paragem do funeral do pai na sua
biblioteca), e a mãe, que deixou o emprego após o casamento (como era costume
na época), era uma senhora elegantíssima, que alimentou uma relação muito
especial com a filha. As partes III e IV são relatos de infância. Os anos de vida
em Valença (a longínqua província, mas paredes meias com a alegria espanhola)
foram para FCF de crescimento e deslumbramento com o mundo. Aos 15 anos o pai
foi colocado na Alfândega no Porto, passou a morar na rua de Serralves e a filha
mudou de um colégio religioso para o Liceu Garcia de Orta do Porto. Não adianto
mais, pois o leitor os poderá encontrar na prosa clara e escorreita de FCF. Mas
digo que se lê rapidamente, como um romance, com a vantagem de o relato estar documentado
por fotografias de família.
Interessado pela ciência e tecnologia, procurei marcas do seu impacto social.
E encontrei-as amiúde. Desde logo na introdução ao explicar aos netos a força
misteriosa do amor: «apesar das máquinas e robôs, que já dominam e vão dominar
cada vez mais o vosso mundo». Depois, recuando no tempo, e, à medida que se
sucedem os eventos políticos (a Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo, a Guerra
Colonial, a Revolução do 25 de Abril), as descrições do rádio a válvulas na
casa familiar (o «Aparelho»), dos transístores, dos espantosos primeiros satélites
russos, a prodigiosa chegada do homem à Lua em 1969, tinha FCF dez anos e já
havia televisão a preto e branco (as emissões regulares da RTP começaram no exacto
dia do casamento dos pais, em 1957), e, mais perto de nós, dos computadores. No
final, FCF confessa-se admirada com o poder da ciência, embor7a ciente da nossa
ignorância: «Sabemos hoje em mais do que há dois ou três mil anos. Por exemplo,
cada vez compreendemos mais as dinâmicas das energias. Há um sem fim de
sistemas solares, há exoplanetas, e a sua descoberta intensificou o interesse
na busca de vida extraterrestre. (…) O
mais provável é que tenhamos outras companhias neste Universo inesgotável.»
Mas, neste canto do Universo, temos a companhia do Outro (grafo com maiúscula, como
a autora) e vivemos abundantes e inesquecíveis provas de amor, consolidando
assim a certeza da Humanidade.
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