[Na edição de 12 de setembro do JL, entre muitas outras coisas, um pequeno dossiê sobre os fogos da Amazónia, de costas, mas não voltadas, com Viriato Soromenho Marques, com quem, aliás, concordo com as teses. Uma visão, apesar de tudo, optimista, baseada na literatura Portuguesa e Brasileira e muito mais]
A selva, romance autobiográfico de Ferreira de Castro publicado em 1930, descreve o período de 1914/16 que este passou no seringal Paraíso, na Amazónia, no apogeu do ciclo da borracha. Dedica-o a “essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica,” pelo que nela sofreu e pela coragem que lhe deu, assim como à gente que “à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência,” numa “epopeia que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha … que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável.”
Ferreira de Castro descreve com precisão as duras condições de vida dos seringueiros, a extracção do látex da Hevea brasiliensis e o processo insalúbre de obtenção da borracha, usando o que descreve como fumo ácido e asfixiante. Mais recentemente, em 2008, Milton Hatoum, em Orfãos do Eldorado inventou o bairro “Cegos do Paraíso” onde viviam invisuais vítimas da defumação do látex. A procura mundial por borracha originou, de 1890 a 1908, no “Estado Livre do Congo” do rei Leopoldo II da Bélgica, um regime de escravatura e atricidades para extrair o látex de um tipo de liana africana. Esta situação foi denunciada por Joseph Conrad em “O coração das trevas”, de 1902, assim como por Mark Twain e Conan Doyle, entre outros. No Brasil não foi tão duro, mas Ferreira de Castro descreve como os trabalhadores ficavam na prática “presos” por terem de pagar as dívidas que se acumulavam. Tudo isso é agora uma memória, mas a recordação do sofrimento ficou.
Monteiro Lobato, em A Geografia de Dona Benta, de 1935, coloca Pedrinho a perguntar por que razão a produção de borracha brasileira foi ultrapassada pelas plantações dos Holandeses e Ingleses que levaram a seringueira para a Ásia. Enquanto no Brasil se explorava a floresta nativa, com umas dez árvores da borracha por hectare, misturadas com muitas outras espécies, na Ásia usava-se o sistema de plantação. Como é também referido por Ferreira de Castro, houve interesse internacional em introduzir esse sistema no Brasil, nomeadamente por Henry Ford, mas tal nunca se concretizou.
O fim do ciclo da borracha, que agonizou até meados do século XX, não foi apenas devido ao aparecimento de outros locais de produção de borracha natural. Foi também causado pelo desenvolvimento da produção de borracha sintética a partir do petróleo. Claro que podemos dizer que subtituímos um problema por outro, mas a necessidade de plantações intensivas, a exploração dos seringueiros e a pressão sobre os ecossistemas, desapareceu.
Mário de Andrade que faz sair Macunaíma – o herói sem nenhum carácter, publicado em 1928, da Amazónia, embora crítico da ideia de progresso de Monteiro Lobato, não a rejeita. Nas suas notas das viagens, realizadas de 1926 a 1929 e publicadas em “O turista aprendiz,” descreve o progresso da Amazónia como algo bom. Está no espírito dos tempos actuais a rejeição filosófica (não na prática) da ideia de progresso. A história da ciência e da técnica mostra-nos que o anacronismo é dificil de evitar e que muitas supostas relações causais ou situações sem saída são ilusões causadas pela nossa falta de conhecimento.
Os incêndios na Amazónia são uma situação grave mas não são uma catástrofe global. Um pico de queimadas, o fumo nas grandes cidades, as imagens de satélite e as redes sociais, chamaram a atenção para um desperdício de energia e recursos ambientais que, infelizmente, acontece há muitos anos. Estes podem – e não é pouco - provocar perturbações nos equilíbrios dos ciclos da água, ameaçar a biodiversidade, aumentar as partículas de fumo na atmosfera, entre outras coisas, mas não vão causar a diminuição do oxigénio no planeta nem originar um grande aumento do dióxido de carbono na atmosfera pois este já havia sido fixado pelas plantas.
O uso do fogo para criar terra livre é referido por Ferreira de Castro, mas usá-lo hoje para criar espaços livres, pastagens e terrenos de cultura na Amazónia não parece fazer sentido. Não é eficiente nem sustentável - em poucos anos esgota os terrenos e acelera a desflorestação - sendo possível manter e até aumentar de outras formas os níveis de produção dos solos já em uso, controlando a erosão, sem ameaçar ecossistemas e aumentar a desflorestação.
Outra fonte de problemas na Amazónia é a mineração. Para além dos receios em relação à possibilidade de serem atribuídas licenças para exploração mineira de grandes dimensões na Amazónia, um grande problema têm sido as muitas minas artesanais ilegais que vão causando desflorestação e contaminando os solos e as pessoas que nelas trabalham ou com elas contactam.
O mapeamento das espécies e o registo das assinaturas genéticas e das composições químicas, são fundamentais para a preservação e valorização da biodiversidade da Amazónia - o conhecimento aberto e público dificultam a apropriação e contribuem para o uso racional. No entanto, a ideia, sustentada pelas estimativas de espécies ainda desconhecidas, de que poderemos encontrar com maior probabilidade novos medicamentos na floresta da Amazónia é uma ilusão. A maior parte dos cerca de quarenta novos medicamentos descobertos anualmente no mundo é sintética. E poderemos igualmente encontrar, tal como no conto de Borges, tesouros no nosso quintal: moléculas de novos medicamentos escondidas nas plantas do nosso jardim. E não tenhamos receio: se descobrirem novos fármacos em plantas amazónicas, a indústria preferirá inventar um processo de síntese a partir de materiais sustentáveis e baratos do que enfrentar o problema do cultivo da planta, ou, o que seria inaceitável, da sua exploração ilegal.
Como nos mostra a história da borracha e da química medicinal, os problemas vão criando novas soluções que criam novos problemas que, em todo o caso, só se resolvem com mais ciência. Não esqueçamos o verso de Hölderlin que se reinventa em Heidegger, Ulrich Beck e Hubert Reeves: “onde há o perigo, cresce também a salvação.”
1 comentário:
Toda a estória que circula por aí é tola. A Amazónia é um sistema biológico enorme, estendendo-se por cerca de 10 países. Este ano os fogos começaram na Bolívia: o seu presidente acabou o bom senso e permitiu as queimadas para ajudar os agricultores e criadores de gado. Vendo os gráficos (+ de 1000 palavras) na zona brasileira as devastações foram as menores de há mais de 10 anos. Grandes e graves foram quando Lula e Dilma governaram. Não se diz pois parece má educação.
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