Meu artigo saído no número 50 da revista CTS - Revista Iberoamericana de Ciência,
Tecnología e Sociedad, da Argentina:
A Ciência, Tecnologia e
Sociedade (CTS) evoluiu de uma forma extraordinária em Portugal entre 1995,
quando o físico José Mariano Gago se tornou o primeiro titular do Ministério da
Ciência e Tecnologia, e os dias de hoje. Analiso aqui sumariamente a mudança de
panorama neste sector ocorrida nos quase vinte anos desde que, em 2003, foi
publicado o primeiro número da revista CTS – Revista Iberoamericana de Ciência,
Tecnología e Sociedad, que tinha dois sociólogos portugueses no Conselho
Editorial (José Luís Garcia e Maria de Lurdes Rodrigues). O facto de numerosas estatísticas
oficiais portuguesas estarem hoje reunidos na PORDATA – Base de Dados de
Portugal Contemporâneo (www.pordata.pt ),
criada em 2010 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, facilitou bastante
esse trabalho de síntese, tal como facilita o trabalho de quem quiser, em
qualquer altura, conhecer a evolução de Portugal nesta ou noutras áreas, sendo
possível comparar a situação nacional com a de outros países que também
integram a União Europeia.
O investimento em ciência
e tecnologia é convencionalmente medido, para efeitos de comparações
internacionais, em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). O PIB português era,
em 2002, de 180 447 euros, a que correspondia a um valor per capita
de 17 253 euros. Em 2021, o PIB tinha crescido pouco: foi de 195 661
milhões de euros (a preços constantes), tendo crescido desde 1986, ano da
entrada do país na União Europeia, então Comunidade Europeia, até 2008 (em
2002, foi de 180 447 euros), quando ocorreu uma crise financeira global (que
conheceu maior incidência em Portugal em 2011, quando houve necessidade de
auxílio económico pela troika, o conjunto formado pela Comissão Europeia,
pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional). Desde então tem-se
mantido mais ou menos constante (a recente crise pandémica interrompeu a retoma
do crescimento económico que se estava a verificar). Para comparações
internacionais, tem de usar o PIB por habitante. O PIB per capita português
foi, em 2021, de cerca de 23 900 euros, um valor que se situa muito abaixo
da média da União Europeia, que foi de 32 300 euros e também abaixo, por
exemplo, da vizinha Espanha, que foi de 27 200 euros.
O avanço do investimento
na investigação científica e desenvolvimento tecnológico foi enorme no período
considerado. Quando surgiu a revista CTS, Portugal apenas investia 0,70%
do seu PIB em ciência e tecnologia, sendo esse investimento distribuído em
0,24% nas empresas, 0,27% no ensino superior (principalmente remuneração do tempo
dos docentes alocado à investigação em escolas públicas de ensino superior),
0,11% noutros organismos do Estado e 0,08% em instituições privadas sem fins
lucrativos. O investimento total chegou a ser de 1,58% em 2009, mas, com a
crise económica que surgiu depois, sofreu forte queda, tendo a recuperação sido
lenta: só no ano de 2020 esse índice voltou, ao registar 1,62%, a um valor semelhante
ao de 2009. Pode-se falar de uma década perdida na ciência e tecnologia, uma
vez que se interrompeu durante cerca de dez anos o notável crescimento do
investimento neste sector, em proporção do PIB, que se tinha vindo a registar
desde antes de 1986 e que conheceu particular impulso em 2005. No investimento registado
em 2020 é de notar o papel maioritário assumido pela iniciativa privada (empresas),
que foi de 0,92%, embora este número devs ser lido com alguma precaução uma vez
que ele provém de dados fornecidos pelas próprias empresas em inquéritos relacionados
com benefícios fiscais. Mesmo que fosse credível esta forte participação das
empresas no investimento nacional em ciência e tecnologia, ele ainda está longe
do valor que se verifica nos países mais desenvolvidos da Europa, que é cerca
de 66%. A parcela do ensino superior passou para 0,58%, a de outros organismos
do Estado caiu para 0,08% e a das instituições particulares sem fins lucrativos
baixou para 0,03%. Na comparação internacional, o investimento é claramente
insatisfatório: Portugal fica bem atrás da média da União Europeia, que em 2020
era de 2,32%, e muito atrás dos países que são «campeões» do investimento em
ciência e tecnologia (a Suécia e a Bélgica, a par, com 3,5%). Mesmo assim, fica
à frente da Espanha, que se ficou pelos 1,41% (embora valha a pena lembrar que
o PIB espanhol per capita é superior ao português).
Um dos grandes resultados
benéficos do investimento que aqui estamos a discutir foi o crescimento da
formação pós-graduada. Portugal formou no período em análise numerosos doutores
em todas as áreas da ciência e tecnologia (estão aqui incluídas as ciências
sociais e humanidades). O crescimento já vinha de trás, mas acentuou-se. Em
2003 formaram-se 1028 novos doutores portugueses, 840 no país e 188 no
estrangeiro (no total, mais mulheres do que homens: o forte crescimento da
população feminina na ciência em Portugal tem sido uma das marcas de que o país
mais se pode orgulhar). Em 2015 (último ano para o qual há números disponíveis na
PORDATA), o número de novos doutores foi de 2969, tendo 2351 obtido o grau em Portugal
e apenas 618 no estrangeiro. A área em que houve maior número de doutoramentos foi
a das Ciências Sociais e Humanidades (1270), seguida das Ciências Exactas e
Naturais (666) e das Ciências de Engenharia e Tecnologia (544). Essa já era a
ordem em 2003, quando o predomínio das Ciências Sociais e Humanidades não era
tão claro: Ciências Sociais e Humanidades (372), Ciências Exactas e Naturais
(299) e Ciências da Engenharia e Tecnologia (228). Para permitir uma comparação
internacional do índice de produção de doutores tem de se dividir o número de
doutoramentos pelo número de habitantes. A PORDATA indica que, em 2020, houve 18,9
doutoramentos por 100 000 habitantes, mais do dobro do correspondente valor
de 2004 (8,5). No entanto, esse valor fica apenas um pouco acima da média da
União Europeia (18,7). Para comparação, a Espanha registava, em 2020, 19,7
doutoramentos por 100.000 habitantes, registando uma ligeira subida
relativamente ao valor de 2004, que foi de 19,0. Apesar de Portugal produzir
novos doutorados com uma abundância nunca vista, o certo é que existem
dificuldades no seu emprego; a sua presença no sector privado é muito pequena e
as escolas superiores têm um quadro de docentes e investigadores bastante envelhecido.
Os doutorandos são,
obviamente, apenas uma pequena parcela dos investigadores. Os investigadores, contados
em equivalentes a tempo integral, perfaziam em 2005 (primeiro ano para o qual
há dados na PORDATA), 21 126 e, tendo vindo a aumentar sem interrupção,
chegaram em 2020 aos 53 174, bem mais do dobro. Mais uma vez estes números
têm de ser vistos com alguma cautela, pois eles provêm das respostas dadas em
inquéritos pelos investigadores (que são, na sua grande maioria, também
docentes) a inquéritos sobre o tempo que dedicam à investigação: alguns poderão
exagerar no tempo indicado. Esses investigadores situam-se principalmente nas
Ciências de Engenharia e Tecnologia (21.701), seguindo-se as Ciências Exactas e
Naturais (13.500) e as Ciências Sociais e Humanidades (10.551). Em 2005, essa
já era a ordem, embora houvesse maior equilíbrio: Ciências de Engenharia e Tecnologia
(6096), Ciências Exactas e Naturais (5780) e Ciências Sociais e Humanidades
(4490). Para uma comparação internacional, temos de dividir esse número pelo número
de trabalhadores no activo, resultando o valor de 10,7 por mil, um pouco acima
do da média da União Europeia, que é de 9,2 por mil. A comunidade científica
conheceu decerto um incremento impressionante desde a entrada do país na União
Europeia, quando havia somente 1,3 investigadores por mil pessoas no activo.
Para comparação, a Espanha tem 6,5 investigadores por mil pessoas no activo. Se
considerarmos, em vez do número de investigadores, o pessoal total envolvido em
actividades de investigação e desenvolvimento, a situação portuguesa já não é tão
favorável no cotejo internacional: falta, portanto, pessoal técnico e auxiliar que
ajude nas tarefas laboratoriais e de campo.
Um dos índices objetivos
da produtividade científica é o número de artigos científicos publicadas em
revistas indexadas nas bases de dados internacionais. Em 2003 foram publicados
6146 artigos, que recolheram 172 659 citações, ao passo que em 2020 foram
28.298 artigos, que recolheram até agora 131.667 citações (ainda não houve
tempo para recolher mais). O crescimento do número de artigos tem sido
ininterrupto, com excepção do último ano considerado, 2020, em que se deu uma
ligeira diminuição relativamente ao ano anterior. A área com mais publicações é
a de Ciências Exactas e Naturais (123.148) seguindo-se as Ciências Médicas e da
Saúde (9914) e as Ciências da Engenharia e Tecnologia (7992). Essa era já a
ordem em 2013. Se dividirmos o número de publicações pelo número de
doutoramentos realizados, o valor é de 7,9 para 2015, apenas um pouco maior do
que em 2013 (7,7). A fim de permitir comparações internacionais, temos, mais
uma vez, de dividir o número de publicações pelo número de habitantes. Em 2003 foram
publicados 58,8 artigos por 100 000 habitantes e em 2020 passaram a ser
274,8 artigos por 100 000 habitantes. A PORDATA não indica o número de publicações
científicas nos restantes países da Europa. Mas o Scimagojr – Scimago
Journal & Country Rank),
que se baseia na base de dados Scopus, constitui um útil instrumento de
análise ao permitir comparar países não apenas da Europa mas de todo o mundo:
Portugal, nessa base de dados, tem 32.086 publicações em 2020 (a discrepância deve-se
à diferente base de dados usada: os dados da PORDATA usam a Web of Science), um
valor que, dividido pelo numero de habitantes, indicado pelo Censos de 2021 (10.344.802
pessoas), dá 310 publicações por 100.000 habitantes. A Espanha tinha
113 503 publicações, o que dividido pela população espanhola, dá apenas 240
publicações por 100 000 habitantes. Voltando aos dados da PORDATA, Portugal
e olhando agora para os países com os quais há mais co-autorias, em 2020, o maior
número de colaborações foi com a Espanha (4449), seguindo-se o Reino Unido
(3524), os Estados Unidos (3198) e o Brasil (2910). Em 2013, a ordem do número
de colaborações era apenas ligeiramente diferente: Espanha (2469), Estados
Unidos (2001), Reino Unido (1858) e França (1428). Se considerarmos a
qualidade, medida por exemplo pelo número de citações por artigo, a situação é
mais desfavorável a Portugal nos rankings internacional. Uma outra
fragilidade portuguesa é o número de publicações por investigador.
O conhecimento avança
graças sobretudo à curiosidade humana, mas é incentivado pelas suas aplicações
na sociedade, uma vez que esse avanço tem assegurado melhores condições de vida
humana. No que respeita a aplicação da ciência e tecnologia, a situação portuguesa
não é tão boa como na criação de conhecimento, apesar de a maior parte do investimento
provir de empresas, pelo menos nominalmente. Um índice que se costuma usar para
medir o impacto económico da ciência é o registo de patentes. Em 2003, houve,
em Portugal, 174 pedidos de patente da via nacional (142 foram concedidas), 41
da via europeia (18 concedidas) e 36 da via internacional (zero concedidas). Já
em 2021 registaram-se 764 pedidos na via nacional (208 concedidas) e 242 nas
vias internacional (em ambos os casos, zero concedidas). Não existem na PORDATA
dados referentes à via europeia para o ano de 2021, mas no ano anterior tinham sido
249, das quais 119 concedidas. Houve, de facto, um grande aumento no período
considerado, mas, se a posição portuguesa era insignificante no plano
internacional, a situação praticamente não mudou. Vejamos a comparação
internacional, dividindo pela população: Em 2013, ainda segundo a PORDATA, o número de pedidos de patentes foi de 1,13
por 100 000 habitantes, o que é um valor muito reduzido comparado com os 9,47
por 100 000 habitantes da média da União Europeia e ainda menor quando
comparado com os países líderes neste domínio, que são a Alemanha e a Finlândia
(22,7 por 100 000). Há, decerto, ouras medidas do que hoje se chama «inovação»,
mas, apesar de todos os progressos, a inegável modernização de Portugal nas
últimas décadas é mais o resultado de importação de bens e serviços do que de
aplicação directa da ciência e tecnologia produzida dentro da fronteira. Uma
das razões será o reduzido emprego científico que os jovens doutorados encontram
nas empresas, o que, conjugado com as oportunidades reduzidas na função
pública, obrigam um número não desprezável de jovens a emigrar.
A existência de cultura científica
e tecnológica – isto é, a interiorização da ciência e tecnologia pela sociedade
– é uma condição para a existência de um sólido sistema de ciência e tecnologia.
Ela começa na escola e é complementada permanentemente pelo trabalho de uma
série de instituições: média, museus e centros de ciência, parques naturais,
etc. O ministro José Mariano Gago pretendeu em 1996, com a criação da Ciência
Viva – Agência para a Promoção da Cultura Científica e Tecnológica, impulsionar
esta relevante dimensão. Se é certo que a sua dinâmica foi significativa de
início, com a criação e desenvolvimento de um conjunto de centros de ciência,
não é menos verdade que tem havido algum estiolamento.
Um estudo da União Europeia
baseado em entrevistas (o Eurobarómetro)
realizado e publicado em 2021 revelou que os portugueses têm maior interesse pelas
novas descobertas da ciência e pelos desenvolvimentos tecnológicos do que a
média dos 27 estados-membros da União Europeia, uma tendência que se acentuou na
última década): 62% dos inquiridos revelam-se muitos interessados, 36%
moderadamente interessados, o que significa que quase ninguém se desinteressa
(uma razão pode ser a circunstância de se viver uma situação de pandemia,
durante a qual a população portuguesa tem mostrado uma grande adesão às vacinas,
mais do que em países com superior desenvolvimento). A comparação com Espanha é
interessante, sendo favorável a Portugal: só 41% dos inquiridos espanhóis se
revelaram muitos interessados, havendo 45% moderadamente interessados e 14% não
interessados. As questões associadas às alterações climáticas são as que mais preocupam
os portugueses (com um aumento acentuado nos últimos tempos, o que se percebe
dada a situação no Sul da Europa, a existência de florestas sujeitas a fogos e
a extensão da costa, sujeita à subida da água do mar), seguindo-se as questões
da saúde e dos cuidados médicos.
No entanto, esse maior
interesse pela ciência e tecnologia não se traduz na existência de uma maior
literacia científica do que a média da União Europeia, o que encontra justificação
nos baixos níveis educativos da população em geral. Embora tenha havido progressos
na formação superior da população mais jovem, em Portugal, dado o peso do
passado, continua a haver uma défice de escolaridade em comparação com os
padrões europeus. Voltando à PORDATA, verifica-se que 43,7% dos jovens
portugueses entre os 30 e os 34 anos tinham em 2021 o ensino superior, valor
que é superior ao do passado (em 1992 era só de 15,1%) e que excede o da média
da União Europeia (41,6%), embora esteja abaixo do da Espanha (46,7%) e bem longe
do dos países do topo neste índice, que são o Luxemburgo (62,5%) e a Irlanda
(62%). No mesmo ano, a percentagem de pessoas com o ensino superior, tomando agora
a população entre os 25 e os 64 anos, era em Portugal de 31,1%, abaixo de
Espanha (40,7%) e abaixo da média da União Europeia (33,4%). Olhando,
finalmente, para as estatísticas da população que completou pelo menos o ensino
secundário, o problema do défice da educação nacional torna-se particularmente
notório: o valor português é de 59,5%, o que sendo bastante bom relativamente
ao passado (em 1992 era de 18,9%) é mau no panorama europeu: de facto, Portugal
apresenta o valor mais baixo em toda a União Europeia (a média europeia é 79,3%
e há países, como a Lituânia e a República Checa, acima dos 94%).
Em resumo: Portugal
conheceu nas últimas duas décadas um forte crescimento do seu sistema
científico e tecnológico, que se deu sobretudo antes da crise financeira de
2008. Esse crescimento foi acompanhado pelo aumento do interesse pela ciência e
tecnologia. No entanto, os dados estatísticos indicam que o país está abaixo da
média europeia nessa área, tão essencial para o futuro, pelo que é
absolutamente necessário intensificar os esforços no sentido de uma rápida
convergência com a Europa.