quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Nem uns nem outros, pois o "Estado não pode programar a educação segundo quaisquer diretrizes (...), políticas, ideológicas ou religiosas”

Na sequência de dois textos "Pode um aluno não frequentar a disciplina de «Cidadania e Desenvolvimento»?" (aqui e aqui).



Tem sido notícia central, nos últimos dois ou três meses, o caso de dois alunos do Ensino Básico que, por decisão da tutela, foram "reenviados" para anos de escolaridade anteriores àqueles em que se encontravam pelo facto de, por razões de objecção de consciência do encarregado de educação, não terem frequentado a componente curricular agora designada por "Cidadania e Desenvolvimento".

Explicitei, nos textos que acima refiro, a minha posição, que tem um longo passado e se encontra desenvolvida em textos académicos. 
Entendo que:
1. Toda a educação escolar implica (não pode deixar de implicar) uma preparação (também) para a "cidadania", para co-existir, para viver com o outro;
2. Nessa conformidade, tal preparação tem de ser guiada por valores éticos, que são universais e universalizantes, ainda que possam ter expressão diversa;
3. No quadro de um currículo verdadeiramente educativo (não deseducativo) a mencionada preparação acontece no âmbito da leccionação formal das disciplinas, mas também se estrutura, por via do exemplo, na relação pedagógica, que tem lugar na sala de aula e na escola;
4. Partilha a finalidade última, que deve ser a de toda a educação, de conduzir as crianças e os jovens ao exercício do livre-arbítrio, da autonomia, da liberdade, marca distintiva do ser adulto.
5. Requer ensino, explícito e implícito, exercido por professores e outros educadores com um profundo sentido de cidadania e uma capacidade efectiva para a desenvolver.
Os pontos acima enunciados nada têm de inovador. Na verdade, o seu conteúdo é tão antigo quanto a educação, estando presente nas mais diversas escolas.

O que consta no currículo escolar deste e de outros países como "educação para a cidadania" não o é. Melhor, consegue ser o contrário do que antes mencionei. 
De facto, entre muitos outros comentários que poderia fazer, recordo que essa "educação":
1. É um programa doutrinal que puxa os alunos, as famílias e a sociedade para aqui, para ali ou para o outro lado, em função das conveniências de grupos que têm poder suficiente na cena política para fazerem valer os seus interesses particulares junto da tutela, independentemente da orientação partidária que tenha num determinado momento;
2. São esses grupos que assinam os documentos curriculares que a tutela reconhece e impõe, que laboram junto das autarquias e das escolas, que se infiltram na formação de professores, que dinamizam actividades para a comunidade educativa... que atribuem prémios a alunos, professores, escolas... É um círculo que se fecha com a complacência, quando não com o entusiasmo e aplauso, daqueles que deveriam assumir a educação escolar, a começar pelo Ministério que a regula. Ficam os alunos entregues a deseducadores;
3. É constituída por temas dispersos, que se vão somando (mais um e mais outro... e ainda mais outro. No crescendo a que tenho assistido, são agora dezassete), sem outra lógica que não seja a imposição de vontades desses grupos;
4. É focalizada num "eu" retirado de uma cartilha pautada pelo hedonismo, na qual "o outro" se anula tanto quanto isso é possível. Mas, bem vistas as coisas, este "eu" liberto de todas as amarras que não sejam a produção-consumo e o "bem estar" com os seus "autos" (auto-estima, auto-conceito, auto-imagem...) é destituído de pensamento, anula a escolha, a decisão e, por acréscimo, a responsabilidade pelo mundo;
Nada de menos ético poderia ser imaginado, prevalecem pequenas e grandes ambições económico-financeiras, académicas, profissionais, guiadas pelas mais diversas intenções. Mas isso só é possível porque quem tem o dever de educar o permite e, portanto, a culpa (uso a palavra com consciência do seu significado) não pode ser atribuída a outrem. Por certo, não pode ser atribuída a esses grupos.

Numa iniciativa inimaginável, surge agora um abaixo-assinado onde, ao que li, são signatários políticos e católicos.

Quanto aos políticos, é de salientar que alguns deles foram Ministros da Educação nas décadas mais recentes, e, portanto, foi com a sua assinatura que a "Educação para a Cidadania" (e antes dela, a Formação/ Educação Cívica) adquiriu a forma e o conteúdo que agora tem. De direita ou de esquerda, conservadores ou liberais, quando podiam fazer alguma coisa em prol da educação para a cidadania, todos concordaram com o seu contrário ou, pelo menos, todos, consentiram que o seu contrário prevalecesse.

Quanto aos católicos, não compreendo, de todo, a sua indignação pois a sua religião, como outra religião qualquer, não pode, tal como acontece, ter lugar na escola pública, que, lembro, é laica, Escrevi neste blogue há bastante tempo, e mantenho, que os sistemas de ensino deveriam contemplar uma componente curricular de Religião, no sentido de dar a conhecer o pensamento religioso, como expressão do humano, e as suas múltiplas manifestações, mas nunca de modo doutrinal como acontece.

Acresce que uma análise do Programa e Metas da disciplina de opção com o nome de Educação Moral e Religiosa Católica replica muitos dos temas da Cidadania e Desenvolvimento que agora a Igreja Católica quer expugnar.

Cito, mas com fins diferentes dos que subjazem à citação no abaixo-assinado

o artigo 43.º da Constituição da República Portuguesa
“O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.
e o artigo 2.º da Lei de Bases do Sistema Educativo:
"3.a) O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas;
3.b) O ensino público não será confessional"
Talvez fosse a hora de o Ministério da Educação ouvir quem, em matéria de educação, se tenta manter fora dos espartilhos habituais e "apenas" quer educar o melhor que se sabe e se pode as novas gerações na escola do Estado que é a escola de todos.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Compreendo que sejam estas figuras representativas do catolicismo e da sua moral a invocar a objecção de consciência, em aulas de Educação para a cidadania, como compreendo que ninguém tenha feito o mesmo relativamente às aulas de educação moral e religiosa. É que, se bem entendo, o problema gira em torno do carácter de obrigatoriedade das aulas e respectivas avaliações. Não são os que se sentem ofendidos nas suas crenças, ou consciência, que podem e devem procurar ensino privado, suportado do próprio bolso, como já vi alguém dizer, mas é o ensino público que deve ser de tal modo e de ordem científica, que o torne aceitável e inofensivo para as convicções e crenças, em função de critérios gerais de objectividade.
Já me aconteceu, como professor, ter de reagir, por mero rasgo individual, contra formas de instrumentalização da escola pública por parte de entidades privadas com fins lucrativos e de me opor à tentativa ou ao pendor doutrinador de certos projectos e actividades, alegadamente, de literacia.
A escola pública não pode ser usada como balcão comercial ou púlpito de propaganda para ninguém, sejam grupos, clubes, partidos, religiões, ou interesses particulares.
E, muito menos, como servidão potestativa, aproveitando-se do carácter de obrigatoriedade, de sujeição da comunidade educativa e da fiabilidade de que o Estado se arroga em matéria interesse público, de isenção e laicidade.

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