Depois de publicar Ética e Educação nos Quatro Evangelhos (ver recensões, por exemplo, aqui e aqui), Carlos Fernandes Maia, investigador experimentado em matéria de filosofia, voltou ao estudo da relação entre religião, ética e educação. O resultado foi um novo livro, na forma de ensaio, a que deu o título: Ética e Educação no Alcorão: quid novi, quid veteris.
Teve Carlos Fernandes Maia a amabilidade de me pedir um texto para integrar as primeiras páginas deste livro. Foi com gosto que o escrevi, reconhecendo, porém, que as palavras que o compõem, e que abaixo reproduzo, estão longe de fazer jus ao imenso, profundo e elaborado trabalho do autor.
"Tanto quanto nos é dado saber, nunca existiu comunidade sem expressão religiosa. Desde os grupos mais remotos, diminutos e rudimentares às sociedades mais actuais, alargadas e sofisticadas, vemo-la ocupar um lugar central nas esferas colectiva e individual. E, não obstante o menor ou maior distanciamento de tudo o que pode ser considerado mundano, nunca se restringe a si própria: influencia outras expressões, sendo influenciada por elas. É o caso da educação. Religião e educação afiguram-se, de resto, duas das mais sólidas revelações do que somos – e do que desejamos ser – como pessoas inquietas, num universo que nos inquieta.
Esperar-se-ia, pois, que a academia contemporânea privilegiasse o estudo dessa estreita ligação, mas não tem sido assim, ou não o tem sido de modo explícito e com os esquemas racionais adequadas. De facto, do passo civilizacional que foi a secularização do Ocidente, espaço em que situo a presente nota, tem resultado sobretudo uma dissociação.
Do ponto de vista da educação pública, que aqui adopto, resguardaram-se conhecimentos religiosos da Antiguidade Clássica – que, em tempos mais recentes e por outras razões, tendem a esvanecer-se – e afastaram-se conhecimentos das três religiões do Livro: Cristianismo, Judaísmo e Islamismo. Delas restaram apontamentos na História, na Filosofia e pouco mais. A legítima preocupação de laicismo, assumida pelo Estado Moderno, teve o efeito de confundir o conhecer com o doutrinar. Disse Paul Ricoeur (1993, p.73):
“Com o objectivo de respeitar todas as religiões, todas as crenças, a escola pública deixou de referir qualquer uma. Existem hoje crianças que nunca ouviram falar dos profetas de Israel, mas que conhecem de cor os deuses do Olimpo. É uma lacuna grave (…). Tanto me oponho ao facto de se imporem escolhas, como sou favorável à apresentação de conteúdos entre os quais é necessário escolher”.
Acresce que a progressiva entrega da educação à escola fez aligeirar o encargo de outras entidades educativas capazes de se deterem na religião, ainda que restrita à que professem; também o quotidiano se viu progressivamente preenchido por apelativas solicitações mediáticas, direccionadas para o superficial e imediato. Isto, e mais do que isto, deveria obrigar-nos, como educadores, a parar para perguntar, como faz Anselmo Borges (2022):
“as religiões estão sempre presentes. Mas quem tem delas um conhecimento mínimo?” E, exemplifica, “quantos se lembram que Abraão está na base das três religiões?”
Não obstante este desconhecimento, muitos milhões de fiéis das religiões monoteístas abraâmicas, e também os agnósticos, unem-se e desunem-se pelas palavras da Tora, da Bíblia e do Alcorão. Que palavras poderosas são as que compõem os três livros, diferentes dos livros comuns por terem a marca do sagrado? E, sobretudo, como podem elas responder ao dever ético de construção do ser humano por via da educação?
Profundamente empenhado neste problema, Carlos Fernandes Maia, recorrendo à sua extensa e sólida preparação académica, na qual se inclui a educação, a religião e a ética, voltou ao estudo da Bíblia. O escrutínio, guiado por esta tríade, foi apresentado na obra Ética e educação nos quatro evangelhos, publicado em 2019. Terminado esse trabalho, orientou o seu estudo para o Alcorão, o que resultou na obra que agora se vem a lume com o título Ética e Educação no Alcorão: quid novi, quid veteris.
Não fazendo a exploração do conteúdo das obras, que confio ao leitor, presto atenção ao que, conferindo-lhes unidade, tem uma inequívoca relevância educativa: o desbravamento, em profundidade, do texto, de cada texto, sondando as palavras, de modo que elas digam o que podem dizer, sem perder o discurso, no seu todo, com a preocupação de encontrar sentidos possíveis. Trata-se do exercício essencial que é o conhecer para compreender.
Em concreto, conhecer a dimensão religiosa do humano para avançar na compreensão do humano. E, tendo em conta o pensamento do autor, presumo que o intento seja delinear possibilidades susceptíveis de concorrer para o fim último da educação, que é o aperfeiçoamento humano.
Destaco, efectivamente, no esforço hermenêutico empreendido, a procura pouco comum do valor intrínseco que a Bíblia e o Alcorão têm na perseguição deste fim. Na verdade, é o valor instrumental que tende a procurar-se quando se invocam: face à urgência de pacificar o mundo, há que promover o diálogo inter-religioso, requerendo-se, para tanto, o entendimento de cada tradição religiosa. Não menosprezando este valor, e admitindo que o diálogo precisa de ser robustecido, julgo que ele terá de assentar no valor-em-si dos livros.
É um tal esforço, de procura de valor, que a academia pode e deve fazer. O que, nas palavras de Gouveia Monteiro (2012, p. 79), requer uma “perspectiva interdisciplinar, não confessional”, que preze a objectividade e a liberdade de pensamento, com independência em relação a qualquer tipo de autoridade. Esta é a postura que Carlos Fernandes Maia declara e que, efectivamente, se confirma nas páginas lidas, nas quais se vê vincada uma intransigente afirmação da dignidade humana. Dignidade que faz sobrepor a ética a opções morais que a negam, mesmo se justificadas na religião.
Voltando ao início, retomando a hipótese do vínculo entre religião e educação, que se deseja pautado pela ética, formulo uma dupla interrogação que, podendo afigurar-se dissonante dela, constitui um desafio ao leitor desta obra: a primeira é de Tomáš Halík (2016, p. 72): “se a religião for expulsa da vida pública, o que é que entrará para o lugar deixado vago?”; a segunda é minha: se a educação escolar pública persistir em manter afastado o conhecimento que investigadores como Carlos Fernandes Maia apuram, a fim de compreender o fenómeno religioso, o que ficará em falta na formação de cada ser humano e na construção da humanidade futura?
Referências:
Borges, A. (2022). As religiões na escola. Diário de Notícias, 8 de Outubro. https://www.dn.pt/opiniao/as-religioes-na-escola-15232795.html.Gouveia Monteiro, J. (2012). À volta das três religiões do Livro. In A. Borges & J. Gouveia Monteiro. As três religiões do Livro (17-22). Imprensa da Universidade de Coimbra.
Halík, T. (2016). Com a hipótese de Deus ou sem ela. In T. Halík & A. Grün. O abandono de Deus: quando a crença e a descrença se abraçam (67-87). Paulinas Editora.
Maia, C. F. (2019). Ética e educação nos quatro evangelhos: uma antropeugogia inadiável. Chiado.
Ricoeur, P. (1993). É importante manter, desde o início, a dimensão política da educação (entrevista de Anita Kechikian a Paul Ricoeur). In A. Kechikian. Os filósofos e a educação (pp. 69-76). Edições Colibri.
1 comentário:
Eu concordo que "nem só de pão vive o Homem". O Cristianismo serviu para apaziguar os chefes dos antigos bárbaros e dar-lhes alguma ilustração em cultura greco-latina. Agora que a barbárie toma conta das nossas escolas EB 1, 2, 3 + JI + S, não me parece que a comissão europeia e a OCDE, consigam, ou queiram, baseadas apenas em critérios económicos, alargar o âmbito das aprendizagens essenciais à ética e à moral que tanta falta nos fazem. Por outro lado, introduzir o estudo de todas as religiões nas escolas e jardins de infância, para habilitar a juventude a saber distinguir o Bem do Mal, seria contraproducente, tendo em vista os milhares de doutrinas que teriam de ser lecionadas num sistema de ensino que se carateriza pela facilidade e falta de rigor. A entropia do sistema iria aumentar. Eu nunca vi surgir, espontaneamente de um terreiro ao abandono nenhuma catedral gótica, nem nenhum Mosteiro da Batalha. Para que não se dê a ruína total, há que trabalhar na construção de um sistema moral, ou religioso, que ponha ordem no novo mundo que está a chegar!
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