Cantemos a lengalenga:
Responde o menino que faz de lobo:
O lobo ’tá ler um livro!
Oh,
que antigo deve ser este lobo, que ainda lê livros. Nem é, de certeza,
um lobo mau, por mais que, na sua natureza, esteja a vontade de comer a
Capuchinho Vermelho. A bem dizer, já nem há lobos maus nem capuchinhos
vermelhos, e ler livros começa a ser tão anacrónico como brincar ao giroflé flé flá.
Nesta rentrée
de Setembro de 2019, último ano dos anos 10 do século xxi, o século em
que morrerei, não gostava que morresse o livro. Devo ao livro, lobo mau
que devorei com olhos tão curiosos como os da Capuchinho Vermelho,
exaltações e euforias apaixonadíssimas, estremecimentos de alma com que
nem São João da Cruz ou Santa Teresa d’Ávila sonharam.
Mas,
enquanto o lobo não vem, deixem-me dizer o que foi mesmo o livro na
minha fraca vida. O livro foi o fruto do conhecimento que, sem culpa de
Eva, eu mordi com vontade. Eu vivia num mundo de descuidada inocência e,
por ter comido esse fruto do conhecimento (é mentira que seja uma
maçã), fui expulso do Paraíso.
Abençoada
expulsão. Quem quer viver no Paraíso sem lobos maus, sem capuchinhos
vermelhos, sem Evas que mordam a mesma fruta, um Paraíso onde nem ao giroflé flé flá se possa brincar?
O livro é a saudade e a consciência do Paraíso no maravilhoso mundo-lobo-mau de pecado e vida. Nesta rentrée
de 2019, são esses os livros que gostaria de vos trazer. E escolho três
exemplos, os melhores exemplos de fruto do conhecimento que vos quero
dar a provar antes do Natal.
Um chama-se Quem É Fascista.
O autor é um historiador italiano, Emilio Gentile. O fascismo é um lobo
mau do século xx. No século xxi, outros lobos maus vieram brincar nas
nossas globalizadas serras. O que Emilio Gentile explica é que não se
devem confundir estes lobos maus, chamem-se Orbán, Trump, Bolsonaro ou
Salvini, com o lobo mau fascista. Se queremos que não comam a Capuchinho
Vermelho, temos de saber que lobo mau é o lobo mau fascista evitando
repetir o erro dos partidos comunistas dos anos 20 que chamavam até
fascistas a antifascistas que não fossem do partido. E que bem, com que
inteligência, este livro tudo nos explica e guia.
Outro livro desta rentrée tem por título Alterações Climáticas – O Que Sabemos, o Que Não Sabemos.
Escreveu-o a cientista americana Judith A. Curry, que há 40 anos estuda
os lobos maus e bons que são os ciclones, os furacões, os vulcões e o
tremendo gelo dos pólos. Judith A. Curry não vem aos gritos. É mesmo
contra a gritaria de “vem aí o lobo, vem aí o lobo”, que Judith A. Curry
está. Judith serve-se da ciência e diz-nos que só conhecendo – e
conhecer é também reconhecer as incertezas – saberemos as razões pelas
quais aqueceram as nossas desoladas serras, que já tão poucos lobos têm.
Contra os alarmismos catastrofistas, a cientista Curry, uma Eva que só
se quer alimentar do fruto do conhecimento, mostra-nos, neste livro, que
não sabemos quanto e como o planeta aquecerá, e que afirmar o
comportamento humano como razão dominante do aquecimento é uma
simplificação imposta por políticos, que está por provar
cientificamente. O consenso forçado é um lobo mau que nos quer impor uma
única maneira de andarmos nas serras deste nosso mundo em brasa.
Um, dois, três, macaquinho português, que bonito que é o meu terceiro livro. Chama-se Assim Nasceu Uma Língua, levando como subtítulo Sobre as Origens do Português.
Escreveu-o um linguista admirável, Fernando Venâncio, percorrendo, como
um lobo feliz e livre, as mais longínquas serras do Norte, onde, lobo
galego, a língua portuguesa nasceu. Livro encantador e livre, nele se
defende a maravilhosa diversidade da língua, dispensando a imposição de
uma reaccionária unidade, num claro chumbo a esse famigerado lobo mau
que é o Acordo Ortográfico de 1990, “devaneio inútil e dispendioso” de
uma unificação de que o mundo real – que é haver Brasis, Angolas e
Portugais, e neles povos – se ri, irrevogável e irreversível.
Eis
o milagre dos livros, esses lobos em vias de extinção. Recusam-nos as
certezas pantanosas. Inquietam-nos, põem-nos à caça, atentos e
exigentes. Parece um mundo antigo e, não obstante, como estes três
livros-lobos tão bem mostram, é só de futuro que estamos a falar.
Manuel S. Fonseca
editor da Guerra e Paz
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