Primeira parte de uma extensa entrevista que dei a Margarida Alves, artista plástica e doutoranda em belas Artes na faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa:
Margarida Alves - Gostaria de saber como é que, com recurso a
dispositivos tecnológicos (analógicos ou digitais), podemos descobrir ou inferir a matéria mais
ínfima, a matéria infimamente pequena que existe e que é descrita pela física
quântica?
Carlos
Fiolhais - Vou começar pelo início. Nós somos todos herdeiros de uma
grande mudança ocorrida nos séculos XVI e XVII que é chamada “Revolução
Científica”. Essa Revolução deu-nos o método científico que, embora seja
complicado de enunciar em pormenor, tem alguns elementos essenciais: a observação, que é uma visão cuidadosa; a
experimentação, que é a observação de situações controladas; e o raciocínio
lógico, que se baseia na matemática. O método inclui também a crítica, no
sentido em que as conclusões da ciência têm de ser comunicadas e validadas,
primeiro no interior da comunidade científica e depois a todos. É tudo isto que faz a ciência, é isto o que a distingue de outras
actividades humanas, como por exemplo a arte. Há outras actividades humanas que
têm alguns destes elementos, mas não todos
e não da mesma maneira. Podemos dizer que na arte há observação, que
pode até haver num certo sentido experimentação, mas o raciocínio lógico não é um imperativo
na arte. A arte, embora dependa da
crítica, porventura não depende tanto dela como a ciência. Mas as relações
entre arte e ciência são profundas e
merecem uma reflexão mais alongada…
Quando a ciência
começou a observação foi muito importante, mesmo quando não se podia
experimentar. Percebeu-se imediatamente que se podia ver mais do que aquilo que
os nossos olhos viam ou, melhor, aquilo
que os olhos directamente viam. Isso é bem manifesto isso no trabalho de
Galileu, em 1609, quando olha para o céu com um instrumento novo, o telescópio,
e faz descobertas sensacionais, que anuncia no ano seguinte em O Mensageiro das Estrelas. Não foi ele
que inventou o telescópio, mas foi ele o primeiro a olhar para o céu com
atenção e a registar o que viu: descreveu
coisas no céu que nunca ninguém tinha visto. O que ele viu era radicalmente
novo… A Natureza revelava-se surpreendente ao
fornecer, com a ajuda do instrumento, fenómenos que a vista humana não
tinha conseguido alcançar. Havia coisas que estavam antes invisíveis que eram
espantosas, como por exemplo manchas no Sol - o Sol não era perfeito; irregularidades na Lua – o nosso satélite tinha montes
e vales, isto é, não era uma esfera perfeita; fases de Vénus, antes difíceis de
discernir dada a pequenez do astro; e, acima de tudo, quatro satélites de
Júpiter, luas que andavam à volta desse planeta, tal como a Lua andava à volta
da Terra. Tudo isso mudou o pensamento humano a respeito do mundo.
Havia
mais mundos para além da nossa directa percepção. As novidades do invisível
passaram a ser uma marca da ciência e esta
passou a partir daí a procurar o mundo invisível. Começou pelo muito grande,
que está muito longe (não digo infinitamente longe porque o infinito é uma
questão mais matemática e se quisermos metafísica do que física), mas em breve,
ainda no século XVII, passou a ver o muito pequeno, continuando a usar lentes, ligadas em sistemas ópticos que
mudavam o percurso da luz. As lentes de Galileu tinham vindo da Holanda de fabricantes de óculos. Foram também holandeses os inventores do primeiro
microscópio. A primeira pessoa a usar o microscópio para veres seres vivos foi
o holandês Anton van Leeuwenhoek. Aqui há um aspecto importante a realçar: a
precedência nessa época da tecnologia sobre a ciência. Por que é que antes
ninguém tinha conseguido ver aquilo que o Galileu viu? Porque a indústria de
lentes não estava suficientemente desenvolvida. O talhamento do vidro, a
escultura do vidro, para usar uma palavra do mundo da arte (estou-me a lembrar
das esculturas muito lisas do Brancusi),
atingiu no início do século XVII na Holanda um estado de perfeição que permitia
usar as lentes em instrumentos de visão. Foi preciso que os artífices
holandeses conseguissem polir muito bem as lentes para que elas pudessem servir
em artefactos tecnológicos. Lembro que Espinosa
foi polidor de lentes. Houve, portanto, uma mudança tecnológica que permitiu
uma mudança científica. Esse processo passou a repetir-se: quando uma
tecnologia avança, a ciência avança também. A diferença para os tempos de hoje
é que agora praticamente toda a tecnologia vem da ciência, o que significa que a ciência se
alimenta a si própria ao produzir objectos tecnológicos que por sua vez
alavancam o progresso do conhecimento científico. É uma espécie de “pescadinha
de rabo na boca”…
Leeuwenhoek recorreu a um
microscópio para ver o muito pequeno. É só uma
questão de escolher as lentes adequadas e colocá-las na posição certa. E
conseguiu ver animais minúsculos, ou
pormenores de animais maiores, como a sua estrutura celular. Passou-se, no
domínio microscópico, tal como tinha acontecido antes no domínio do
macroscópico, a ver coisas que nunca
ninguém tinha visto. Robert Hooke, um físico inglês do tempo de Newton, foi o
autor de um livro com imagens
absolutamente impressionantes, Micrographia,
publicado em Londres em 1665. A física,
através da óptica, conquistou nessa altura tanto o grande como o pequeno.
Podemos ver mais do que os nossos olhos vêem e os instrumentos ópticos são o
modo de ampliação da nossa vista.
Não é
de mais enfatizar o sentido da visão.
Temos outros sentidos, mas a vista é importantíssima. É-o também na arte, nas
chamadas artes visuais em particular.
Talvez arrisque dizer que a visão é o nosso sentido mais importante porque as
câmaras que são os nossos olhos não só estão colocadas perto do cérebro como
efectuam já, na retina, algum processamento da informação. De certo modo a
vista é uma parte do cérebro. O sinais vindos da vista têm, no nervo óptico,
de percorrer uma curta distância para que haja processamento completo. As câmaras que são os nossos olhos passaram a
ser ampliadas por meios artificiais. O
telescópio e microscópio forneciam uma
capacidade acrescida ao olhos: A capacidade da visão humana estendeu-se para os
dois lados, o que está perto e é pequeno e o que está longe e é grande.
Passámos a ver mais do que aquilo que víamos directamente, passámos a ver mais
mundos do que o mundo à nossa escala. A partir do momento em que houve uma
apreensão de escalas diferentes imediatamente
o nosso cérebro ampliou-se. Quando a vista se amplia, o cérebro amplia-se
também, porque a vista e o cérebro estão ligados intimamente ligados.
A partir de então, estava aberto o caminho para
mais transformações desse tipo. Fazem-se telescópios cada vez mais poderosos e
continuamos nesse caminho, não está à vista o seu fim. Estamos a construir
telescópios cada vez mais poderosos para ver ainda mais longe, usando luz de
todo o tipo. A luz pode ser visível como foi usada por Galileu e Leeuwenhoek mas, sabemos hoje, pode ser invisível.
Construímos telescópios para recolher luz de todo o género que vem do espaço: a
luz infravermelha, a luz ultravioleta, raios X, ondas de rádio, etc. Sabemos
muita coisa de objectos do espaço
distante graças aos raios X. Nesse caso, os telescópios têm de estar montados
num satélite porque os raios X não chegam à Terra. Felizmente que a atmosfera
os absorve pois são perigosos para a
vida. As ondas de rádio, essas sim, chegam à Terra, através da atmosfera, e
dispomos de radiotelescópios para as captar. Estamos a instalar novos
telescópios que são cada vez maiores, o que significa que cada vez vemos mais,
que vemos coisas novas e que vemos coisas que já conhecemos com cada vez mais
pormenor.
A nossa visão
no espaço distante tem um limite que tem a ver com o Big Bang que se deu há catorze mil milhões de anos. A luz tem uma
velocidade finita, o que significa que não podemos ver mais do que uma esfera
de catorze mil milhões de anos-luz. Não sabemos se o Universo é finito ou infinito, mas o nosso Universo observável está dentro de uma esfera de
catorze mil milhões de anos-luz.
Para o outro lado, para o lado do muito
pequeno, os microscópios desenvolveram-se também extraordinariamente, passámos
a ter, no século XX, microscópios electrónicos, o que significa que, em vez de
luz, passámos a usar electrões, partículas elementares de carga negativa que
interagem com a matéria. Ver pode não ser só com a luz. É sempre interacção com a matéria, seja de luz seja de
partículas, que falamos quando falamos de ver. Num microscópio electrónico, precisamos
no final uma tradução em luz da informação recolhida pelos electrões porque o nosso cérebro é particularmente sensível à luz. As imagens começam por ser captadas por electrões
e passadas depois para sinais luminosos. Há outros tipos de microscópios, mais
poderosos, chamados uns de “efeito túnel” e outros de “força atómica”, que
conseguem visualizar os átomos. Os primeiros usam também electrões. Outrora os átomos eram uma abstracção útil, mas
hoje são uma realidade observada. Os átomos existem, não são apenas coisas
conceptuais. Não só vemos os átomos como os manipulamos, é esse o objectivo da
nanotecnologia.
Num microscópio de efeito túnel estabelecemos uma grande tensão
eléctrica entre a superfície que queremos observar e uma ponta do microscópio e
isso faz com que alguns dos electrões que estão no objecto passem para a ponta,
que funciona como uma sonda. Regista-se qual é a corrente que está a passar e
nós “vemos” qual é a densidade de electrões na superfície: se há mais
electrões, a corrente é maior. Não se pode com esta técnica ver o interior da
matéria, mas apenas a superfície. Com as
correntes recolhidas fazemos aparecer num ecrã de computador uma modelação
tridimensional. E vemos que a superfície é granulada, isto é, que a matéria tem
uma estrutura atómica. Quando se trata de cristais, existe regularidade,
simetria, mas há também matéria amorfa e
todo o tipo de possibilidades entre a
ordem e a desordem, o que torna a observação do mundo muito interessante. A relação entre
ordem e desordem muda conforme a
temperatura. À temperatura muito baixa, a ordem impera mas, à medida que a
temperatura aumenta, a desordem vai-se instalando. É essa a diferença entre o
frio e o quente… Com raios X podemos ver o interior dos objectos e reconhecer
também aí a ordem ou a falta dela.
Nos tempos mais recentes, para ver o mais
ínfimo da matéria, designadamente os quarks, o que fazemos, de uma maneira ou
de outra, é “provocar” a matéria enviando-lhe luz ou partículas para cima. Se
os projécteis forem a grande velocidade, o objecto-alvo desfaz-se em mil peças
e esperamos, como quem despedaça violentamente um relógio, perceber de que são feitas as coisas a partir da recolha das peças espalhadas. Digamos que os “relógios” da Natureza são muito complicados e nós, quando usamos
aceleradores de partículas, procuramos descobrir os seus constituintes e
perceber o seu funcionamento.. O que é que vemos? O que ficamos a saber?
Sabemos hoje que toda a matéria é feita de átomos e que os átomos são feitos de núcleos e electrões; que
os núcleos por sua vez são feitos de protões e neutrões, e que os protões e
neutrões são feitos de quarks. Estas são as partículas “últimas” que conhecemos
hoje, não quer dizer que sejam as partículas finais. Há muita especulação sobre
o que serão as partículas “últimas”, mas uma coisa é certa, toda a matéria que
vemos, do muito grande ao muito pequeno, é formada por partículas, quer dizer, toda
a matéria é corpuscular. Todas as formas
de matéria que vemos no Universo são
feitas a partir de constituintes microscópicos que são na última escala
conhecida partículas. No fundo, o mundo
é um conjunto de bonecas russas, com umas peças a encaixar nas outras. Os
nossos instrumentos têm de ser os mais
adequados para observar as matrioscas maiores e as mais pequenas. Tudo aquilo
que conhecemos do mundo é sempre a partir da observação, na maior parte dos
casos instrumental.
Em resumo: A
luz interage com a matéria e é isso que faz a observação directa. Por outro
lado, a própria matéria interage com a matéria, como ocorre no microscópio electrónico ou
no microscópio de efeito túnel, constituindo outras modalidades de observação.
Recentemente,
descobrimos que o mundo chegam sinais que não são nem de luz
nem de matéria. A luz e a matéria
existem em dois “cenários”, o espaço e o tempo, que estão interrelacionados. O
espaço e o tempo são os “palcos” em que a luz e a matéria existem. Einstein há
cerca de cem anos propôs que o espaço e o tempo podiam abanar: são as ondas
gravitacionais. Hoje há todo um conjunto
de confirmações experimentais destas ondas, pelo que não se trata de um mero raciocínio teórico. A observação é muito sofisticada: mas podemos
dizer que os detectores de ondas gravitacionais são novos tipos de telescópios.
As ondas gravitacionais provêm de choques de buracos negros e de estrelas de
neutrões, que são estrelas muito pesadas. Essas ondas ensinam-nos que os palcos em que a matéria
existe são dinâmicos, quer dizer, o espaço e o tempo são alterados pela presença da matéria e
energia. Essa alteração é, segundo Einstein, a própria força da gravidade.
Quando um buraco negro, que é uma estrela na fase final da sua vida, está a circular à volta de outro, e caem em
espiral um sobre o outro, o choque é tão grande que o espaço e o tempo
são abanados a toda a volta chegando a perturbação muito longe. Nós que estamos
muito distantes desses objectos (não convém estar próximo, pois o choque de
dois buracos negros é dos eventos mais violentas que acontecem no cosmos) a
milhões de anos-luz de distância, conseguimos registar o abano no espaço, que
aqui chega minúsculo. Este registo não
deixa de ser uma forma de observação, mas não estamos a usar luz. A luz intervém, mas não há luz directa vinda do espaço, mas sim outro tipo de ondas. A observação é nova: estamos a “ouvir” o Universo e não apenas a vê-lo. Uso a palavra “ouvir” entre aspas, porque
pode-se pensar que é som, mas não é, pois chega
através do vazio cósmico. É o próprio espaço que abana, não é como o ar que
aqui abana, quando há uma vibração. Está-me a ouvir por causa das moléculas que
estão a abanar no ar à minha frente, mas
os emissores de ondas gravitacionais são objectos cósmicos que sofrem profundas
alterações e o espaço abana numa agitação que acaba por cá chegar. Usamos
espelhos que são vistos a abanar, o que
nós percebemos com a ajuda de luz laser.
Por outras palavras, há muitas formas de observação, usando
luz directamente, usando matéria, e modernamente usando ondas de gravidade, que
são perturbações do próprio espaço. Nós tiramos
conclusões a partir e tudo o que “vemos” e, quando temos novas janelas de visão
proporcionadas por novos instrumentos, ficamos a saber mais. Os instrumento
originam nova ciência, e vai continuar a ser assim no futuro. Não é apenas nem
sequer principalmente porque uma pessoa, como o Einstein, se lembra de uma
ideia nova - as ideias puramente mentais são muito raras- que alcançamos novo
conhecimento. É Conseguimos ver e saber
mais principalmente porque construímos novos instrumentos. Einstein tinha uma enorme imaginação. Pessoas menos dotadas do que eles
baseiam-se em instrumentos para alcançar a
“imaginação” da Natureza, estou a usar uma metáfora. Com os instrumentos, nós
conseguimos descobrir, desvendar a “imaginação” da Natureza, A Natureza tem uma
imaginação muito superior à nossa. Por outras palavras, não está à vista o fim
do empreendimento científico. A história da ciência ensina que, quando nós pensámos
que o empreendimento científico está acabado, que já vimos tudo, que já sabemos
tudo, então surge uma surpresa que nos faz perceber que não vimos tudo.
O que eu diria para
finalizar é que já vimos muita coisa de
várias maneiras, mas estamos ainda muito longe de ter visto tudo. Há
actualmente alguns mistérios, que são indícios de coisas que não estamos a ver,
que são manifestações do invisível. Os físicos
chamam a esses fenómenos “matéria escura” e “energia escura”, as duas coisas escuras
mas coisas diferentes. É algo que não estamos a ver, mas que gostaríamos de ver
e, acima de tudo, de perceber.
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